Retornemos a Cézanne

RETORNEMOS A CÉZANNE
RETORNEMOS A CÉZANNE

por Luiz Alberto de Genaro

No ano retrasado, numa das três exposições retrospectivas realizadas em comemoração dos noventa anos de vida do gravador Marcelo Grassmann, havia uma série de aproximadamente quarenta desenhos que cobriam um período de cerca de quarenta anos de produção artística e revelavam, dentre tantas qualidades, o invejável fôlego do artista bem como a sua impressionante unidade estilística. Recordo-me que lhe deixei escrito no livro de presença algo assim: “Alguns críticos podem dizer que o senhor se repete; no entanto, adoraria ter, nas paredes da minha casa, ao menos um dos belíssimos desenhos aqui expostos”. Pergunto ao leitor: repetição ou coerência expressiva? Por onde andaria sua eventual preocupação pela busca do “novo”?

Mas não pretendo esboçar uma apreciação crítica da obra desse grande gravador e desenhista. Minha preocupação é outra, e mais urgente. Gostaria de propor algumas diretrizes ao jovem artista dos dias de hoje, que, fatigado do experimentalismo gratuito que tem caracterizado a arte contemporânea e não se reconhecendo, por outro lado, com vocação para “artista acadêmico”, encontra-se com um problema muito real e concreto nas mãos: o problema da sua própria contemporaneidade, da sua existência artística.

Desde logo, é preciso reconhecer que o desejo e a necessidade de ser artista, quando se manifestam, põem a pura potência artística desse jovem em ato. E isto é suficiente para torná-lo contemporâneo: fazê-lo atual em relação a si mesmo. É a condição básica para vir a ser artista: querer bem a arte, e querê-la quando ela chama. O termo “arte contemporânea” oculta certo sectarismo ideológico, pois deixa de lado uma parcela enorme de artistas que não só possuem plenamente a vocação artística como também atenderam prontamente ao chamado, porém não possuem aquela sede incontrolável, insaciável e corrosiva pelo “novo”. De início, eu diria que a arte contemporânea nada mais é que um “neo-academicismo”. Como tal, é mais do que hora de pô-la em xeque.

O fato, porém, é que, ou em xeque ou em mate, há jovens artistas desejando a arte hoje, e para evitar que se percam, se confundam e se enredem em falsas questões, para salvaguardar-lhes o talento perante os sofismas atuais e, fundamentalmente, para prevenir contra a nociva indiferença, arriscarei sugerir alguns conselhos. Afinal, em sã consciência, se ninguém duvidaria da contemporaneidade da obra de Grassmann, gostaria de perguntar: alguém reconheceria hoje o surgimento de um “jovem Grassmann”?

Eis o primeiro passo: é aconselhável ter ao menos uma vaga idéia do que é arte. Definiria a arte como atividade humana produtora, transformadora da matéria inerte em organismo vivo, destinada à representação de conceitos, e que, por intermédio da linguagem plástica, imita e revela a universalidade guardada na particularidade dos fenômenos. Seu objetivo principal é oferecer ao observador atento uma visão ordenada, harmônica e bela da realidade, para que lhe seja possível imitá-la no âmbito de sua própria experiência concreta, mas não menos simbólica, da vida. A arte, assim como o homem, tende ao transcendente por natureza, e pode despertar no observador a contemplação dos modelos que governam as possibilidades de transformação da sua interioridade. A arte existe para transformar beneficamente o homem. A arte é um mapa dos caminhos possíveis da autotranscendência humana.

É importante iniciar com uma idéia do que é arte para que se descubra, de cara, que nem tudo é arte. Jovem ou maduro, o artista não deve esquecer-se disso, sabendo reconhecer o que é e o que não é arte. Não há discurso pseudo-democrático que atenue o rigor desse delineamento, simplesmente porque fazer arte, assim como contemplá-la, independem da democracia; aliás, quanto mais a arte se esmerar em ser democrática, menos artística será. Fico com a frase do jesuíta Gabriel na obra-prima A Missão: “Isto não é uma democracia, mas uma ordem religiosa…” Além disso, é muito salutar habituar-se a delinear as coisas desde cedo. A linha perscruta, analisa, desnuda.

Acontece que, ao definir a arte, descobre-se não apenas o limiar do problema – o que ela é e o que não é -, mas passa a ser possível começar a compreender a questão num outro nível, superando o plano da mera antítese: é possível vislumbrar os movimentos cíclicos que transformam o que ainda não é arte em arte – por conseguinte, fazem o que já é arte sê-la mais. É aconselhável que o jovem artista seja sensível aos processos mais sutis que assinalam as transformações do seu querer artístico a fim de colocá-los em ação, já que será por seu intermédio que a matéria inerte se tornará organismo vivo, a representação se voltará para o conceito, o particular haverá de tender ao universal. Enfim, é preciso que o jovem artista movimente sua percepção dos fenômenos num ritmo consoante com o devir das coisas, porque disso dependerá a capacidade de encontrar no exterior delas o seu respectivo interior. Neste momento, portanto, é que o jovem artista evolui de uma visão estática e dual da realidade concreta – ele e o mundo -, para uma visão mais dinâmica dessa realidade, em que antevê a fagulha de simbolismo contida no concreto – ele com o mundo.

Esse processo é muito nítido, por exemplo, no Cézanne anterior a Pissarro e no Cézanne provençal: no princípio, uma pintura medíocre, de misturas cromáticas impuras, com figuras humanas sofrivelmente representadas por meio de gestos contraditórios e titubeantes; depois, uma convicção formal quase viril, de cores resplandecentes e bem matizadas, uma solidez investigativa que sangra as contradições graças à certeza do cilindro, do cone e da esfera, em gestos cuidadosa e abstratamente ritmados. Daí uma dica infalível: que o jovem artista encontre o seu Pissarro, ou que o seja para si mesmo.

Mas a definição de arte poderá auxiliar ainda mais, porquanto não basta verificar a dualidade arte/não-arte, assim como é insuficiente limitar-se ao movimento do seu devir. É preciso que se dê o terceiro passo, vertical por excelência, que já estava implícito nas dualidades anteriormente mencionadas – arte e não-arte, matéria inerte e organismo vivo, representação e conceito, universal e particular.

Neste terceiro plano, o grau de sutileza é ainda maior. Ou melhor, aumenta, expande, cresce e, principalmente, justificando a natureza transcendente da arte, eleva-se. Para encontrar o sopro vital e orgânico da arte, para descobrir o conceito e alcançar o universal, é preciso elevação. De maneira que entre a dualidade arte/não-arte o jovem artista poderá vislumbrar uma variedade de níveis qualitativos de manifestação. Dito de outro modo: poderá reconhecer distintos níveis de perfeição que se integram entre si, mutuamente coordenados e subordinados, constituindo uma espinha dorsal de perfectibilidade; portanto, que se estruturam conforme uma hierarquia, cuja imagem poderia ser semelhante à abóbada de arestas com nervuras na nave central de uma catedral gótica.

Sim, não só existe o que é arte e o que não é, como há na arte uma hierarquia. Senão, vejamos: há diferentes níveis de domínio da linguagem e de perfeição técnica; há níveis de complexidade sintática e vocabular; há níveis nos seres, e, portanto, há níveis nos motivos temáticos das representações (a menos que uma garrafa seja mais significativa que um homem); há níveis de perfeição corporal, de perfeição da alma e, principalmente, de perfeição espiritual; há níveis entre os modelos narrativos; enfim, há níveis espaciais orientados pelas direções e, fundamentalmente, há níveis temporais, orientados pelo grau de eternidade contido na temporalidade das coisas. É preciso compreender que o alto grau de complexidade da arte reside no fato de que ela é composta por todos esses planos de conteúdo combinados entre si, em diferentes graus de intensidade e garantidos pelo sentido inverso das analogias, numa matemática tão rica, tão repleta de possibilidades, de afinidades, de contrastes, de antagonismos e de sutilezas, tão profundamente impregnada de qualidades, tão absurdamente grávida de correspondências, que leva muitos desavisados a defenderem a idéia medíocre da impossibilidade de estabelecer comparações entre os artistas. Hierarquia, então, nem pensar… Todavia, a matemática artística é exatamente essa, eis o dínamo que deve mover o jovem artista contemporâneo.

Poder-se-ia questionar: quem detém a perfeição maior que confere coerência às perfeições que lhe são subordinadas? O Universo, claro. Não por acaso, Aristóteles já reconhecia a superioridade da poesia sobre a história em nome da universalidade dos seus possíveis contra a rudeza dos fatos. Assim como a arte tende ao universal, as manifestações artísticas tendem à ciência que é a arte; portanto, se duas ou mais obras participam da mesma ciência artística, aí está o elo necessário de comparabilidade qualitativa entre elas. Depois, é só fazer os cálculos, eis o problema…

Neste renovado momento, o jovem artista evolui para uma visão realmente dinâmica da realidade, e agora, ele pode intuir a densa camada simbólica de universalidade que sustenta o concreto com a devida profundidade: logo, não é mais ele e o mundo, tampouco ele com o mundo, mas ele no cosmo.

Culminando a escalada hierárquica, há um quarto e derradeiro passo que a arte pode fazer-nos recordar, e aqui, já não é mais todo tipo de arte que é capaz de fazê-lo. Antes, porém, é conveniente considerar um importante aspecto do Universo, a perfeição maior, conforme disse acima, que torna coerentes as perfeições que se lhe subordinam. É preciso compreender a dinamicidade esférica do Universo; quer dizer, a perfeição maior universal não é estática e única, mas múltipla, isto é, ela contém, coordena e aperfeiçoa uma “relativa infinidade” de perfeições: ao menos, uma infinidade proporcional ao número daqueles que buscam aperfeiçoar-se, pois, para cada pessoa – artista ou não, jovem ou não – haverá uma perspectiva de aperfeiçoamento a ser desencadeada. O Universo é perfeição maior porque é o feixe que confere veracidade às múltiplas perfeições possíveis que se encontram distribuídas potencialmente na individualidade dos seres e das coisas. Os fenômenos particulares e as individualidades pertencem ao Universo, mas como que desacordados para essa esfericidade aperfeiçoadora, como que deleitando-se com a doçura de suas curvaturas externas, superficiais e igualitárias.

Daí a função incontestável da arte: justamente a obra de arte é o que pode fazer despertar no homem a impressão primeira desse pequeno universo de possibilidades de aperfeiçoamento inerente ao âmbito da sua vida individual, esta que, em contrapartida, aspira à Possibilidade Universal, vale dizer, à Possibilidade do Absoluto. Por isso, como disse Kandinsky, a arte é uma necessidade interior: interior ao Universo, e não somente interior ao homem e à sua subjetividade. Neste sentido, é-lhe exterior, não interior; afinal, é o homem que está presente no Universo enquanto microcosmo, não o contrário, ainda que alguns padeçam do desejo delirante de “transformar o mundo”…

Enfim, retornando ao quarto e último passo, há uma hierarquia cuja perfeição maior é o Universo, e, como disse, a forma dessa perfeição maior é a da dinamicidade esférica, ou, se o leitor preferir, possui a forma convergente de infinitas naves centrais, românicas e góticas, rumo a uma imaginária cúpula bizantina. E, inimaginavelmente acima, bem como no interior mais profundo dessa perfeição maior universal, perpassando o véu translúcido dessa esfera, o quarto passo que a arte pode fazer-nos recordar: a Causa, o Lógos, a Convergência, o Ser, a Origem do Universo. A perfeição da perfeição maior: a Perfeição Suprema, Eterna, Imóvel, Essencial, Insondável. Eis “o” UNO no qual se versa. Esta missão, só a Arte Sagrada a realiza. Aqui, é o iconógrafo e o UM.

Mas que fique claro: o artista contemporâneo não é necessariamente obrigado a percorrer o itinerário que acabamos de esboçar brevemente. É necessário que continue livre. No entanto, o que não pode jamais esquecer, na deliciosa solidão do seu atelier, saboreando a plasticidade da sua linguagem preferida, em meio aos devaneios mais produtivos de sua mente inventiva, é que lá fora, mas não muito distante, o Universo reverbera múltipla e simultaneamente o que o Lógos cria na sua maior simplicidade e onipotência. Portanto, cabe a esse artista que se expresse, sim; mas no interior dessa macroestrutura cósmica, hierárquica e comparativa por essência. Todos fizeram isso.

Em síntese, o que aconselho ao jovem artista é:

 

– refrear ao máximo o impulso mecânico que induz à busca incessante pelo “novo”;

– discernir o que pretende: o “novo” ou a Origem;

– ser fiel à primeira novidade com a qual se deparar;

– amá-la intensamente, para extrair-lhe o sumo de originalidade nela condensada, ou seja, viver a novidade com profundidade;

– não temer decepcionar-se com uma eventual superficialidade ou com o natural esgotamento dessa primeira novidade, pois o Universo se encarregará de apresentar-lhe outra;

– lembrar-se de que esse temor, se excessivo, implica um passo na direção da repetição mecânica, simulacro da profundidade;

– evitar confundir as coisas achando que o problema é a profundidade quando, na verdade, é o temor de reconhecer a superficialidade em que se estacionou;

– ter coragem para buscar a reviravolta e começar novamente, de um outro ponto de vista, com aquele amor pela profundidade da experiência cujo apogeu é a Origem;

– fazer coerir todo acontecimento significativo para essa vertiginosa experiência;

– não tentar reinventar a roda, pois o Universo detém todas as rodas possíveis em potência graças à sua esfericidade dinâmica, enquanto a Origem as possui em pleno ato;

– vislumbrar as possibilidades plásticas e expressivas dessa macroestrutura cósmica estudando os caminhos já abertos pelos mestres;

– trabalhar, trabalhar, trabalhar, isto é, realizar o motivo;

– fazer como Cézanne: retornar para Aix-en-Provence.

 

Por ora, encerrarei retomando o exemplo anterior de Cézanne, agora desdobrado para submeter à prova a discutida dimensão hierárquica da arte: se, por um lado, ele precisou do auxílio contemporâneo de Pissarro para amadurecer, por outro lado, perguntemo-nos: o que seria do mesmo Cézanne sem Delacroix, Poussin e Piero della Francesca? O que seria do desejo maduro e verdadeiro de Cézanne de “repintar Poussin”? E eu iria mais a fundo: que seria do próprio cubismo sem esse Cézanne que fundiu matematicamente Delacroix, Poussin e Piero?

Seria pó?

Assim, que o artista saiba o que é o seu ofício. Que transforme sua própria alma em nome dele. Que reconheça a solidez hierárquica dos seus antepassados. Que busque o universal incondicionalmente. Que não perca de vista o fim disso tudo: a Origem.

Que diria Cézanne disso tudo? Que diria Cézanne se lhe propuséssemos a paternidade cubista em detrimento do seu verdadeiro horizonte conceitual, que era a nobre herança dos pintores acima mencionados? Provavelmente, nos aconselharia a que nos concentrássemos mais sobre a natureza do cone e da esfera, e menos, muito menos sobre o cilindro, conforme orientara ao jovem pintor Émile Bernard, numa de suas mais célebres cartas, escrita dois anos antes de morrer, em 1906:

 

“Permita-me repetir aqui o que eu lhe dizia: abordar a natureza através do cilindro, da esfera e do cone, colocando o conjunto em perspectiva, de modo que cada lado de um objeto, de um plano, se dirija para um ponto central. As linhas paralelas ao horizonte dão a extensão, ou seja, uma seção da natureza ou, se preferir, do espetáculo que o Pater Omnipotens Aeterne Deus expõe diante de nossos olhos. Ora, para nós, seres humanos, a natureza é mais em profundidade do que em superfície, donde a necessidade de introduzir nas nossas vibrações de luz, representadas pelos vermelhos e amarelos, uma quantidade suficiente de azulado, para fazer sentir o ar”.

 

Retornemos ao trabalho. Retornemos a Cézanne.

 

Luiz Alberto de Genaro é artista plástico e professor e coordenador do curso de Artes Plásticas da Faculdade Paulista de Artes.

 

 

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