Torres da Memória

Rodrigo Duarte Garcia

A tarde cai lentamente, escoando
o silêncio envolto a cada partida,
o mesmo e brutal silêncio, silêncio
que inunda a casa vazia, silêncio
dele, que à soleira assim de uma porta
começava a morrer e hoje termina.
O verso foi-lhe esse longo caminho
de volta à saudade, foi seu resgate
entre espinhos, entre as trevas mais fundas
enquanto a tarde vem sempre cair.

E esse caminho em verso é o testemunho
da dor, da corola o fio condutor
que desvela o mundo em todos seus mantos,
e só mesmo a memória cerra a vida
ao rio vertente da desesperança.
Carregar a dor é reconhecê-la,
ver a estrela em toda a constelação,
e hoje, no céu dessa dissolução,
é a memória que sustém o milagre
da dor tão certa e vasta quanto a morte.

Pois cante a memória – musa do verso –
convertendo os dons do humano desastre
às eternas veredas da linguagem
e ele, aqui de passagem, presta contas
ao silêncio, calando o necessário,
revivendo à tona cada experiência
nessas lembranças frias que a aparência
torna um pouco apagadas, esquecidas,
e hoje, evitando o mar de despedidas,
roga à musa a evocação do reencontro.

Que a bem da verdade, assim a memória
não resguarda os recantos do passado,
ilumina o mistério revelado,
segue de volta as pegadas do ser.
E a trilha é um labirinto circular,
– não como a valsa das ondas do mar -,
mas à maneira espiral de um tornado,
que gira calado, mirando o céu.
E a repetição dá tom ao sentido,
ao peito doído onde tudo é noite.

E de todos, beirando o anoitecer,
é o Poeta da Torre, nesse inverno,
que pára e mira, enquanto evoca à tarde
imagens e memórias, por ruínas
e glórias, todo o peso no caminho
de tornar-se o que se é: a esperança
por entre os vãos de um abismo profundo,
o salto de fé, tudo que o conduz,
raiando uma infinita travessia,
sempre de céu a céu, de cruz em cruz.

À sombra da noite é chegado aqui,
bem chegado este momento, e se à Torre:
“É hora de escrever meu testamento”,
na verdade sempre, sempre foi tempo,
que o legado vem na aridez de cada
esquina virada e todo segundo
é vital como os véus da madrugada
ferida de um inverno que parece
nunca esgotar. E a memória é vigília,
é a mortalha tecida em prantos da alma.

Os dons do alumbramento, tudo o que
não é esquecimento, o chão do percurso,
o que foi e o que será nesse instante,
o reencontro à luz da escuridão,
a compreensão do reflexo no espelho.
E ele não mais brinca a alma à branca espuma,
inunda-se apenas dela; e enfim
os dias cinzas seguiram-se invernos
a fio, e a verdade é que somos mesmo
frutos do inverno, desertos da dor.

São gotas espargidas no oceano,
moldando assim cada contorno seu,
mar da infância – as lembranças de Montale -,
que resgatam cada som, cada céu,
e o fazem das sombras cruzar o vale.
Nesse véu estendido, nesse adágio
lento da morte, é tão-só a memória
um doce presságio, a volta p’ra casa,
e se o céu verte variações de cinza,
ele derrama um mar todo de luz.

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