Transforma-se o amador na cousa amada

Luís de Camões

Transforma-se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
não tenho logo mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semidéia,
que, como o acidente em seu sujeito,
assim co’a alma minha se conforma,

está no pensamento como idéia;
[e] o vivo e puro amor de que sou feito,
como matéria simples busca a forma.

Camões está no centro da poesia de língua portuguesa por diversas razões. Mesmo algumas décadas depois de Sá de Miranda ter introduzido o verso decassílabo em Portugal, faltava ainda quem o naturalizasse, encontrando a melodia própria da língua. Samuel Johnson disse que, depois das traduções da Ilíada e da Odisséia por Pope e Dryden, nenhum poeta inglês deixou de perceber a melodia de seu idioma; certamente foi Camões quem nos fez ouvir pela primeira vez a música do português em “medida nova”, dando um passo além da perfeição métrica – e mesmo essa foi conquistada a duras penas, como pode observar quem quer que leia as primeiras tentativas lusitanas de domar o decassílabo.

A isso acrescentemos sua clareza e economia inigualáveis, qualidades que, quando reunidas, produzem um efeito de sugestão propriamente poético, ou aquilo que Ezra Pound chamava de “linguagem carregada de significado”. É essa concentração que faz com que, diante de diversas situações, recordemos um verso, um trecho favorito; porque, por reunir simultaneamente vários significados distintos numa fórmula simples e musical, voltamos inevitavelmente a ele, como se, após termos depurado a experiência pela reflexão, sempre surgisse a mesma pérola, com o mesmo brilho, independentemente da nossa vontade.

“Transforma-se o amador na cousa amada”. À primeira vista, a afirmação, tirada de Petrarca, parece misteriosa. Mas isso é porque ela elide uma parte do raciocínio. O amor que transforma aquele que ama na “cousa amada” infunde na alma do sujeito as qualidades percebidas no objeto. Um homem pode amar uma mulher por perceber nela uma certa beleza que lhe serve de inspiração, mas também pode vir a perceber que a posse imaginativa daquela mulher traz para sua alma as qualidades que ele antes só percebia fora de si. Por isso é que o meio de transformação é o “muito imaginar”. Camões termina o primeiro quarteto tirando a conclusão óbvia: se há posse, deveria acabar o desejo.

O segundo quarteto levanta uma objeção. O desejo continua. Afinal, o “amador” não é uma pura alma, mas também um corpo. Camões sugere que é “algo mais” que o corpo deseja, algo além daquilo que a alma já possui, e diz, sugerindo a subordinação do corpo à alma, que deveria submeter-se. Mas logo o primeiro terceto faz uma ressalva esclarecedora, não muito distante em estilo das ressalvas que faz São Tomás de Aquino na Suma Teológica: por mais linda e pura que seja, não passa de uma idéia, e é próprio das idéias existirem apenas no pensamento. O corpo tem suas necessidades, que podem ser pensadas, mas pensá-las não é suficiente para satisfazê-las.

Camões, porém, não termina o poema como advogado do corpo, mas retoma o amador por inteiro, dizendo-se feito “de vivo e puro amor” que “como matéria simples busca a forma”. Não é seu corpo que é “matéria simples”, mas toda a sua pessoa. Ainda que a crítica, um pouco enfeitiçada pela presença de palavras como “alma”, “idéia” e “acidente”, costume ler o poema como um embate entre Platão e Aristóteles, Camões parece apenas descrever uma experiência paradoxal, que formula sem resolver. É ele, por inteiro, que deseja ser moldado por outra coisa; é ele, por inteiro, que se declara “matéria simples”, desprovida de ser e pronta a transformar-se naquilo que ama. Esse amor busca a forma “por muito imaginar” e simplesmente esquece do corpo. Ele gostaria de transformar-se por inteiro, mas a posse imaginativa não pode oferecer isso, e por isso continua desejando, à revelia do corpo insatisfeito, dando a entender que aí está um sinal de que algo está profundamente errado em toda a equação.