Apóstrofe à carne

de Augusto dos Anjos

 

Quando eu pego nas carnes do meu rosto,
pressinto o fim da orgânica batalha:
 – olhos que o húmus necrófago estraçalha,
diafragmas, decompondo-se, ao sol posto…

E o Homem – negro e heteróclito composto,
onde a alva flama psíquica trabalha,
desagrega-se e deixa na mortalha
o tacto, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!

Carne, feixe de mônadas bastardas,
conquanto em flâmeo fogo efêmero ardas,
a dardejar relampejantes brilhos,

dói-me ver, muito embora a alma te acenda,
em tua podridão a herança horrenda,
que eu tenho de deixar para os meus filhos!

 

Não sei se existe algum estudo a respeito, mas parece razoável dizer que Augusto dos Anjos foi o poeta que mais utilizou palavras diferentes em toda a língua portuguesa; e, ainda que diversas vezes preferisse combiná-las dando mais importância ao som do que ao sentido, teve a ventura de não se consagrar como precursor desta infausta tendência, que hoje chega ao paroxismo. Provavelmente, também, nenhum outro poeta teve tanto amor pelas palavras proparoxítonas – ou será que isso era apenas uma decorrência inevitável de sua incorporação frenética de termos científicos?

Mas a marca maior de Augusto dos Anjos não se resume a isso. Se é possível falar de um ritmo peculiar que fosse merecer seu nome, como uma manobra só sua, seria o verso decassílabo no qual a sílaba tônica de uma proparoxítona ocupa a sexta posição, seguida de duas sílabas obviamente mais fracas, uma sílaba um pouco mais forte e uma tônica final. Seguindo o modelo de intensidade silábica proposto por Mattoso Câmara Júnior (e misteriosamente nunca sistematizado em português para estudar a poesia – digo “em português” porque a teoria de Mattoso dos grupos de força assemelha-se muito à metrificação por pés), o verso daria um esquema 3-1-1-2-3 a partir da sexta, com 3 marcando a intensidade máxima. Neste poema temos os versos 2, 3, 5, 6 e 9 seguindo esse modelo (o leitor que quiser contar todas as sílabas verá que é preciso fazer algumas sinéreses). Como a palavra é proparoxítona, parece que o verso vai-se precipitando, até recuperar-se e atingir um novo cume. Se alguém quiser chamar a poesia de Augusto dos Anjos de vertiginosa ou turbulenta, eis o motivo.

Essa vertigem e turbulência, porém, contrastam com os assuntos e atitudes habitualmente escolhidos pelo poeta. Aqui, por exemplo, a morte não é súbita, mas lenta, apenas pressentida como “o fim da orgânica batalha”, e essa percepção é obviamente justa, já que a maior parte das pessoas envelhece, envelhece e então morre, em vez de cair morta de chofre. Só que a parte de envelhecer lentamente vai dando uma banalidade insuportável à própria decadência, adding insult to injury (“acrescentando um insulto à ofensa”), na popular expressão inglesa. Daí que uma boa saída seja solenizar a experiência combinando efeitos sonoros especiais e palavras difíceis; só não há como evitar a sensação de frustração quando, ao fechar o livro, o leitor se encontra na mesmice indiferente de seu quarto ou escritório. Por isso, não se sinta especialmente perverso se você achar que o lugar ideal para ler Augusto dos Anjos é num cemitério com árvores retorcidas: o desejo de estar em um ambiente que confirme nosso estado interior me parece bastante natural.

Augusto dos Anjos, porém, não faz alusão a um bem, como Mimnermo e António Ferreira. Juventude hedonista ou amor monogâmico além da vida (e o primeiro objeto é mais realista e portanto bem mais desejável) não lhe interessam, só o fato de que a carne perece. Ora, ao contrário de Brás Cubas, o poeta deixará a seus filhos “o legado da nossa miséria”, que aqui aparece como “herança horrenda”. Se há contraste entre estilo e conteúdo, é justamente a falta de conteúdo contrastante, de uma percepção da relação entre um bem e um mal, com a insistência neste último, que torna Augusto dos Anjos um autor tão atraente para leitores imaturos; afinal, antes de ver o mundo em nuances de branco e preto, ou mesmo só em branco e preto, o mais comum é que se veja só o branco ou só o preto, brandindo-o como verdade última.