Consumação

Por Ruy Goiaba

Dramatis personae: Zoroastro & Zaratustra.
Cenário: Um restaurante em alguma cidade do Bananão.
[O restaurante está cheio, mas não lotado. Zoroastro e Zaratustra dividem uma mesa. O primeiro engole pedaços de pão do couvert enquanto o segundo olha para a rodela de limão no fundo do seu copo, com expressão de nojinho. Acena para o garçom com um braço, depois com os dois.

Zoroastro – Eu pedi com gelo e SEM LIMÃO, por favor.

Garçom, com um sorriso – Ah, sim, senhor. Desculpe. Já vou trazer.

Zoroastro, suspiroso, virando-se para Zaratustra – Que fim levou a arte do understatement?

Zaratustra, com um pedaço de pão grande demais na boca – Hum?

Zoroastro – Understatement. A sugestão, o subentendido.

Zaratustra – Ah, certo. Você, fresco como sempre, prefere o termo em inglês.

Zoroastro – Só importado. Aqui no Brasil, understatement é uma espécie de jabuticaba às avessas, você não encontra em lugar nenhum. Nem pagando caro. Quer um exemplo fácil? Esse garçom que está “servindo” [faz as aspas no ar, com os dedos] a gente.

Zaratustra – Sei. Simpático, mas um tantinho confuso, não?

Zoroastro – Confuso é pouco. “Simpatia e incompetência são nossas marcas” deveria ser o slogan da casa. Já vim aqui algumas vezes, em geral é ele que me atende – sempre sorridente – e o cara até agora não entendeu que minha coca é com gelo e sem limão. Nunca traz exatamente o prato que eu peço na primeira vez. Além disso, esteja o restaurante lotado, mais ou menos ou vazio, ele nunca me atende a não ser que eu deixe BEM claro, da maneira mais inequívoca e escandalosa possível, que preciso de um garçom. Levanto um braço, os dois, assobio, bato palmas, grito. Só falta usar aqui dentro um sinalizador daqueles de estádio de futebol. Ou, sei lá, subir na mesa e tirar as calças.

Zaratustra – Você é um esteta. Certamente, não nos submeteria a esse espetáculo grotesco, nem que ficasse dois dias com o cérebro marinando em Jack Daniels. Mas OK, o garçom é obtuso e não entende sutileza. E daí? Há garçons e restaurantes melhores na cidade. Não entendo aonde você quer chegar.

Zoroastro – O ponto, my dear Zaratustra, é que vivemos numa época em que os consumidores de arte são iguaizinhos a esse garçom obtuso. É a era dos dumb waiters, dos homens-massa do Ortega y Gasset, incapazes de carregar bandejas sem derrubar eternamente os pratos. Eles não entendem sutileza, não se interessam pelo subentendido, não enxergam num livro ou num filme nada que não esteja absolutamente na cara. Este país está cheio de autores que, para serem lidos, fazem o equivalente em palavras a subir na mesa do restaurante e arriar as calças. E eles têm leitores! 

Zaratustra – Evidente. Se fosse uma moça bonita subindo na mesa, eu também prestaria atenção. Você não?

Zoroastro – Prestaria, claro, mas ela também não teria nada a dizer que fosse além de gritos para chamar a atenção dos garçons. Ou tiraria a blusa, o que dá na mesma. O que passa por literatura aqui é isso, Zaratustra: gente berrando para chamar a atenção do garçom, dos clientes, do gerente, de quem passa pela rua. Até do senhorzinho do Exército da Salvação que aparece de vez em quando distribuindo pelas mesas mensagens edificantes que, aliás, são muito mais literárias.

Zaratustra – Entendi agora, mas mantenho o que disse: existem lugares melhores. Restaurantes em que basta você soerguer ligeiramente a sobrancelha esquerda e o garçom já sabe que você quer atum ao gergelim com sauté de palmitos frescos; se, em seguida, levantar também a direita, ele vai trazer sardinhas do Báltico como entrada. Mas são lugares caros e para poucos.

Zoroastro – Esse é o problema. Para poucos. E a literatura custa caro a quem faz. Ela está se tornando a menos popular das perversões sexuais – até a oculofilia deve ter mais adeptos.

Zaratustra – Você está estranho hoje, não é o Zoroastro elitista que conheço. Foi a rodela de limão no fundo do copo que o abalou desse jeito? Qual o problema de a literatura ser uma perversão para poucos? Sempre foi, de certo modo. E não é proibida ainda. Enquanto não vivermos no mundo de “Fahrenheit 451″, tudo bem.

Zoroastro – “Ainda”. Disse bem. Disse-o com propriedade [procura o garçom]. Que demora! Acho que é hora de agitar os braços para ver se aquela besta me atende. Talvez fingir um ataque epiléptico.

Zaratustra – Só espero que ele seja incompetente o suficiente para fazer aquela loira subir na mesa.

Zoroastro – Ah, sim. Eis uma boa causa. Quem quer saber de literatura, afinal?

 

Ruy Goiaba ganha a sua vida e perde a sua alma diariamente como jornalista. Lê menos do que gostaria, come mais do que deveria e não interage com outros seres humanos antes da primeira xícara matinal de café. Foi jogador de futebol, contemporâneo de Nílton Batata e Rubens Feijão, e integrante da primeira formação do Menudo (Charlie, Ricky, Ray, Roy e Ruy). Escrevia no blogue puragoiaba (puragoiaba.apostos.com) até recentemente.