Dégas e as suas bailarinas

Por Nicolau Cavalcanti

Introdução

 Numa entrevista concedida em 1979, Cláudio Abramo foi enfático: “Chateaubriand foi um dos homens que mais mal fizeram à imprensa brasileira. […] A única coisa boa que fez na vida foi o Museu de Arte de São Paulo” [1].

O MASP, de fato, é bom. Tem mesmo momentos de excelência, de grandeza. Um desses momentos são os setenta e três bronzes de Edgard Dégas (1834-1917), comprados em 1951 por 45 mil dólares – uma dessas compras em que, de tão boas, diz-se o preço a todos. É um dos quatro museus no mundo que possuem a coleção completa de esculturas do artista francês – os outros são o Metropolitan Museum of Art de Nova York, o Musée d’Orsay de Paris, e a Ny Carlsberg Glyptothek de Copenhague. Os originais em cera das esculturas estão, em sua maioria, na National Gallery de Washington, embora o d’Orsay possua seis.

Na coleção do MASP, há bailarinas, jóqueis, cavalos e mulheres fazendo a toalete. São expressão do seu fascínio pelo movimento. Dégas não se considerava escultor, mas desenhista; dizia que as esculturas tinham sido feitas apenas como exercício para a sua pintura. “Nada está à venda”, respondia aos que perguntavam sobre os moldes de cera que se encontravam no ateliê da Rua Victor Marré, em Paris. Nenhum desses moldes foi fundido enquanto o artista viveu, e apenas a Bailarina de quatorze anos foi exposta ao público, na Exposição Impressionista de 1881.

Dégas é difícil de classificar. Alguns o consideram um artista de transição – já que não teria rompido totalmente com a tradição anterior -, ou como um “clássico da modernidade”, ou como um impressionista a seu modo. Dégas era ele mesmo: extremamente técnico e, “por natureza, tecnicamente ousado” [1]. Influenciou fortemente a arte do século XX. A história ocidental da arte passaria necessariamente por ele.

 Seu modo de trabalhar

 Dégas observava. Estudava. Dedicou-se seriamente ao desenho. Tinha veneração por Ingres (1780-1867), chegando a não permitir que alguém o criticasse: sempre lhe apresentava um contra-argumento para salvar o seu grande pintor, ainda que a argumentação não fosse das melhores… Em suma, também sabia ser passional.

Estudou também muito a anatomia humana. Queria ser preciso. Neste ponto distinguia-se dos impressionistas, ainda que tenha participado de sete das oito exposições do grupo. Definia-se como um “realista”. Havia nele um esforço tremendo pela objetividade, por retratar o que via como de fato era.

Penso que foi desse anseio por ser realista que se originou a sua inclinação pela fotografia. Queria fazer a “prova” do que via com o que a máquina registrava no filme. Ao mesmo tempo, era um método que lhe permitia trabalhar no ateliê, já que não gostava de pintar ao ar livre. Na rua, não pintava: observava, olhava, espiava. Muitos chegam a classificá-lo como um “voyeur”. No bom sentido, é claro.

Pode-se dizer, pois, que o seu esforço artístico tinha duas manifestações próprias. A primeira era o empenho por captar tudo da maneira mais realista possível, ter a imagem interior do que via tão fiel quanto possível à realidade exterior. A segunda, que se exercitava continuamente no desenho. Não queria que a sua técnica (ou melhor, a falta dela) limitasse as possibilidades da sua arte. A sua intenção em relação à obra a ser produzida tinha de ser materializada tão perfeitamente quanto possível: ele nunca se resignaria se a sua (falta de) destreza condicionasse a perfeição da sua pintura, da sua escultura, da sua gravura.

Note-se que no parágrafo anterior repito conscientemente “o mais… possível”, “tão possível quanto…” Dégas era um perfeccionista. Queria levar sempre mais para frente – expandir – o conceito do possível na sua arte. Pela destreza, pela observação, pelas soluções inovadoras. Era insaciável nessa busca. O não se contentar com o produzido até então tem uma profunda unidade com o fato de se declarar “realista”. Para Dégas, o real está sempre mais além; o artista não consegue esgotá-lo, fica sempre aquém. Por isso, quer em cada obra avançar um pouco mais: enxergar mais, ser mais preciso, ser mais fiel à realidade.

Nesse aspecto, ele é profundamente anti-moderno. Não trocou a observação pela imaginação, o descritivo pelo conceitual. É uma atitude humilde: admite que o mundo à sua volta é mais rico que a sua interioridade, que a sua subjetividade (enquanto não conectada com o real). Por isso, quer antes de mais nada ver esse mundo.

Faz-se necessária aqui uma observação importante. Pelo que disse, poder-se-ia concluir que afirmo ser Dégas um perfeito classicista, um academicista. Que o ideal da sua arte era assemelhar-se o mais possível à fotografia. Sim, é verdade que ele admirava essa arte, com os seus ângulos, os seus enquadramentos, as suas luzes. Mas as suas obras não são nem de longe “fotográficas”, ainda que captem o instante. São extremamente pessoais. O objetivo da sua arte não era de maneira alguma ser mero espelho do mundo que via. As suas obras –
e nota-se isso muito claramente nos bronzes do MASP – são muito pessoais. São Dégas.

O reconhecimento da riqueza da realidade não o impedia de imprimir nas obras a sua interioridade. A nota marcante no trabalho de Dégas está em que a sua subjetividade não é independente da realidade, mas está profundamente conectada com ela. Respeita a natureza, não se impõe a ela como uma vontade dominadora. Não a trata como escrava da sua intenção, mas como aliada, parceira, amiga.

Onde se unem esses aspectos? No olhar. O artista sabia olhar. Sabia imprimir o pessoal sem negar o real, o mundo à sua volta. As suas obras estão plenamente informadas pela sua visão aberta à realidade exterior, feita para o mundo à sua volta, e ao mesmo tempo plenamente intencional, pessoal, subjetiva. Aqui, o subjetivo não está em oposição ao objetivo da natureza, mas aparece oriundo da interioridade do artista: deve entender-se como sinônimo de “pessoal”, não de “relativo”. Não é independente da realidade, mas nascido da individualidade, da pessoalidade.

Parece-me que aqui reside um dos segredos de Dégas. Porque sabia olhar, a sua arte ensina a olhar. Para citar um exemplo: depois de contemplar Dégas, as bailarinas nunca mais são as mesmas; aprendemos a olhá-las, apreciamos melhor os seus movimentos. As suas esculturas mostram o belo que ele vê, que admira e ao qual dedicou a sua vida, e é a sua visão que nos ensina a enxergar esse belo. Por isso, penso que é um artista no mais pleno sentido da palavra.

Roger Fry, comentando os desenhos de Dégas, afirma “ele conseguiu vencer a sua própria destreza formidável, a sua incomparável, mas perigosa, capacidade de notação engenhosa” [2]. Perigosa, parece-me, porque poderia acabar com a sua subjetividade, poderia engessá-la, poderia fazer dele um simples realista no sentido pejorativo. Não o fez, como comprovamos em cada um dos seus bronzes.

  

O movimento

 O gosto pelo movimento é, provavelmente, a sua característica mais conhecida. Dégas escolheu para a sua arte os temas mais móveis possíveis, aqueles em que os movimentos constituem a essência. As bailarinas. Os cavalos de corrida. Ana Gonçalves Magalhães diz que ele era obcecado por resolver a questão da representação do movimento [3]. Por que essa obstinação? Atrevo-me a dar duas razões.

Porque o movimento é difícil. A expressão artística do movimento traz diversos problemas. Ainda mais quando se é perfeccionista, como Dégas o era. “Dégas recusava a facilidade[4]. O seu virtuosismo não se nota tanto na obra concluída, mas principalmente na realização dela. Queria o máximo. Queria tangenciar o impossível. Talvez por isso não considerasse nunca uma obra plenamente acabada.

A sua arte era trabalho, exercício. Dégas era um “artesão”, e o movimento lhe proporcionava a matéria-prima qualificada para o seu empenho artístico. Nada mais distante dele do que a concepção do artista como um diletante, como um mero bon vivant.

A segunda razão parece-me ainda mais forte, mais convincente. Dégas amava a realidade como ela é. Queria ser, como vimos, o mais “realista” possível. E o real está em movimento. As coisas se movem. Passeia-se pela rua e o que se nota? Tudo está em movimento. Ou as coisas se movimentam, ou são movidas, ou se relacionam com o movimento, que é o seu âmbito. O estático não tem vida. Vale lembrar que Dégas gostava da agitação parisiense, daquelas ruas sujas – com essa sujeira que, além de outros aspectos, indica vida. Talvez por isso Dégas não retratasse paisagens. Nelas nem sempre há movimento.

Faço um parêntese. Penso que Dégas não gostaria muito de boa parte da nossa publicidade contemporânea. Não é real, ainda que muitas vezes sejam fotografias. Há uma distorção deliberada. Os sorrisos são maiores. Os dentes são mais brancos. A pele não tem gordura. E principalmente, não há tristeza. Nesse empenho por ver o real, Dégas não filtra, não esconde o lado negativo da vida, que não se encaixa no otimismo superficial da auto-ajuda ou de algumas ideologias. Ele capta e retrata a beleza, mas também a tristeza, o abatimento, a falta de entusiasmo com a vida, a desesperança – elementos tantas vezes presentes na vida e que são fundamentais para uma abordagem minimamente séria da nossa condição.

 

 As esculturas

 Atualmente, é difícil encontrar quem não aprecie as bailarinas de Dégas. Nem sempre foi assim. Quando expôs o original em cera da Bailarina de quatorze anos (da qual foram fundidos, após a sua morte, vinte e cinco bronzes), houve certo desconcerto. Alguns a classificaram como escandalosa, por ser realista demais. Julgaram-na mais propícia a um museu de história natural. A escultura de uma menina – cuja triste vida transparecia na obra – não era objeto apropriado para uma exposição de arte impressionista.

É interessante notar que A idade de bronze de Rodin provocou uma reação semelhante, e igualmente uma apresentação da Mulher picada por uma serpente de Clésinger. O realismo dessas figuras chocava. Argüiam contra esses dois artistas que as suas esculturas tinham origem num molde feito diretamente de um modelo vivo. Era perigosa tamanha conformidade com o real.

O que provocou essa reação? É uma questão interessante. Parece-me que o elemento primordial que funda o diálogo entre o artista e o público é a conexão com a realidade que cada obra de arte estabelece. Esse é o ponto de partida da comunicação, a base comum que os une e permite o diálogo. Se a obra de arte for boa, o artista conseguirá levar o espectador mais adiante, mostrará a sua intenção, a sua percepção, a sua criatividade. Mostrar-se-á ele próprio a quem aprecia sua obra.

Nessas três obras, por serem tão realistas, os artistas, de certa forma, dizem mais do que o público espera ouvir. O início do diálogo já é bastante “avançado”: ninguém perguntou ao espectador se aceita essa comunicação, e ele já está recebendo logo de cara um bombardeio de realidade. No caso da escultura de Dégas, é a apresentação de uma menina do L’Opéra na sua dura realidade, com a conseqüente cumplicidade da alta cultura da época. Talvez por isso vejamos hoje essa escultura de forma mais serena: não são as nossas ações que estão em tela de juízo.

Isto não significa que, para haver diálogo com o público, a arte precise ser “realista”. Pode-se estabelecer essa comunicação por outros meios – pela imaginação, pelo caldo cultural existente em determinado grupo social, pela coincidência, etc. A arte moderna faz isso com maestria. Aqui se afirma apenas que, não havendo uma conexão com a realidade, inexiste – a priori – essa base comum para o diálogo. Essa base precisa, dessa forma, ser construída: pelo discurso, pelas experiências estéticas anteriores. Qual é a melhor, a mais eficaz? Depende. Penso que a arte irrealista tem um elemento imaginativo, criativo muito interessante, mas é por si mesma mais instável e mais fechada (nem todos conseguirão dialogar com ela).

Mas voltemos às bailarinas de Dégas. O que há de excepcional na sua escultura não é, em si, o arranjo, a estrutura que dá aos músculos – a posição do bíceps, por exemplo. Parece-me que o que há de grande na sua arte é a relação que as partes estabelecem com o corpo todo. Há uma unidade interna. São figuras plenamente humanas.

E isto nos remete à representação do corpo. Gauguin tem um nu – Estudo de um nu, de 1880 -, que, embora lhe falte certa habilidade técnica, foi muito inovador. A senhora Suzanne Sewing não posa para Gauguin. Está. Encontra-se. Permanece. Simplesmente, passivamente. Não há espectador, não há receio de um observador. A genialidade está nessa naturalidade, nesse “realismo”. Toda pose é artificial, e por isso os nus, em sua imensa maioria, são artificiais. Gauguin teve aqui um olhar distanciado, que lhe permitiu captar com serenidade, sem se envolver com o objeto da sua visão: um olhar sem o desejo de dominar.

Dégas possui esta mesma característica: esse distanciamento. E penso que vai além. Gauguin é excelente, pois pinta não apenas “carnes”, “músculos”, “formas”, mas um corpo – um corpo com a sua unidade. Dégas dá um passo a mais. Na sua arte, não encontramos apenas corpos, mas pessoas. Dégas não faz o nu: representa pessoas. Por isso, os seus nus estão na vida real, na cena cotidiana. Não há qualquer vislumbre de pose. Se houvesse pose, perderiam o “realismo”.

É interessante esta questão da pose frente à naturalidade. É cada vez mais comum encontrarmos pessoas que continuamente estão posando. Cada movimento seu é pensado, estudado, refletido; o seu comportamento torna-se excessivamente reflexivo, hiper-reflexivo na expressão de Viktor Frankl. Têm sempre um espelho imaginário ao seu lado, na sua frente… e não perdem a chance de se verem refletidos num espelho real: no vidro da vitrine, no elevador, na janela do carro. É a ilusão da reflexão. Pensam que, agindo assim, com esse constante controle dos seus movimentos, garantiriam uma imagem melhor de si mesmas, assegurariam uma boa performance. Iludem-se, no entanto. Cada palavra, cada atitude, cada gesto fica contaminado pela artificialidade, e gera assim um distanciamento das outras pessoas.

Dizia que Dégas é um mestre nessa relação que estabelece entre todas as partes do corpo. E que, na sua obra, essa unidade interna transcende, de certa forma, a mera materialidade desse mesmo corpo, levando-o a representar não apenas corpos, mas pessoas. Penso que ele obteve esse resultado pela sua concepção inovadora das mãos e do rosto, as partes do corpo que mais exprimem quem é essa pessoa por manifestarem de maneira mais explícita a sua interioridade. Dégas sabia disso e soube dar forma a essa percepção. Na Bailarina de quatorze anos, a posição das mãos, a inclinação da cabeça, o olhar, as pálpebras configuram o caráter, expressam o que a figura sente e o que viveu.

Dégas não foi, no entanto, apenas um excelente escultor de mãos e de rosto. O fundamental está na relação que consegue estabelecer entre essas partes e o restante do corpo. O restante do corpo nos leva, nos conduz ao rosto, às mãos, e por isso vemos uma pessoa e não apenas um corpo. Em tempos de pornografia, Dégas mostra quanto vale o corpo.

Sem contradizer o que disse acima a respeito do seu perfeccionismo, penso que na Bailarina de quatorze anos lançou mão de uma facilidade, não sei se consciente ou inconscientemente. Consegue-se mais facilmente fazer com que a forma do corpo transcenda a mera materialidade e possa representar uma pessoa quando a imagem é de uma criança e não a de um adulto.

Esta facilidade dá-se tanto da parte do artista como do observador: no caso das crianças, o olhar as respeita mais. Não se olha o seu corpo, mas a sua pessoa. No caso dos adultos, é mais difícil: é preciso saber olhar, não se perder na forma, mas, sem desprezar esta forma, captar o essencial. Ou seja, com perdão da repetição, chegar ao pessoal, àquilo que configura uma personalidade e a distingue das demais.

Essa sabedoria do olhar perdeu-se nos últimos anos. Desaprendemos a olhar, também em razão das mudanças no modo de (não) vestir. Na luta por retirar da vida social qualquer ranço de puritanismo, de vitorianismo, desprezamos o pudor. Esquecemos que ele preserva a nossa identidade, a nossa pessoalidade: facilita às outras pessoas tratar-nos como somos – como quem somos -, e não apenas como o que somos.

A perda desse saber olhar o ser humano acarretou uma transformação nos critérios práticos de conhecimento e juízo a respeito de uma pessoa. Hoje, julga-se alguém pela gravata que usa, pelos óculos, pelo sapato, pelos silicones. São mais exteriores. Os acessórios ganharam maior peso. Isso afeta logicamente a própria arte e como a olhamos. Num simpósio sobre as esculturas de Dégas em 1998, a grande discussão girou em torno de uma saia um pouco maior que havia sido colocada numa cópia da Bailarina de quatorze anos [5]. Embora esse tema tenha alguma repercussão na busca pela intenção original do artista, é significativo que a discussão estivesse focada no acessório.

Dégas e Rodin

 As esculturas de Rodin são, de certa forma, mais conhecidas que as de Dégas. E o nosso conhecimento sempre trabalha comparando o novo com o já conhecido. O antigo, de um modo ou de outro, é o parâmetro de avaliação do novo, nem sempre como marco ou paradigma, mas também como memória. Essa memória que ativa a nossa afetividade, a nossa relação com o objeto conhecido e auxilia a tornar viva a expectativa em relação ao novo.

Por isso, as comparações sempre são extremamente subjetivas, pessoais, passíveis de erro – se é que se pode falar de erro nessa matéria. Entram nelas elementos que nem nós mesmos conhecemos ou admitimos. Pois bem, embora o risco de ser injusto esteja claro, não me parece um óbice que justifique omitir a minha opinião. Vamos a ela.

Rodin é épico. É romântico. Universaliza. Não faz um beijo, faz o beijo, o “universal” do beijo. Não esculpe um pensador, esculpe o pensador, quase alcançando modelar o próprio pensamento. Rodin arrebata, é eloqüente, é expressivo. Não fala, berra.

Dégas, por sua vez, é o mestre do particular. Não é a bailarina. É uma bailarina específica, a Marie van Goethem, que tinha quatorze anos, filha de um alfaiate e de uma lavadeira, etc. etc. Sabe colher o particular, o específico. Observa cada coisa, cada pessoa.

Aqui se percebe novamente a sua inclinação pelo “realismo”. Na sua concepção, os objetos particulares merecem uma representação. São dignos de nota. Dégas, por ser excelente nessa caracterização do particular, tangencia a obra de Rodin. Vai ao universal pelo particular. Para ele, os “universais” se encontram no particular. Não esculpe a beleza em si, mas uma moça bela que, de tão bem representada, expressa a beleza. Esse é o seu caminho, indireto às vezes, mas certeiro, pois sabe aonde quer chegar. Não grita, faz poesia com a forma.

  

A arte que não cansa

 Quando o artista consegue tocar o “real”, a sua obra de arte adquire uma amplidão inimaginável. O artificial sempre tem um fim específico único, foi pensado e planejado para satisfazer uma necessidade concreta. Já o “natural” é multifacetado, podem-se descobrir nele inúmeras potencialidades. É mais rico. No artificial, também se podem encontrar usos não concebidos antes, mas é a exceção; no natural, é a regra.

Dessa forma, quando uma obra de arte se conecta com a realidade – o que não significa, como vimos, ser mero espelho da realidade -, acaba incorporando essas qualidades do “real”. Torna-se um mundo, os seus horizontes se ampliam, as possibilidades de contemplação se multiplicam.

Penso que essa é outra das grandes características de Dégas. Não cansa, em razão de ser uma obra “aberta”, que deve ser olhada com calma, serenamente. Admite muitas visões, várias delas plenamente conformes com a materialidade da obra. Vai-se descobrindo aos poucos. Revela hoje o que não havia expressado ontem. Estabelece um diálogo contínuo com o observador. E, como em todo bom diálogo, não diz tudo de supetão; fala aos poucos, sem pressa.

Em Dégas, como em todo grande artista, a técnica não limita a individualidade nem a capacidade de transmitir o que ele, individualmente, quer dizer: potencializa-as. Conseguiu, parece-me, um feliz equacionamento, uma proporção harmoniosa entre o desejo de ser “realista” e a subjetividade criadora. Em cada artista, em cada obra, há uma proporção particular. A questão da boa ou da má arte não está no grau específico de realismo (ou de “subjetivismo”) presente nela, mas em saber unir esses aspectos, e não simplesmente encará-los como excludentes, contraditórios.

 

Nicolau da Rocha Cavalcanti é bacharel em Direito pela UERJ, com atuação no Rio de Janeiro e em São Paulo.

 

 



 

 

[1] Cláudio Abramo, A regra do jogo. São Paulo: Cia. das Letras, 1988, pág. 25.

[1] Richard Wollheim, A pintura como arte. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, pág. 170. 

[2] Roger Fry, Visão e forma. São Paulo: Cosac & Naify, 2002 pág. 269. 

[3] Cf. Ana Gonçalves Magalhães, Degas escultor: Do processo de fundição à coleção de bronzes do Museu de Arte de São Paulo. Tese de doutoramento ECA/USP, 2000.

[4] Paul Valéry, Dégas Dança Desenho. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2003, pág. 23.

[5] Cf. Ana Gonçalves Magalhães, ibidem.