Despojo triste, corpo mal nascido…

de António Ferreira

  

Despojo triste, corpo mal nascido,
escura prisão minha e peso grave,
quando, rota a cadeia e volta a chave,
me verei de ti solto e bem remido?

Quando, co esprito pronto, aos Céus erguido,
(depois que est’alma em lágrimas bem lave)
batendo as asas, como ligeira ave,
irei aos Céus buscar meu bem perdido?

Triste sombra mortal e vã figura
do que já fui, uns dias só sustida,
daquele esprito por quem cá vivia,

quem te detém nesta prisão tão dura?
Não viste a clara luz, a santa guia,
que te lá chama à verdadeira vida?

 

Publicado em 1598, 29 anos depois da morte de seu autor, este soneto de António Ferreira é parte da seqüência de onze sonetos que ele dedicou à sua esposa prematuramente morta. No mais célebre, o nono, Ferreira trai-se com um erro cosmológico e diz que o amor divino transformou-a em estrela “do céu terceiro”, o céu de Vênus (a “estrela” e outros elementos na série sugerem que não se trata de uma referência ao “terceiro céu” de 2 Coríntios, 12). O erro está em ignorar que o “céu das estrelas fixas”, que chamamos hoje simplesmente de estrelas, fica acima dos sete céus planetários. É fácil aceitar a metáfora de que Deus tenha feito de uma boa alma uma estrela, mas aceitar que Ele ainda a tenha posto alguns céus abaixo, como uma gêmea da estrela d’alva e da tarde, é pedir demais. Isso ainda contrariaria as atribuições de guia que Ferreira dá à esposa morta – quem pode se guiar por um astro que só se vê por no máximo três horas? Essa imperfeição grave é suficiente para colocarmos o soneto entre parênteses, mas não sem deixar de aproveitar o que ele tem de melhor: os dois tercetos finais, cuja extrema limpidez remete ao “Soneto à Carolina” de Machado de Assis.

 

E tomando-me a mão leda, e risonha,
meu doce amigo (diz), vinda é minh’hora,
quem nos assi cá atou, soltou o nó.

Quem mais cuida que vive, esse mais sonha.
Lá onde não se geme, nem se chora,
t’amara mais est’alma, o corpo é pó.

“Pó”. Ou, nas palavras do soneto na página ao lado, um “despojo triste”. Num certo sentido, algo muito parecido com aquela folha que cai na Ilíada. A diferença está naquilo que se considera bom: para os gregos, os prazeres da juventude e a imortalidade do nome; para o renascentista António Ferreira, a “verdadeira vida” que existe após a morte, na qual sua esposa já se encontra.

A esposa de António Ferreira de fato havia morrido, e ele não era ainda um homem tão velho que (mesmo num século desprovido de tecnologias como as nossas) tivesse vedadas certas possibilidades de prazer. Seu “corpo mal nascido” não estava caquético. Sua atitude diante da esposa e da morte é bastante distinta da grega, mas não exatamente por causa da entrada em cena de um catolicismo com tons de quarta-feira de cinzas, como o leitor deve estar esperando, até porque o livro só foi publicado porque a Inquisição autorizou – o que, como veremos, é bastante curioso.

Naquele nono soneto, Ferreira põe sua esposa no céu de Vênus para associar a beleza e a atratividade à espiritualidade. Não que essas coisas não possam estar juntas: a vida espiritual celeste certamente não há de ser feia ou repulsiva. Porém, antes que se comece a enxergar a mera oposição entre catolicismo e paganismo na idéia por trás da pergunta “Quando… irei aos céus Buscar meu bem perdido?”, vamos lembrar que o rito católico do matrimônio inclui a frase “até que a morte os separe”. Por isso, a resposta católica é: “Nunca.”

Esse desprezo em relação ao “despojo triste” e a oportuna ignorância de que o amor matrimonial não se estende à vida eterna sugerem na verdade uma torção para seguir a moda petrarquiana que chegara a Portugal junto com o verso decassílabo: assim como a famosa Laura era uma mulher inacessível por ser casada, a musa de António Ferreira ganhava esse status com a morte (Beatriz, musa de Dante Alighieri, continua imbatível por ter sido mulher de outro e morrido jovem). O que não impede que a fluência de Ferreira e o encadeamento perfeito das idéias garantam a qualidade e o interesse desse legítimo ato de imitação e apropriação.