Duas anotações sobre Machado

Por Gilberto de Melo Kujawski

O RIO MACHADIANO – CORTE VITORIANA NOS TRÓPICOS

Já se observou que a corte brasileira do segundo reinado seria a réplica tosca e desbotada da corte vitoriana inglesa. Assim, Gilberto Freyre: “Com a maioridade começou no Brasil uma época bem caracterizada nas suas tendências e virtudes. No seu cinzento. Espécie de era victoriana brasileira, com dom Pedro projetando sobre a vida nacional uma sombra de governante inglesa fantasiada de imperador” .

A observação é prodigiosamente sutil e dotada de incalculável fecundidade. O segundo reinado centrou-se ao redor de uma corte vitoriana instalada no coração dos trópicos. E como é óbvio, a corte, isto é, a cidade do Rio de Janeiro, ditava para o restante do país os valores dominantes na moral, nos usos, nas preferências estéticas. O modelo parlamentarista britânico extravasava da política para a organização social e da vida cotidiana.

Gilberto Freyre acentua que o estilo vitoriano veio desde logo oprimir a vida brasileira em sua espontaneidade solta e nativa, a começar dos primeiros anos de vida dos súditos. As crianças não tinham infância. Desde os doze ou quatorze anos, as meninas se preparavam para ser mães, e os meninos de oito anos andavam “a passo de enterro e de preto, chapéu e roupa de homem”. À semelhança do que ocorria com o menino Pedro em palácio, a vida do menino e da menina era regulamentada e formalizada nos detalhes e nas menores coisas.

Em relação aos adultos, o olho do imperador fiscalizava seu comportamento passo a passo, “com suas preocupações de marcar a lápis azul o estadista que tinha amante, o senador que bebia, o político que jogava”. Comenta o sociólogo e antropólogo pernambucano que Pedro II, com sua “tirania da moralidade”, pretendia “acinzentar em calvinista o povo que governava”.

Mesmo antes da era vitoriana, a vida na corte de Versalhes sofria o rígido controle e a mais opressiva disciplina hierárquica na postura dos nobres palacianos. As regras minuciosas e os padrões de comportamento dos cortesãos de Versalhes impunham-se às demais cortes européias. A corte era teatro de um ritual solene, onde cada participante tinha lugar e papel marcados, com suas maneiras e seu discurso ordenados e disciplinados em obediência à majestade intocável do soberano reinante. As relações de convivência entre os nobres e destes com a realeza não se passavam ao sabor do acaso, nem eram expressões da vontade e da personalidade de cada um, e sim procedimentos calculados e enquadrados pela etiqueta e o cerimonial do paço, a residência do soberano.

Debaixo da função civilizadora desempenhada pela etiqueta cortesã, tão bem estudada em pormenor por Norbert Elias [1], a razão de ser da corte e de todo seu cerimonial era trazer a nobreza para junto do rei e imperador, com a finalidade de controlar as ambições e os devaneios de poder da aristocracia. O duque de Saint-Simon (1675-1755), nas suas famosas Memórias, descreve e documenta as lutas de prestígio e pelo poder, surdas ou escancaradas, que se desenrolavam no interior da corte francesa sob o manto do cerimonial imponente e suntuoso, ao tempo de Luís XIV e da Regência.

A etiqueta era um sistema de poder articulado para subjugar os nobres, seduzi-los, e abafar suas veleidades de competir com a autoridade do trono. Inteiramente cooptados, os barões, duques e marqueses não passavam de marionetes bem comportadas nas mãos da autoridade dominante. Homens e mulheres eram esvaziados de sua personalidade, de sua vontade, de sua liberdade, reduzidos a simples peças da engrenagem monstruosa de que faziam parte.

  

Gentleman, o homem que sabe o que não deve fazer

 Na corte de D. Pedro II e de sua monarquia constitucional, a situação não era diferente da que marcava as monarquias absolutas.

A historiadora Lilia Moritz Schwarcz lembra a série de interdições impostas pelos manuais de bom-tom por ocasião dos jantares na corte imperial, por exemplo. O café, não se podia deitá-lo no pires, devia ser bebido pouco a pouco, o que até parece razoável. Menos razoável a proibição de mencionar o nome da ave servida – frango, galinha, capão ou peru. O pão se partia com as mãos, não com os dentes, nem com a faca. Nunca se embebia o pão no vinho ou no molho, nem para enxugar o prato. Nada de espirrar, nem de falar fora de hora, nem de fixar o olhar só numa pessoa, em vez de olhar para todos. De maneira geral, para as mulheres recomendava-se: “Se se calarem, cala-te também. Se te divertires, não mostres senão uma alegria moderada; se estiveres aborrecida, dissimula e não dês a conhecer. Nunca por tua vontade prolongues uma conversação” [2].

Em suma, toda esta codificação negativa do “não pode isso”, “não pode aquilo”, penetrava fundo nos corações e mentes dos cortesãos, que eram vistos como modelos de comportamento para toda a sociedade. Modelava um tipo humano inibido e exageradamente contido em sua expressão corporal, emocional, mental e ética, guiado somente pela norma do que não devia ser feito. Ora, para ficar no gênero masculino, o homem que se pauta pelo que não deve fazer é o gentleman, a fina flor do cortesão europeu, e especialmente vitoriano. O gentleman surge como o avesso do cavalheiro, o homem que sabe o que deve fazer.

Na Inglaterra, o tempo heróico dos cavalheiros ficou para trás na era vitoriana. Nada da ousadia e do idealismo dos cavalheiros, que foram os construtores do império britânico, varões cheios de ambição e audácia, alimentados por projetos mirabolantes, incansáveis em sua vocação de guerreiros, exploradores, colonizadores, homens de ação no sentido mais amplo da palavra, e políticos sempre avançados. Sir Walter Raleigh, navegador e homem de Estado, fundador de um estabelecimento na América do Norte. Robert Walpole, que lançou os fundamentos do império britânico e do regime parlamentar no século XVIII. William Pitt, o exemplar e glorioso ministro de Jorge III. Lord Nelson e o duque de Wellington, que venceram Napoleão no mar e em terra.

No tempo da Rainha Vitória vocações com tamanha energia e força executiva não tinham mais lugar. O importante, o de bom tom era apresentar-se como gentleman, o homem comedido, cauteloso, impessoal, que só sabe o que não deve fazer para não desafiar as convenções e os valores consagrados de uma sociedade acomodada. Não é mais o executivo audaz, empreendedor, pioneiro, e sim o diplomata hábil ao estilo de Disraeli. Romancista que foi, Disraeli fantasiou um conselho típico da época, que colocou na boca de Robert Peel, e que o próprio Disraeli seguiria em sua ação como ministro da Rainha: “Seja franco e resoluto. É a melhor maneira de esconder seus verdadeiros pensamentos e de semear a confusão entre outras pessoas”.

Na história da Inglaterra, sir Neville Chamberlain, um perfeito gentleman na tradição vitoriana, inseparável de seu guarda-chuva (símbolo de postura defensiva), primeiro ministro em 1940, quando a Alemanha nazista ameaçava ferozmente o país, teve que ceder o comando para seu oposto em estilo e temperamento, sir Winston Churchill, o último remanescente dos antigos cavalheiros britânicos, que galvanizou as energias da nação como grande guerreiro e homem de Estado e assegurou a sobrevivência de sua pátria.

 

 A transgressão é a face oculta do puritanismo

 Toda sociedade declaradamente puritana esconde em suas entranhas a tendência irresistível para a transgressão. A hipocrisia dos fariseus, que batiam fervorosamente no peito como se fossem o modelo de todas as virtudes e que desprezavam acintosamente o próximo, mereceu do Cristo as mais veementes denúncias, valendo-lhes a qualificação de “sepulcros caiados”, bonitos por fora mas cheios de podridão por dentro. O puritanismo vitoriano nada tinha de heróico, ao contrário do puritanismo, por exemplo, dos pais fundadores na América, este sim, sincero e radical. Ao tempo da Rainha Vitória o puritanismo foi sempre uma atitude exterior, falsa, própria para ser ostentada nos salões, nas igrejas, nas reuniões de família, mas sem nenhuma verdade interna.

A sociedade vitoriana era dúplice: por fora, a máscara da pureza e do maior rigor moral, e por dentro, o espírito de contradição, que convidava as pessoas a praticarem na intimidade o que condenavam em público. Não por outra razão a sociedade puritana dos ricos e acomodados destila ironia por todos os poros. A ironia, na corte vitoriana, foi o equivalente do esprit na alta sociedade francesa. As jovens inglesas, carnalmente exuberantes e de ânimo buliçoso, nos salões fingiam sobriedade e abstinência, mas na intimidade usavam e abusavam do vinho do Porto que lhes aquecia o sangue e lhes avermelhava as faces, inspirando-lhes as mais picantes expressões de perversa ironia. Nas reuniões sociais era consabida a hipocrisia dos participantes em matéria de conduta moral e sexual. Ninguém era santo. Daí a troca de ditos ferinos que alimentavam a convivência das pessoas nos níveis mais altos.

Mas naquela sociedade inglesa do século XIX não bastava a transgressão velada e dissimulada da maioria dos seus membros. Havia lugar também para a transgressão aberta, atrevida, provocativa, assumindo com freqüência ares de escândalo deliberado. Assim, a vida de lord Byron foi uma história de desafios e violações de todas as mais sagradas convenções sociais e morais, a ponto de resvalar – segundo se diz – até para o incesto com a própria irmã. Mais tarde, Oscar Wilde, com sua mordacidade, elegância e talento cênico, chamava sobre si a atenção de seu país e do estrangeiro pela confissão pública de homossexualidade. Romancistas nada convencionais, como D.H. Lawrence, celebravam em suas obras o culto do erotismo como a união cósmica dos amantes, recebendo os aplausos dos inconformados com o código de hipocrisia reinante. Suas heroínas, como lady Chatterley, projetavam-se no imaginário da época como modelos do sexo livre e ritual, apelando para a mística pagã nos antípodas do cânone cristão. E cumpre lembrar ainda o outro Lawrence, T.E. Lawrence, que renunciou ao comodismo e à segurança da vida na metrópole, para assumir a liderança da causa árabe contra os turcos, transformado em herói épico na sua vestimenta de beduíno para o maior escândalo de seus compatriotas.

  

A transgressão na sociedade do segundo reinado

 A sociedade imperial à sombra de D. Pedro II foi a réplica pobre e desajeitada da brilhante corte vitoriana, com idêntica obsessão pelo puritanismo e idêntica simulação de virtudes morais, cívicas e religiosas. Com sua exigência de compostura, o imperador regia, no dizer de Gilberto Freyre, na figura de uma nurse inglesa, a conduta dos ministros, dos auxiliares de confiança, e, virtualmente, de todo o país, com rigor “calvinista”, não perdoando o menor deslize.

Na corte, isto é, na cidade onde residia o soberano, homens, mulheres e crianças deviam andar na linha, vestindo trajes solenes, formais, em pleno calor tropical. Era uma sociedade abafada, cinzenta, reprimida, encasacada e espartilhada, não só na indumentária como na mentalidade, na conduta pública e familiar, policiando as maneiras, as palavras, os pensamentos e os sentimentos.

Como em toda sociedade autopoliciada tão rigorosamente, sob a capa do bom comportamento externo fervilhavam as transgressões de todo tipo. Não transgressões públicas e afrontosas, a exemplo das praticadas por personalidades vigorosas como lord Byron e outras na Inglaterra. Não, as transgressões dos modelos puritanos aqui eram surdas, abafadas, secretas, dissimuladas, como num baile de máscaras em Veneza.

Subsistia o condicionamento histórico para a mascarada em que se transformou no segundo reinado a convivência social. Pesava uma contradição irredutível entre a sociedade e o Estado brasileiros ao tempo de D. Pedro II. O Estado imperial adquirira forma e figura, de linhas firmes e bem desenhadas. Era encarnado por um soberano dinasticamente legítimo, herdeiro da coroa, organizado por uma constituição estável, servido por um senado vitalício, uma câmara de deputados, e por códigos de alcance nacional. Politicamente, o Brasil possuía forma e figura de Estado, unido territorialmente, estruturado por instituições permanentes, enquanto seus vizinhos da América espanhola eram dominados por caudilhos sanguinários, sem constituição nem governo estáveis, e sempre à beira da fragmentação.

Pois bem, ocorre que neste Estado sólido e integrado que era o Brasil, a sociedade brasileira do Brasil profundo nunca esteve devidamente representada. Quais eram as forças dominantes da sociedade novecentista em nosso país? Respondo com Gilberto Freyre. Eram, em primeiro lugar, naquela sociedade constitutivamente patriarcal, os senhores de engenho, criadores da riqueza nacional, a nobreza rústica do interior do país, com a qual era forçoso contar como o substrato social mais importante da nossa arquitetura política. Pois bem, este patriarcado primitivo, do interior das províncias, não estava representado no segundo reinado. D. Pedro afastou-se dos senhores de engenho, dos donos da casa-grande. “Deixou de ser o pai e o aliado dos pais-senhores de engenho, dos pais-barões, dos pais-fazendeiros” [3]. Como se não bastasse, o imperador veio a indispor-se também com as duas outras forças decisivas no cenário do país: a Igreja, fator fortíssimo em nossa formação, dominando corações e mentes Brasil a fora, e o Exército, emergindo revigorado após a Guerra do Paraguai.

Qual foi a base política de Pedro II, soberano letrado, livresco, de formação iluminista? Só poderiam ser os filhos daqueles senhores rurais, estudados em Coimbra, ou seja, “os bacharéis revoltados contra toda espécie de tradição” [4]. Os bacharéis impavam de satisfação no barco do parlamentarismo. Só que aquele barco não possuía lastro suficiente para navegar a prumo e com a devida segurança. O lastro seriam, justamente, os “pais-senhores de engenho”, a Igreja e o Exército. Por onde se explica a queda iminente da monarquia ao final do século.

Moral da história: D. Pedro II, ao qual devemos a integridade do território nacional, sua unidade e estabilidade política, conduzido por sua formação cultural livresca e romântica, quis europeizar, branquear, “civilizar” o país, transformando-o numa sucursal da sociedade vitoriana, com sua moral de aparências, induzindo os devaneios bovaristas que justificaram a cultura da transgressão em seus escaninhos mais recônditos, alcançados pela perscrutação de Machado de Assis que ali descobriu a matéria-prima de toda sua obra.

  

Machado de Assis, o caçador das transgressões

 A sociedade brasileira do segundo reinado estava construída em bases falsas. Primeiro, a repressão da espontaneidade vital pelo puritanismo vitoriano falsificava usos e costumes. Segundo, a supressão do patriarcado rural e da Igreja na representação política e no imaginário coletivo falsificava o projeto de futuro nacional com base em nossa realidade, reduzindo-nos a uma cópia bacharelesca da Europa parlamentarista e liberal.

O mundo da corte era um mundo de aparências. Mas ninguém sustenta as aparências durante muito tempo sem se deixar arrastar pela transgressão. “Qui veut faire l’ange, fait la bête”, relembrando Pascal. O que significa dizer que o mundo da corte era, isso sim, porta aberta para a transgressão do código puritano, com todas suas repressões e proibições morais e sociais.

A matéria-prima de Machado de Assis era extraída da sociedade patriarcal urbana, sediada na corte, dominada pelos bacharéis, dissociados do patriarcalismo rural, onde estavam as raízes profundas da nacionalidade. A corte simulava virtudes que não possuía, à sombra inquisitorial do imperador, e acalentava devaneios bovaristas, imaginando-se desligada de sua circunstância histórica e cultural, como sucursal da Europa branca, parlamentarista e liberal. Nesta atmosfera de estufa, abafada e desvinculada da realidade, florescia a arte da transgressão secreta, dissimulada, encoberta, na qual se cevavam, voluptuosamente, os membros da classe dominante.

Machado de Assis era, ao mesmo tempo, cúmplice e crítico desta situação. Cúmplice porque foi apoiado naquela mesma sociedade que ele se firmou como homem e como escritor admirado e respeitado. Crítico, porquanto sua lucidez e sua vocação de clássico para a visão integral das coisas, não lhe permitia aceitar como legítima uma exteriorização de virtudes e comportamento que sabia ser falsa. Servindo-se da lâmina cortante da ironia, Machado descobria e analisava, metodicamente, os fundos falsos, a comédia da hipocrisia, o teatro do farisaísmo que o cercavam por todos os lados.

A “Teoria do Medalhão” (em Papéis Avulsos), um de seus contos mais citados, na sua ironia mordente é emblemático da crítica social que animava a pena incansável do Bruxo. Um pai bem intencionado explica ao filho de vinte e um anos, pronto a se lançar ao mundo, como é que se faz para vencer na vida: nada de planger nem imprecar, “mas aceitar as cousas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante”. Para sobreviver numa ordem de coisas dominada por convenções farisaicas, de duas, uma: ou a pessoa transgride o código de imposições vigente, ou ela se adapta à ordem estabelecida. O medalhão não transgride nem em pensamento. Conforma-se com as disposições estabelecidas e se insere docilmente em seu universo, sem esboçar o menor gesto de protesto ou rebeldia. Nada de arroubos próprios da mocidade, de ardores e improvisos. Tudo tem que ser planejado segundo “o regímen do aprumo e do compasso”. A compostura do medalhão vem definida pelo sábio que disse ser “a gravidade um mistério do corpo”. Sim, do corpo, não do caráter nem da inteligência, deixemos de histórias. O que o aprendiz de medalhão deve fazer em primeiro lugar é procurar um ofício, uma carreira. E o que mais atrapalha a carreira é a tentação de ter idéias, idéias próprias. “O melhor será não as ter, absolutamente”. Conforme resume Ayrton Marcondes, autor de um livro marcante sobre Machado de Assis, que vem de ser publicado: “O objetivo é atingir a mediocridade perfeita, meio eficaz de conseguir êxito” [5].

Esse livro é um estudo metódico, honesto, clarividente, do legado machadiano, acompanhado nas sucessivas fases de sua formação. Leva o subtítulo de “exercícios de admiração”, mas o certo seria colocar “exercícios de compreensão”, de análise percuciente, sem pedantismo, sem ares doutorais, levado a cabo mais na posição de leitor apaixonado do que de crítico arrogante em sua torre de marfim. A propósito da visão pessimista de Machado, destilada corrosivamente nas Memórias póstumas de Brás Cubas, observa Ayrton, depois de reconhecer que Machado admite exceções na falta de caráter de seus personagens: “Existem sim, exceções, mas transitórias. Uma boa alma o será até que uma força maior a subjugue. A corrupção está ao alcance de todos mesmo aos que insistem em resistir a ela. O mundo é feito de aparências, cada homem utiliza as máscaras que lhe convêm” [6].

Nosso romancista e contista maior fez da caça às transgressões ocultas sob a máscara da virtude e do bom comportamento o tema genérico de sua prosa, escrita sutilmente, em estilo filigrânico. O esquema básico da transgressão em Machado, como é fartamente sabido, constitui-se do triângulo amoroso, marido-esposa-amante. Neste esquema, destaca-se e avulta a transgressão da mulher adúltera. Aos homens tudo era permitido. Já a mulher, insurgindo-se contra a sociedade machista e opressora do tempo, não somente no Brasil, mas pior aqui por força do aparelho repressor patriarcal, a mulher adúltera, ainda que por vias ilegais e imorais, assumia ares de heroína da causa feminina, destacando-se como uma espécie de Joana d’Arc sacrificada pelo obscurantismo medieval.

Outra fórmula de transgressão muito presente em Machado, mais freqüente no homem, no varão, pode ser definida como a perversão do caráter, dispondo o cidadão a fazer tudo por causa da sua promoção social, profissional ou política: traição, oportunismo o mais vergonhoso, egoísmo o mais impiedoso, etc.

Ainda outra variedade de transgressão, esta sim, escancarada e espetacular, era a loucura, a doideira de Simão Bacamarte e de Quincas Borba, entre outras. O tema da loucura, recorrente em Machado, ainda não foi devidamente avaliado e estudado. Seus maiores expoentes, Simão Bacamarte e Quincas Borba, são dois infatigáveis raciocinadores, e sua loucura consiste em levar ao limite as exigências da racionalidade, antecipando a descoberta de G.K. Chesterton, segundo a qual o louco, a última coisa que perde, é a razão.

 

 

MACHADO DE ASSIS, O TROCISTA

 O estilo de Machado de Assis

 Vistos os grandes temas de Machado, examinemos um pouco o seu estilo. Diante da hipocrisia humana, o grande recurso do homem maduro – de Sócrates a Montaigne -, tem sido a troça, a ironia. A indignação tem qualquer coisa de imaturo, pois o indignado parece situar-se na posição de um juiz; o trocista, pelo contrário, não se exclui do rol dos simples mortais. Dentro da condenação que esboça, tem compreensão pela fraqueza.

Todo estilo literário é fruto do “humor”, deste estado de espírito ou de ânimo que constitui o pano de fundo de nossas tonalidades afetivas. Assim, o estilo de Jorge Amado deriva daquele humor generoso de sua pessoa, aberto ao mundo e derramando-se nele. Já o oposto é o humor de Graciliano Ramos, seco e áspero como o mandacaru, à semelhança do seu estilo. Como não sentir a diferença entre o humor hedonista de Eça de Queiroz, responsável por seu estilo guloso de sensações, e o humor bilioso de Camilo Castelo Branco, manejando o estilo como um porrete? E que dizer, então, do humor vulcânico de Euclides da Cunha, refletido na fogosidade do seu estilo?

Pois bem, contrastando com todos esses tipos viscerais de humor, o humor de Machado de Assis paira muito acima das contingências do temperamento. O humor de Machado de Assis, sublimado, cultivado, é um humor apolíneo, isto é, superiormente sereno, imperturbável, muito acima das paixões, misérias, contradições e absurdos da vida cotidiana, iluminando por igual todas as coisas, respeitadas as zonas de sombra (o destino, a morte, a loucura, etc.). Este humor apolíneo de Machado responde por seu estilo sempre igual, sem excessos nem mínguas, sutilmente equilibrado entre o dito e o não dito, e totalmente despido do menor resquício de patetismo ou retórica inflada.

 

 O mais clássico dos autores

 Machado de Assis, o mais clássico dos autores brasileiros, também “queria” ser um clássico, era movido pela vontade de classicismo, como nenhum outro autor nacional. Classicismo entendido nos termos de Ortega, como “um princípio de conservação da energia histórica”. Em outras palavras, o autor clássico vive em interação com as forças de seu momento histórico. Pense-se em Dante, em Camões, no Padre Vieira, em Cervantes, em Shakespeare, em Balzac, por exemplo. Já o autor comum passa pela vida encerrado no casulo da subjetividade, e pode até fazer algum sucesso em seu tempo, mas não permanece.

Erro de perspectiva é conceber o clássico como o velho, o antigo. Fosse assim e só os gregos e os romanos mereceriam o nome de clássicos. Não existiriam clássicos da modernidade, nem do modernismo, como os citados Shakespeare, Camões, Cervantes, ou Proust, Fernando Pessoa, Drummond. Fique bem claro que não é a antigüidade o critério do classicismo, e sim a interação com as forças históricas que forjam o autor. Quem participa do seu momento, permanece para sempre; do contrário, desaparece. E ninguém como Machado participou tão a fundo, na dupla condição de incluído e excluído, dos meandros, dos segredos, dos valores da sociedade do segundo reinado.

Conste, pois, que Machado, o grande Machado, foi um clássico à segunda potência. Não só merece ser considerado um clássico, como quis ser e imortalizar-se na condição de clássico. Para ser considerado um “clássico”, o autor tem que ser aclamado como tal pelo público e pela crítica. Pois antes que esta aclamação se efetivasse, Machado assumiu o propósito firme de construir-se como um clássico ao longo de sua obra. Sua pretensão deliberada como escritor era amoldar-se segundo o padrão do aticismo, o estilo puro, sóbrio e elegante, em nível único quando comparado a qualquer outro prosador entre nós. Ninguém duvida de que o conseguiu plenamente.

 

 Machado, o incorrigível brincalhão

 Aquele a que se chama o maior escritor brasileiro gostava de brincar o tempo todo com seus personagens e com o leitor. Machado é um terrível ilusionista, faz tomar a nuvem por Juno, despista o leitor, arma ciladas a cada passo da narrativa, finge que vai por aqui e vai por ali, surpreende, engana, prega peças sem parar. E sempre com o aspecto sisudo e consumado do acadêmico impassível: um pince-sans-rire, isto é, a pessoa que graceja, ri, sem perder o ar de seriedade, sem se entregar.

O Bruxo do Cosme Velho carregava dentro dele um molequinho travesso. Parece que não dá para acreditar. E a pose acadêmica, seu formalismo, aquele olhar aparentemente severo? Pura máscara. Toda aquela gravidade e circunspeção, o pince-nez, o ar meditativo e filosófico, o pessimismo irredutível, era tudo triturado no liquidificador da troça e da molecagem. “Em geral, a história (de Machado) se arma como uma seqüência de surpresas para o leitor”, repara Otto Maria Carpeaux. O admirável crítico, tão europeu e tão metódico, se fosse hoje, em lugar de “surpresas para o leitor” diria “pegadas”, ou “pegadinhas”.

  

O enigma de Capitu foi proposto para não ser decifrado

 Seria impossível rastrear ao longo da obra machadiana toda a seqüência de surpresas, pegadas, esparrelas que o autor propõe ao leitor, mas a maior, a mais fina e bem elaborada daquelas armadilhas é o famoso “enigma de Capitu”. Machado deve rir às bandeiras despregadas com a seriedade e o empenho de todos os que indagam, inocentemente, “afinal, Capitu traiu ou não traiu Bentinho?” Não passa pela cabeça das pessoas que o autor de Dom Casmurro quis divertir-se com a posteridade, forjando um quebra-cabeça sem solução, concebendo um cálculo de soma zero, no qual os juízos pró e contra se neutralizam e se anulam. Têm sólidos argumentos tanto os que apostam na traição quanto os que apostam na fidelidade de Capitu. Conclusão: se todos têm razão, ninguém tem razão. Ah! Não fosse Machado leitor cuidadoso e tradutor de Edgar Poe, com sua intrigante “filosofia da composição”, brincando de ensinar como se compõe um poema a frio, sem a menor inspiração, seguindo, apenas, o roteiro dos efeitos psicológicos. Uma comédia magistral de trapaças com a criação literária, que ninguém pode levar a sério, mas que é engenhosa e divertida.

A razão está com Milton Hatoum. Respondendo à pergunta óbvia do entrevistador “Você acha que Capitu traiu Bentinho?”, retruca o escritor amazonense: “Acho que ambos atraíram os leitores e depois os traíram com uma dúvida eterna” [7]. Perfeito, o hábil literato, com esperteza levantina, recusa-se a entrar na proposta sim ou não do leitor de Dom Casmurro, sugerindo que entre o “sim” e o “não” existem inúmeros matizes e muitas variáveis.

Havia naquele Bruxo venerável um molequinho travesso, e não basta em Machado acompanhar as artes solenes do Bruxo sem captar também as travessuras ligeiras do moleque escondido dentro dele, quase um Macunaíma. O Bruxo e o molequinho travesso andavam juntos e em parceria.

O moleque levado disfarçado sob as barbas de Machado se projetava em muitos de seus personagens. O menino Brás Cubas desde os cinco anos merecera a alcunha de “menino diabo”. Cavalgava Prudêncio, o moleque da casa, fustigava-o impiedosamente, e aos seus gemidos retorquia “- Cala a boca, besta”. E mais: “Esconder os chapéus das visitas, deitar rabo de papel nas pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil” (Memórias póstumas de Brás Cubas). Na figura da Cartomante, no conto do mesmo nome, aquele moleque, disfarçado em pitonisa de arrabalde, usa e abusa da paciência ingênua do leitor.

Outro personagem no qual Machado projeta seu ânimo vário e buliçoso é, justamente, Capitu, com seus “olhos de ressaca”, “oblíquos e dissimulados”, e “as idéias hábeis, sinuosas, surdas”, as reações inesperadas e o espírito manhoso. Se o Brasinho é o “menino diabo”, Capitu é, por sua vez, a “mulher diaba”. Um prodígio de construção de personagem, jamais antes visto em qualquer literatura. Capitu é a mulher rigorosamente hermética, que leva à quintessência o caráter secreto de toda mulher, encerrada dentro de si numa autopossessão típica da personalidade demoníaca: o não entregar-se a ninguém. No decorrer de toda a história da literatura, qualquer personagem é criado para dizer a que veio, manifestar algo de sua identidade, mesmo de forma embuçada. Capitu, não. Não há como pegá-la, palpá-la, trazê-la junto a nós. Capitu é a fugacidade feita mulher.

 

 Humor apolíneo e molecagem

 As diabruras literárias de Machado, suas artimanhas, dissimulações, trapaças narrativas, estão em paralelo com as peraltices do pequeno Brás ao esconder o chapéu das visitas, deitar rabos de papel nas pessoas graves, dar beliscões nos braços das matronas, puxar pelo rabicho das cabeleiras, etc. Sim, caro leitor, quando você discute, com máxima seriedade, se Capitu traiu ou não traiu, se apurar os ouvidos poderá ouvir o riso escarninho do Bruxo, como um rabo de papel que ele prega em toda sisudez investigativa.

Mas a pergunta é sobre que relação guardará aquele humor apolíneo machadiano, com sua tendência para molecagens de todo tipo. Não sei se Apolo, o deus da luminosidade, da sabedoria e da perfeição espiritual, gosta de se divertir com a ignorância, a avidez e a falta de jeito dos humanos. O certo é que os oráculos de Delfos, inspirados por Apolo, primavam pela ambigüidade, como que zombando de toda interpretação unilateral dada como a certa e a única. Pergunto se não é a mesma zombaria que distingue Machado, ao levantar o véu encantado da fantasia, da hipocrisia e dos usos consuetudinários que encobre esse duelo de egoísmos que, na sua visão, seria a sociedade vivendo sua duplicidade.

No Prólogo das Memórias póstumas de Brás Cubas, depois de revelar que escreveu o livro com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”, o autor dá uma cabriola divertida, sem medo de ficar mal com a postura da sisudez acadêmica: “A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus”. Um piparote? Até então nenhum autor de respeito tratou assim o leitor.

Pois bem, em Machado, o humor apolíneo, imperturbável, pairando mil léguas acima das paixões, dos enganos, das contradições e absurdos da vida humana, assume o feitio irreverente e atrevido daquele molequinho trêfego que se agitava nas entranhas do mulato humilhado pelo preconceito e a mediocridade de uma sociedade escravocrata em decadência. O humor apolíneo explica a pena da galhofa e disfarça a tinta da melancolia, pois o Bruxo é mestre nos disfarces.

  

Conhece-te a ti mesmo

 O humor apolíneo responde não somente pelo estilo trocista de Machado, como pelo imperativo ético e espiritual que permeia toda sua obra: o “conhece-te a ti mesmo”, supremo mandamento irradiado pelo Oráculo de Delfos para toda a Grécia e todo o mundo antigo. É simplesmente inexplicável que até agora – ao que eu saiba – a crítica não tenha descoberto no conjunto da obra machadiana um extenso e aprofundado esforço de autoconhecimento, na linha memorialista das Confissões do querido Santo Agostinho.

E o ponto culminante desse autoconhecimento, dessa autognose implacável, constitui, justamente, sua obra-prima, Memórias póstumas de Brás Cubas. Sabiamente, o autor encarrega um morto de escrever suas memórias. Porque só depois de morto estamos completos para nos conhecer. Só depois de cessada a vida, o homem tem a possibilidade de conhecer-se por completo, sem disfarces nem ilusões. O morto assume a condição assinalada por Mallarmé referindo-se à morte de Edgar Poe:

 

Tel qu’en lui-même enfin l’éternité le change

(“Tal como nele mesmo, enfim, a eternidade o transforma”).

 

Quem disse que para Machado a vida não tem sentido algum, seria um nonsense total? Não é verdade. O sentido da vida, da minha, da sua, de cada vida é esse autoconhecimento praticado e renovado a vida inteira na busca de si mesmo. Ao longo da atormentada busca de si mesmo, Brás Cubas chega à conclusão de que a vida, à medida que passa, vai se corrigindo a si mesma. É o que expõe na teoria das erratas: “Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação na vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes”. O sentido da vida estaria na sua própria condição perfectível? Por que não?

Simão Bacamarte precipita-se na alienação por falta de autoconhecimento, indispensável para saber que louca não era a população inteira de Itaguaí, louco era ele mesmo.

A crença no ceticismo de Machado precisa ser repensada. Ele mesmo protestou contra sua falsa fama de cético [8]. Dizia-se “pessimista” e argumentava: “Achar que uma coisa é ruim, não é duvidar dela, mas afirmá-la”. Seu pessimismo era o atributo comum dos intelectuais do final do século XIX. Porém sua marca própria, pessoal, não é nem o ceticismo, nem o pessimismo, e sim o relativismo. Não o relativismo tolo de hoje, mas um “relativismo do relativo” que, sem lançar pedras à verdade e ao bem, tira importância a todas as coisas secundárias que tendemos a dogmatizar.

Não, Machado não foi cético. O ceticismo pode ser um dogmatismo, e ele abominava todo e qualquer dogmatismo. O autor de O Alienista possuía mente aberta. Acreditava numa coisa e no seu contrário: “Não serei eu que chame a isto verdade ou mentira. Pode ser as duas coisas, uma vez que a verdade confine na ilusão, e a mentira na boa-fé. […] Tudo é possível neste mundo e neste final de um grande século” [9].

 

Gilberto de Melo Kujawski é filósofo e ensaís-ta. Dentre as suas obras mais recentes, mencionamos A crise do século XX (Ática, 1991), A pátria descoberta (Papirus, 1992), O sagrado existe (Ática, 1994), Idéia do Brasil –
A Arquitetura Imperfeita (Senac, 2001), O Ocidente e sua sombra (Letraviva, 2002) e Império e terror (Ibrasa, 2003).

 

 

 


 

[1] Norbert Elias, O processo civilizador, Rio e Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, 2 vols.

 

[2] Lilia Moritz Schwarcz, As barbas do imperador, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, págs. 200-1.

 

[3] Gilberto Freyre, op. cit., pág. 126.

 

[4] Gilberto Freyre, op. cit., pág. 126.

 

[5] Ayrton Marcondes, Machado de Assis – exercício de admiração, São Paulo: A Girafa, 2008, pág. 240.

 

[6] Ayrton Marcondes, op. cit., pág. 227.

 

[7] O Estado de São Paulo, caderno Cultura, 29.06.2008.

 

[8] A Semana, em Obras completas, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, vol. III, pág. 769.

 

[9] A Semana, ibid., pág. 729.