Glosa sobre a Ilíada

de Mimnermo

 

Nós somos como as folhas que cria a florida estação
da Primavera, quando crescem depressa sob os raios do sol.
Como elas nos deleitamos num braço de tempo com as flores
da juventude, sem sabermos o que de mau ou de bom
nos virá dos deuses. Mas as negras Desgraças estão
ao nosso lado: uma delas segura o desfecho da áspera velhice;
a outra, o da morte. O fruto da juventude é tão breve
quanto é o tempo de o sol se espalhar sobre a terra.
Porém quando passa este fim de estação,
melhor do que ficar vivo é morrer logo.
Muitas dores acometem o espírito. Por vezes a casa
cai em ruínas e ficam os dolorosos trabalhos da pobreza.
Outro homem carece de filhos e com saudade imensa
deles vai para o Hades debaixo da terra. Outro tem
uma doença destroçadora do espírito. Não há
ninguém a quem Zeus não dê muitas tristezas.

 

Essa composição de Mimnermo (630-600 a.C.), como ademais a Ilíada, a Odisséia e muitos poemas gregos antigos, está na metade do caminho entre poesia e letra de música. Sua recitação era cantada e acompanhada de flauta, mas a melodia não tinha precedência sobre a letra; a performance daria o equivalente a uma canção um tanto entediante para nossos padrões contemporâneos, incluindo as canções eruditas. E como só o conteúdo e a métrica dos versos (sem rima) são suficientemente incontroversos, a melhor maneira de acessar a composição é através de uma tradução que recupere algumas das características originais: se o poema era recitado em festas, é razoável que o resultado final tenha uma linguagem direta (a diversão não deve ser complicada) e elegante.

O poema foi apelidado “Glosa sobre a Ilíada” por Frederico Lourenço por referir-se a uma das mais famosas passagens de Homero, em que o grego Diomedes pergunta ao troiano Glauco sobre sua linhagem – não sem antes distingui-lo dos deuses por ser “um homem que come frutos da terra” -, e este, para desdenhar um pouco da pergunta, diz: “Assim como a linhagem das folhas, assim é a dos homens. / Às folhas, atira-as o vento ao chão; mas a floresta no seu viço / faz nascer outras, quando sobrevém a estação da primavera: / assim nasce uma geração de homens; e outra deixa de existir” [1].

Apesar da digressão, Glauco dá uma resposta completa, suficiente para provocar outra resposta longa de Diomedes e levá-los a não pelejar entre si, revelando a outra face do trecho de Homero e do poema de Mimnermo: a imortalidade mais desejada era a do nome e da linhagem, pela qual portas eram abertas e conflitos interrompidos. Glauco e Diomedes preservam a relação entre os antepassados esperando retribuição no futuro, quando eles mesmos já estiverem mortos. Por isso também é que uma das desgraças que podem sobrevir – em sentido estrito, já que tudo vem “de cima”, de Zeus – a um homem é a falta de filhos que levem adiante a memória de seu nome.

Essa mentalidade pagã, por sua vez, é mais próxima da nossa experiência imediata do que imaginamos. Tirando as informações que recebemos sobre a imortalidade da alma e a nobreza da idade, a experiência do próprio envelhecimento não é agradável. As mulheres estão naturalmente atentas para isso. Os homens também podem perceber que a juventude é uma espécie de bênção finita, que o tempo escorre inapelavelmente. A perenidade e a força literalmente natural do tema continuam gerando obras literárias a seu respeito – a mais famosa na língua inglesa é o poema que, apesar de ter um título delicioso, é mais conhecido por seu primeiro verso, “Gather ye rosebuds while ye may”, melhor traduzido para os propósitos atuais com uma adaptação: “Brinquem, jovens, enquanto podem”.

Essa idéia da melhor maneira de aproveitar o tempo passou a ser obviamente censurada em tempos cristãos, mas na Grécia pagã era um dos temas favoritos, senão o tema favorito. Muitos poemas descrevem belezas e prazeres, e outros tantos descrevem a finitude desses mesmos prazeres e maldizem a velhice como uma desgraça enviada pelos deuses – os quais nunca envelhecem. A inveja está implícita. Se um fruto ou uma folha nascem, amadurecem e logo morrem, contando com a ventura de um rápido apodrecimento e súbita extinção, para o homem o “apodrecimento” dura a maior parte da vida.

Só é misterioso que quisessem falar disso durante as festas.

 

 


 

[1] Ilíada, Canto VI, 146-9. Trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2005, pág. 136.