Matar uma criança

Por Stig Dagerman

Tradução de Jorge Cardoso e Ivo Barroso

É um dia leve e o sol cai a pino sobre a planície. Logo os sinos irão tocar, pois é domingo. Entre campos de centeio, dois jovens encontram um caminho nunca dantes percorrido e contemplam no fundo do vale as vidraças brilhantes de três vilarejos. O homem faz a barba diante do espelho sobre a mesa da cozinha e a mulher cantarola enquanto corta o pão; sentada no chão, a criança tenta abotoar o corpete. É a manhã idílica de um dia nefasto, pois neste mesmo dia uma criança será morta no terceiro vilarejo por um homem feliz. Enquanto isto, a criança sentada no chão ajusta os botões de seu corpete e o homem que se barbeia diz que hoje irão sair e farão um passeio de barco e a mulher cantarolando coloca as frescas fatias de pão num prato azul.

Não há sombras na cozinha, e enquanto isto o homem que irá matar a criança está em frente a uma bomba de gasolina vermelha em um posto de abastecimento no primeiro vilarejo. Ainda é um homem feliz que olha o visor da câmera e vê na lente um carrinho azul e ao lado do carro uma garota que sorri. Enquanto a moça sorri e o homem tira a foto belíssima, o atendente do posto fecha a tampa do tanque e lhes deseja bom dia. A garota entra no carro e o homem que irá matar uma criança tira a carteira do bolso e diz que eles irão até o mar e quando lá chegarem vão alugar um bote e remarão para bem longe.

Baixando o vidro da janela do carro, a moça no assento dianteiro escuta o que ele diz, fecha os olhos e ao fechá-los vê o mar e o homem ao seu lado no bote. Ele não é um homem mau, está alegre e satisfeito e, antes de entrar no carro, pára um instante diante do radiador cintilante, desfrutando do reflexo, do cheiro de gasolina e das cerejas. Não há nenhuma sombra sobre o carro e o pára-choque não está amassado nem manchado de sangue.

Mas, ao mesmo tempo em que o homem naquele primeiro vilarejo bate a porta do carro à sua esquerda e dá partida, a mulher na terceira vila abre a porta do armário da cozinha e não encontra nenhum açúcar. A criança que acabara de abotoar seu corpete e sozinha deu laços nos sapatos está de joelhos no sofá e vê o córrego que serpenteia entre amieiros e um barco velho com os remos jogados sobre a grama. O homem que irá perder sua criança está barbeado e acaba de guardar o espelho. Sobre a mesa os copos de café, pão, creme de leite e algumas moscas. Falta apenas o açúcar e a mãe diz para a criança correr até os Larssons e pedir alguns cubinhos emprestados. E enquanto a criança abre a porta o homem grita da cozinha que é para ela se apressar, porque o bote está à espera na margem e eles irão remar para bem longe como nunca haviam remado antes. E enquanto corre atravessando os quintais a criança pensa o tempo todo no riacho, no bote e nos peixes se batendo e ninguém conta para ela que tem apenas oito minutos de vida e que o bote continuará lá o dia inteiro e por muitos outros dias irá continuar.

Não é tão longe até os Larssons, é só atravessar a rua, e enquanto a criança corre para atravessá-la um pequeno carro azul percorre o outro vilarejo. É uma pequena vila com casinhas vermelhas e pessoas que acabaram de acordar diante da mesa da cozinha segurando copos de café, vendo o carro passar acelerado no outro lado da cerca levantando, enquanto passa, uma imensa nuvem de poeira. Vai muito rápido e o homem que dirige vê as macieiras e os postes com seus cabos telegráficos de relance como se fossem sombras muito escuras. A brisa do verão entra pela janela, eles saem da vila, e estão seguros no meio da estrada e estão sozinhos – ainda. É gostoso este viajar solitário por uma estrada tão ampla e com o campanário ao longe fica ainda mais bonita. O homem é feliz e forte e com o cotovelo direito sente o corpo de sua namorada. Não é um homem mau. Tem apenas pressa para chegar ao mar. Não mataria uma mosca, mas ainda assim irá matar uma criança. Enquanto aceleram ao encontro da terceira vila a garota fecha os olhos e brinca que não irá abri-los enquanto não cheguem ao mar e imagina no ritmo do balanço oscilante do carro quão tranqüilo o mar vai estar.

E porque a vida é construída sem nenhuma compaixão um minuto antes de um homem feliz matar uma criança ele será ainda feliz e antes de a garota gritar apavorada ela conseguirá fechar os olhos e sonhar com o mar, e o último minuto na vida de uma criança pode ser aquele em que os seus pais sentados na cozinha esperam pelo açúcar e conversam sobre os dentinhos brancos de seus filhos e sobre um passeio de domingo. Esta mesma criança fecha um portão e começa a atravessar a rua segurando na mão direita alguns cubinhos de açúcar enrolados num papel branco e este último minuto nada mais é do que um longo e tranqüilo riacho com peixes grandes e um barco com remos silenciosos.

O depois é sempre tarde demais. O depois é um carro azul derrapando pela estrada e uma mulher que aos gritos tira a mão da boca e a mão está sangrando. Depois um homem que abre a porta do carro tentando ficar de pé embora tendo um abismo de terror dentro de si. O depois são alguns cubinhos de açúcar esparramados entre o sangue e o cascalho e uma criança deitada imóvel de bruços com o rosto pressionado contra a estrada. Depois aparecem duas pessoas pálidas, que ainda não beberam seu café correndo e passando a cerca e vêem naquela estrada o que nunca irão esquecer. Porque não é verdade que o tempo é o melhor remédio. O tempo não cura a dor de perder um filho e cicatriza muito mal a mesma dor de uma mãe que se esqueceu de comprar açúcar e mandou a criança atravessar a rua para pedir um pouco emprestado. E o tempo também não cura a angústia do homem feliz que a matou.

Porque aquele que matou uma criança não vai até o mar. Aquele que matou uma criança volta em silêncio para casa e ao seu lado uma mulher que não consegue falar e com as mãos enfaixadas. E por todas as vilas que passam eles não conseguem ver uma única pessoa feliz. Todas as sombras são ainda mais escuras e enquanto eles se distanciam o silêncio continua e o homem que matou a criança sabe que este silêncio é o seu inimigo e que ele irá precisar de todos os anos de sua vida para vencê-lo gritando que não foi sua culpa. Mas ele sabe que é uma mentira e que ao invés disso, em cada noite ao se deitar, ele irá desejar apenas um minuto de sua vida de volta para fazer deste único minuto algo diferente.

Mas a vida não tem piedade para aqueles que matam uma criança e, por isso, tudo que vier depois será sempre tarde demais.

 

Título original Att döda ett barn. Copyright © Stig Dagerman, 2008, publicado com autorização da Norstedts Agency. Traduzido do sueco por Jorge Cardoso e revisto por Ivo Barroso.

Stig Dagerman (5-10-1923, Älvkarleby – 4-11-1954, Enebyberg), foi jornalista e escritor.

Jorge Cardoso é escritor e tradutor, autor de Mal pela Raiz (ed. Baleia, 2004) e Um Cavalo no Cemitério de Deus (Atrito Art Editorial, Londrina, 2006). Mora atualmente no norte da Suécia.

Ivo Barroso é poeta, ensaísta e tradutor. Traduziu mais de quarenta livros, entre eles vários de poesia, como os Sonetos, de Shakespeare, Os Gatos de T. S. Eliot, o Diário Póstumo de Eugenio Montale e Hipóteses de Amor de Annalisa Cima.