Meu inimigo mortal

por Hermann Harry Schmitz

 “Um alemão para inaugurar uma seção de sátiras?!! Já vi tudo, não vai ter graça nenhuma”… Sem querer prevenir o juízo do leitor, pedimos-lhe o benefício da dúvida para este escritor curioso, bastante esquecido mesmo na Alemanha, onde teve uma carreira curta e praticamente confinada à sua Renânia natal. De um humor predominantemente caricatural e grotesco, tinha a imaginação de um “saco de espantos”, como dizia Machado de um personagem seu. Ao lê-lo, é preciso ter em conta que escreve em 1913, de maneira que é preciso imaginar o clima de uma pequena cidade da época, em que os jornais locais organizavam “bailes da imprensa”, o aquecimento se fazia por fogões a lenha nos quartos e os carros de bombeiros eram puxados por cavalos. Em contrapartida, o nosso autor ganha em universalidade por não dirigir as suas farpas a personagens públicas da época, mas a tipos e idéias universais.

Embora seja uma batalha perdida de antemão, avisamos que o Harry pronuncia-se Hárri (ou “Rárri”, como é moda escrever agora; ai meu estômago!), não Hérri (“Rérri”)…

 Antes, eu gostava muito do Sr. Editor Durchschuss. De vez em quando, arrumava-me bilhetes gratuitos para concertos com pianistas cegos. É verdade que esses concertos nunca chegavam a realizar-se porque os pianistas, devido à cegueira, não conseguiam achar o caminho da sala de concertos, mas isso não era culpa de Herr Durchschuss: ele tinha boa intenção. Hoje em dia, dou esses bilhetes de presente à mulher da limpeza, que por sua vez os vende com ágio a algumas famílias piedosas e ingênuas que praticam a beneficência.

Antes, eu gostava muito do Sr. Editor Durchschuss [1]. De vez em quando, arrumava-me bilhetes gratuitos para concertos com pianistas cegos. É verdade que esses concertos nunca chegavam a realizar-se porque os pianistas, devido à cegueira, não conseguiam achar o caminho da sala de concertos, mas isso não era culpa de Herr Durchschuss: ele tinha boa intenção. Hoje em dia, dou esses bilhetes de presente à mulher da limpeza, que por sua vez os vende com ágio a algumas famílias piedosas e ingênuas que praticam a beneficência.

Um dia, encontrei-o no bonde. Estava muito amável e ofereceu-me um cigarro. “Então o senhor é poeta, não é? Com certeza tem algo em comum com a Sra. Marlitt [2]!” Lisonjeado e enrubescendo, contestei: “Sim, sim, o Kürschner [3] também o diz, mas apenas externamente, no perfil e na figura”.

Como ele tinha de descer na parada seguinte, pediu-me que descesse com ele, pois havia uma coisa importante que precisava discutir comigo. Respondi-lhe que precisava seguir adiante, mas ele me puxou para fora.

– “Veja, como o senhor é poeta, como o senhor é um artista extraordinário, quero pedir-lhe que escreva para a nossa Damenspende [4], que sairá por ocasião do nosso próximo baile de imprensa, uma obra original da sua pena poética”. Aquelas palavras lisonjeiras exerceram certo efeito sobre mim: ver-se impresso numa Damenspende era, em qualquer caso, algo extremamente honroso. Só não tinha a menor idéia do que fosse aquilo: Damenspende?… Spamendede? Demdenspane?

Sem pensar muito, concordei. “Preciso tê-lo em mãos, sem falta, em dez dias”, disse Herr Durchschuss, e assumiu o exato aspecto de Napoleão ao comandar a batalha de Austerlitz.

No primeiro e segundo dias, eu estava animado. “É claro que conseguirás compor”, dizia de mim para mim, para juntar coragem. Rabiscava aqui e ali, mas não encontrava um bom começo. No terceiro dia, encontrei Herr Durchschuss. Evitei cuidadosamente olhá-lo nos olhos. Não havia dúvida de que ele estivera de tocaia, à minha espera. “E então, como vai a poesia?”, perguntou-me. “Sete dias passam depressa!”

O poema começou a oprimir-me como um pesadelo. Dia e noite escrevia aberturas: “Ó baile da imprensa, prazer dos prazeres…”, ou “Damenspende, Damenspende, sê saudada!” Dessa forma, enchi fólio sobre fólio, a ponto de me encontrar mergulhado até a cintura em papel de rascunho.

O quinto dia! Teria preferido pegar uma apendicite pesada ou uma erisipela a enfrentar o compromisso infernal de entregar um poema a Herr Durchschuss. “Durchschuuuss!!!” atravessava-me o cérebro como agulhas de tricô em brasa. Disse à empregada que não abrisse a porta para ninguém: tinha decidido espremer o cérebro até que saísse aquela poesia, custasse o que custasse! Arranquei os volumes de Goethe e Schiller da estante. Aqueles, sim, é que eram poemas!… Seriam todos conhecidos?

De repente, a empregada entrou correndo: um senhor precisava falar comigo de qualquer jeito.

– “Não quero ver ninguém! Estou compondo!”

– “Mas ele diz que veio trazer-lhe um dinheiro…”, respondeu a empregada.

– “Que entre, que entre!”

O portador entrou. Recuei horrorizado, pois o suposto pagador não era senão Herr Durchschuss. Ai de mim! Herr Durchschuss! Umas sílabas de bronze, duras e decididas, soaram aos meus ouvidos: – “Como vai o poema?” Lancei-lhe a almofada do sofá na cara com tanta força que o seu monóculo se estilhaçou, e pulei pela janela.

Cheguei em casa tarde da noite, bêbado, e me deixei cair esgotado na cama. De repente, um ruído me fez pular de pé. Herr Durchschuss, ó horror, rastejou como um inseto para fora do seu esconderijo, debaixo da cama, e lançou o facho da sua lanterna bem nos meus olhos arregalados de terror: – “Terminou a poesia? Você ainda tem dois dias de prazo, infeliz! Eu voltarei”.

Pulei para dentro do guarda-roupas e tranquei-o por dentro. Na manhã seguinte, Herr Durchschuss tinha desaparecido. Perguntei à empregada se ela sabia fazer poesia. Olhou-me e dirigiu-se à cozinha balançando a cabeça. Ergui uma barricada com todos os meus móveis diante da porta. Tinha de estar sozinho: o poeta cria na solidão, a musa não se manifesta em meio ao tumulto. Mergulhei em Schiller e Goethe e achei alguns poemas bons, que, assim em geral, as pessoas não deviam conhecer. Seria o caso de arriscar? De repente, o aquecedor mexeu-se e caiu com um estrondo. Dele saiu Herr Durchschuss. A brasa ardente tinha-lhe reduzido os pés a cinza e ele estava uma cabeça mais baixo: “Escreve, escreve, ó desgraçado! Lembra-te da tua antecessora, a grande Marlitt!” Lançando-me um olhar esmagador, saiu para encomendar pés novos no podólogo. Tomado de desespero, comi o pavio da lâmpada.

No fim da tarde, recebi a visita da minha velha tia Brigitte, de Wersten, que me trouxe um Fliegenglas [5] com duas moscas. Eu já tinha lançado caligraficamente uma poesia desconhecida de Goethe sobre uma folha branca e aposto orgulhosamente a minha assinatura. Perguntei à tia: “O que a senhora acha? Não está bonito? É uma poesia que eu fiz”. E não enrubesci. A anciã, graças a Deus, tinha esquecido de trazer os óculos. Por segurança, pedi-lhe que passasse à noite de guarda diante da minha porta e latisse no caso de ouvir algum ruído suspeito. Prendi Brownings entre os dedos dos pés e das mãos. Assim, sentia-me preparado. Nessa noite, não aconteceu nada; na manhã seguinte, porém, as moscas já não estavam no Fliegenglas. E com elas tinha desaparecido também a velha tia, com exceção da perna de pau, que estava no porta-guarda-chuvas da chapelaria.

Assim raiou o último dia. Hoje, nada haveria de reter o meu inimigo mortal, Durchschuss. Era o fim. Precisava tomar as últimas providências. Mandei derrubar a escada que levava ao meu apartamento, como meio mais radical de me proteger do inimigo.

Na entrada da casa, tinha mandado montar duas peles de tigre, recebidas do meu tio (que fora vendedor de sorvetes em Sumatra) em troca de um velho sobretudo de passeio. Bem ajeitadas, quase davam a impressão de feras autênticas e podiam deter Herr Durchschuss, que era míope. Fiquei sentado no meu quarto, fora de mim, olhando fixamente a folha branca com a poesia caligrafada. Li-a palavra por palavra, e o meu nome no fim. Era ao menos um raio de esperança.

Fui despertado das minhas cavilações pela sirene aguda dos bombeiros e o clop-clop de ferraduras. Herr Durchschuss tinha alertado os bombeiros! Não havia dúvida: a imprensa tem o poder! E quando falham todos os recursos, mesmo os mais elevados, até as delegacias de polícia, sempre está aí, como último refúgio seguro, o corpo de bombeiros! É um dito antigo e sábio.

Voltei-me para a janela. Enquadrado pelos batentes, ali estava Herr Durchschuss. Tinha chegado à janela por meio de uma escada de incêndio. E de lá me chegavam agora, como golpes de machado, as palavras: – “O POEMA, O POEMA!”. – “Aqui está!” Tomei a folha branca com a poesia caligrafada e entreguei-a, exultante, ao meu inimigo. Ele leu com voz sonora:

Über allen Gipfeln
Ist Ruh';
In allen Wipfeln
Spürest du
Kaum einen Hauch;
Die Vöglein schweigen im Walde.
Warte nur, balde
Ruhest du auch.

Hermann Harry Schmitz [6].

 

Quando Herr Durchschuss leu o meu nome, o busto de Goethe caiu da estante, rompendo-se em mil pedaços. Empalideci. Herr Durchschuss baixou a folha. Com o aspecto do Editor que recebe um artigo pago de um escritor em dificuldades, disse: – “Bem, passa”. E desapareceu pela janela e pela escada de incêndio. Naquela noite, tive um sonho terrível. Os pedaços de gesso do busto de Goethe subiam pela minha cama e vinham agarrar-se pesadamente ao meu peito. Eu estava a ponto de sufocar.

Passei a carregar a minha consciência pesada pelas ruas como quem leva uma mochila dolorosamente opressiva e angulosa sobre umas costas suadas e feridas.

Chegou o dia do baile. O meu poema causou sensação. A seguir, porém, um frêmito percorreu os salões. As pessoas conversavam em grupos, apontavam-me com o dedo e lançavam-me olhares de dúvida e suspeita. Um velho distinto e de longas barbas exclamou: – “Essa poesia é de Schiller!” – “Sim, é verdade, de Schiller”, exclamaram os circunstantes. Alguns, timidamente, sugeriram que podia ser de Goethe; um suábio achava que era de Uhland; outros de Lenau, de Bierbaum. Ergueu-se uma confusa algazarra de nomes de poetas. E novamente ergueu-se um grito: – “Plágio!”

O tumulto cresceu. Eu fora descoberto.

Refugiei-me no alto de uma árvore, onde os cucos fazem ninho, e contei-lhes toda a minha desdita. Nunca os cucos riram tanto.

 

Hermann Harry Schmitz (1880-1913) nasceu em Düsseldorf, na Renânia. Não chegou a terminar o ensino médio por causa de uma tuberculose renitente. Por desejo do pai, começou a carreira de comerciante enquanto publicava sátiras nos jornais locais e dava conferências cômicas para entidades beneficentes. Nos últimos anos, depois que a sua primeira coletânea publicada em forma de livro teve sucesso nacional (1911), passou a ser escritor em tempo integral.

Tradução de Henrique Elfes.

 

 


 

[1] Preferimos deixar nome e coisas típicas da época em alemão e dar esclarecimentos em nota. Durchschuss, etimologicamente, significa “tiro que atravessa”; sugere mais ou menos o nosso “tiro no pé”.

 

[2] Eugenie Marlitt (1825-1887) foi cantora de ópera e romancista de sucesso, a primeira autora do mundo a ser considerada best-seller. Era desprezada pela crítica. Nunca escreveu poesia, e não era propriamente uma beldade.

 

[3] Joseph Kürschner (1853-1902) editava uma série de manuais de referência com os dados biográficos e profissionais de personalidades dos mundos literário, artístico e científico; continua a ser reeditado até hoje, em versões atualizadas. A ironia está em que os dados são fornecidos pelo biografado.

 

[4] Damenspende (“presente para as damas”) é uma prenda oferecida por quem promove um baile ou festa para as senhoras levarem para casa; no caso, um livro de ocasião.

 

[5] Armadilha de vidro para moscas, em que os insetos conseguiam entrar, mas não sair.

 

[6] Noturno do caminhante, uma das poesias mais conhecidas de Goethe, ao mesmo tempo meditação sobre a morte: “Sobre todos os cumes / paira a calma; / em todas as copas / mal podes sentir / um suspiro; / os pássaros calam no bosque. / Espera, em breve / repousarás também”.