Nicolás Gómez Dávila e seus Escolios a un texto implícito

Por Júlio Lemos

 “Viver com lucidez uma vida simples, calada, discreta, entre livros inteligentes, amando uns poucos seres”. Assim viveu Nicolas Gómez Dávila, como denunciam as suas próprias palavras, e assim permanece desconhecido em seu próprio país – e em muitas outras partes do mundo.

Prova disso é que seu divulgador italiano mais destacado, Franco Volpi, ao tentar incluir um artigo sobre o filósofo colombiano numa enciclopédia filosófica da qual era editor (Grosses Werklexikon der Philosophie), encontrou a seguinte objeção: “Mas ninguém o conhece!” Só mais tarde ganhou ampla divulgação na Itália, seguindo o exemplo da Alemanha dos anos 80, quando era admirado e dado a conhecer por nomes como Ernst Jünger e Robert Spaemann. No ano 2000, o editor da italiana Adelphi, depois de ler cem páginas de aforismos de Gómez Dávila, exclamou: “Isso é incrível! Temos de entrar em contato com os seus sucessores para comprar os direitos das obras!” E esse tipo de surpresa continua a ocorrer com certa freqüência.

Antes de apresentar a sua obra, e mostrar por que ele deveria ser conhecido no Brasil, falemos um pouco sobre a  vida do filósofo.

Nascido em Bogotá, Colômbia, em 1913, numa família da alta sociedade, aos seis anos mudou-se com os pais para Paris. Lá estudou em um colégio beneditino, mas, por conta de uma forte pneumonia, foi obrigado a ter aulas em casa por um longo período,. Retornou a Bogotá aos 23 anos de idade e casou-se com Emilia Nieto Ramos, com quem teve três filhos.

A partir de 1949, isolou-se na bela casa da família para se dedicar a uma vida de leitura e meditação. Por isso os seus aposentos preferidos eram os que abrigavam a volumosa biblioteca, que chegou a ter entre trinta e quarenta mil volumes, todos na língua original: alemão, inglês, italiano, grego, latim, espanhol, francês e português, idiomas que conhecia a fundo. Mais tarde chegaria a escrever: “Aquele que não aprendeu latim e grego, vive convencido, ainda que o negue, de ser apenas semi-culto” (pág. 458) [1].

No ano de 1960, sofreu um acidente ao jogar pólo, o que limitou as suas possibilidades de locomoção e o obrigou a usar uma prótese ortopédica. O acidente apenas intensificou a sua situação de isolamento, o que não deixa de ser um paradoxo, dado que a casa estava localizada numa rua barulhenta e movimentada de Bogotá.

Entre as características que se foram intensificando estavam a sua disciplina e paciência diante de um trabalho intelectual pouco brilhante: leituras pausadas e a redação de um grande número de notas. Segundo o amigo Francisco Pizano, Gómez Dávila “seguia um método casual. Lia muito e não o fazia para se divertir, mas por verdadeiro amor ao texto. Por ocasião das leituras, tomava notas das suas reflexões em uns cadernos nos quais guardava milhares de aforismos que surgiam de certa iluminação que havia tido lendo Shakespeare ou algum poeta. Seus textos eram o resultado de um trabalho de purificação e condensação; eles nos eram dados a ler com enorme receio. Muitas vezes, quando criticávamos algum escrito, voltava depois com novas versões do mesmo aforismo para que escolhêssemos”.

Semanalmente, visitava o seu almacén de telas – loja de tecidos – e tratava de negócios. E às vezes ia com a esposa e os filhos até a hacienda da família Canoas Dávila.

A sua rotina também incluía a recepção de uns poucos amigos para cálidas tertúlias – conversas entre vários -, nas quais se falava de tudo, menos da “situação do país” e de trivialidades. A sua linguagem e estilo eram cheios de simplicidade e cuidado, o que, aliado ao conteúdo dos comentários, causava grandes ressonâncias nos seus contertulios. Entre eles contavam-se Mario Laserna e Francisco Pizano de Brigard, com os quais – entre outros –
Gómez Dávila fundou a Universidad de los Andes, entre 1948 e 1949.

Mario Laserna testemunha que Gómez Dávila devotou a sua vida ao “cultivo da verdade, do bem e da beleza”. Parecia pouco interessado em comunicar-se com a sociedade que o rodeava, e por isso dizia não ter nada em comum com os seus conterrâneos, com exceção do passaporte. Chegou mesmo a negar-se diversas vezes a tomar parte na vida pública, ora como Conselheiro de Estado, ora como embaixador em Londres. Isso não nos deve levar a pensar que a sua vida – que poderia ser facilmente tachada de “vida numa torre de marfim” – tenha sido inútil; Gómez Dávila era um raro integrante das “minorias ociosas” que prestam, com a sua existência e pensamento, um enorme serviço à civilização. E esta missão, tinha-a muito clara.

 

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Da minha parte, tomei contato com a obra de Gómez Dávila em 2002. Passando os olhos pelos seus aforismos, quase aterrorizado pelo senso comum do autor e pela profunda “vida independente” que se desprendia deles, perguntei-me em primeiro lugar dsobre o porquê de nunca ter ouvido falar desse homem.

Em seguida, comecei a interrogar as pessoas com fama de erudição que conhecia. A resposta era sempre a mesma; no estilo americano, seria: “Who the hell is this guy? Never heard of ‘im”. Isso gerou em mim certa sensação de posse exclusiva, como se eu tivesse descoberto um continente – algo que experimentaram também, a seu tempo, Franco Volpi e Dietrich von Hildebrand com relação ao mesmo Gómez Dávila.

Passei a ler regularmente os seus aforismos, encontrando neles – creio que o leitor terá uma sensação parecida – um eco de idéias que não tinha coragem de confessar a mim mesmo.

O pensamento de Gómez Dávila insere-se na tradição de Baltasar Gracián, Pascal, La Bruyère, Nietzsche e Cioran, para citar alguns nomes. Há um ódio implícito ao sistema e a toda espécie de arquitetura conceitual. Isso se deve, em parte, a uma visão de mundo que tem clara consciência das limitações da razão. Essa consciência, quer-me parecer, surge quando o escritor se depara com a complexidade do humano e não consegue achar outro modo de exprimir a realidade a não ser por breves sentenças, que se reportam mais a lampejos do entendimento ou a máximas de prudência incubadas na memória do que a silogismos.

Nos Escolios não há um centro ordenador, não há divisão de assuntos, não há propriamente uma linha de raciocínio. São cintilações de um pensamento inquieto, desafiador, e simultaneamente experimentado, de “gato escaldado”. Isso resulta num texto abertamente fragmentário, mas agudo e polido, porque quem o produziu domina a língua como poucos.

Gómez Dávila, seja por humildade (leia-se “realismo”), seja por lealdade à sua visão de mundo, teve a ousadia de ser um mero comentador. Procedia como os glosadores de Bolonha (séc. XIII), que tinham diante de si o Corpus Juris Civilis, o corpo de Direito Romano da época de Justiniano, e se limitavam a escrever notas marginais para auxiliar os juristas a entender o sentido do texto.

E qual era esse “texto implícito” ao qual Nicolás Gómez Dávila apunha as suas notas?

O autor definiu-se a si mesmo como um “pagão que crê em Jesus Cristo”. Com isso, penso que queria dizer que tinha absorvido e adotado como própria toda a boa cultura grega – em especial Homero e os trágicos –
e latina, assim como o universo inesgotável da Cristandade. Dizia que o bom leitor sabe ler livros de qualquer época como se tivessem sido escritos para si. Para leitores assim, não há anacronismo. Ele mesmo era um leitor desse porte, e, como Borges, reclamava da falta, não de escritores, mas de leitores de qualidade.

Poderíamos então indicar um núcleo para o seu pensamento? Estranhei, e continuo a estranhar, o epíteto que o próprio Gómez Dávila havia aplicado a si: o de “reacionário”, como no caso do Nelson Rodrigues. “O homem inteligente chega rapidamente a conclusões reacionárias. Hoje, entretanto, o consenso universal dos tontos o acovarda. Quando o interrogam em público, nega ser galileu” (pág. 223).

Não creio tenha sido feliz o uso dessa palavra, “reacionário” [2]. Isso coloca o leitor, já de início, em atitude de desconfiança: as conotações negativas que a palavra sempre teve provocam nele uma reação quase involuntária, como a de quem ouve um palavrão… O fato é que não devemos preocupar-nos muito com o que pretenda dizer com “reacionário”. Gómez Dávila é Gómez Dávila. Deixemos o seu pensamento emergir.

Em todo o caso, não que exista qualquer conotação política no uso que faz dessa palavra: o autor sempre se recusou, como vimos, a aceitar cargos políticos ou diplomáticos, e tinha horror aos partidarismos. Penso que, para ele, “reacionário” era um homem que, vendo ruir o mundo ao seu redor, mantinha-se firmemente enraizado nos valores perenes.

Explico-me. Os valores, para quem entende que há um fundamento metafísico para o mundo, não são fixações culturais, justificações de um estado de coisas ou tesouros de uma civilização perdida. A ética clássica, por exemplo, pretende-se universal, em essência independente da cultura que lhe dá forma, embora não existam, na visão aristotélica, “valores em si”, totalmente descolados de uma manifestação cultural. “Os valores […] nascem na história mas são imortais” (pág. 219); “não pertenço a um mundo que perece. Prolongo e transmito uma verdade que não morre” (pág. 269). Por isso é possível dizer que Gómez Dávila representa, como ninguém, a perenidade e a “capacidade de consolação” bem fundada do pensamento ocidental, mas com uma autoconsciência tipicamente moderna na sua forma.

 

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Pretendo comentar, na seqüência, apenas para abrir o apetite delicado do leitor, duas idéias que, não sendo certamente as mais importantes na sua obra, permitem ver até onde vai a sensibilidade do nosso autor: o tema do sexo e o do sentido de mistério.

“A castidade, passada a juventude, mais que da ética, faz parte do bom gosto” (pág. 172), diz Gómez Dávila, chocando já de entrada o leitor com um termo “medieval”. Não nos parece estranho que esse bom gosto, que era o tom implícito das sociedades ocidentais, tenha morrido há tão pouco tempo, nos anos 60, e que agora a propaganda em favor do seu oposto tenha prevalecido como uma obviedade inquestionável? Será que a humanidade se iluminou, finalmente, e se livrou, sem abertura para a discussão, de um valor que sempre se julgou perene? Não para o nosso autor; para ele, “o erotismo é o recurso raivoso das almas e dos tempos que agonizam” (pág. 244).

Gómez Dávila preocupa-se com essas “ninharias” que mantêm o homem na posse de si mesmo, que o libertam da escravidão dos caprichos. Nunca foi um moralista, e menos ainda um puritano; bem ao contrário. Vejamos o que diz em outro lugar: “Nada mais repugnante do que aquilo a que o tonto chama ‘uma atividade sexual harmoniosa e equilibrada’. A sexualidade higiênica e metódica é a única perversão que execram tanto os demônios como os anjos”. E em outro: “Um corpo nu resolve todos os problemas do universo” (pág. 57). E mais um: “O que afasta de Deus não é a sensualidade, mas a abstração” (pág. 73).

Ele sabia que o sexo é algo belo e bom (afinal, nem eu nem você, leitor, estaríamos aqui não fosse por ele…); basta que ele seja visto dentro do seu contexto. A falta de pudor, por exemplo, desloca o olhar-para-a-pessoa para um olhar que se concentra apenas no que o seu corpo nos pode oferecer. Assim dirá: “Amor é o ato que transforma o seu objeto, de coisa, em pessoa” (pág. 67), ou, num aforismo mais provocador: “o amor é essencialmente adesão do espírito a um outro corpo nu” (pág. 78).

Em Gómez Dávila, o homem é uma unidade, com seus sentimentos mais nobres, a sua inteligência, os seus desejos e instintos, também nobres na sua ordem. Mas “o sexo não resolve nem os problemas sexuais” (pág. 58). O puritano vê no corpo algo mau, diabólico, e se afasta dele; o admirador da pornografia pensa o mesmo, embora o exalte. Ambos caem no mesmo erro ao dividir o homem: reduzem-no a apenas um dos seus aspectos indissociáveis, corpo e espírito, e tiram-no de contexto, o primeiro para fugir de um demônio, o segundo para abraçá-lo como quem faz algo contra as normas, mas apenas para assumir uma nova norma, surgida da revolta. “O tolo não se contenta em violar uma regra ética: pretende que a sua transgressão se converta numa regra nova” (pág. 67). “Entre a anarquia dos instintos e a tirania da ordem, estende-se o fugitivo e puro território da perfeição humana” (pág. 54), acrescentará com rara sutileza.

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 O pensamento de Nicolás Gómez Dávila flerta o tempo todo com o mistério. Estamos acostumados à idéia de que o homem que se julga independente, o livre-pensador, está “por dentro do negócio”, mas sabemos igualmente que ele nunca faz as verdadeiras perguntas. Se fosse esperto, teria caído na conta de que estamos envoltos em uma grande charada. A ciência, ao invés de responder a essas perguntas – sobre a origem do homem e do universo, por exemplo -, cada vez torna o assunto mais misterioso, ou melhor, mais confuso. Só não o sabe quem nunca leu nada sobre física das partículas.

Por isso escreveu que “tudo o que faça o homem sentir que está envolvido em mistério o torna mais inteligente” (pág. 180). Essa coragem de “afirmar o mistério” coloca Gómez Dávila ao lado dos grandes homens, como Virgílio, Dante, Shakespeare e Pascal.

A cultura da vulgaridade, do banal, mesmo sob o disfarce da última moda intelectual, esconde uma enorme incapacidade de pensar com audácia. Afirmar o mistério é reconhecer a própria miséria e comprometer-se a aceitar aquilo que não se pode dominar. “Os problemas metafísicos”, escrevia Nicolás nos seus comentários, “não inquietam o homem para que os resolva, mas para que os viva” (pág. 291).

Parte do “problema moderno” é essa revolta diante de uma realidade que não se deixa aprisionar por um sistema de pensamento. Gómez Dávila é um excelente antídoto contra esse paradoxal conformismo moderno.

 

Júlio Lemos é escritor e doutorando pela Faculdade de Direito da USP.

 

 


 

[1] Citamos sempre entre parênteses a página correspondente ao aforismo da edição mais popular de Escolios a un texto implícito – selección, Bogotá, Villegas, 2002. Essa edição tem o inconveniente de não numerar os aforismos.

 

[2] Tenho em mente a idéia de que, quando somos obrigados a fazer propaganda de certos valores-chave, como o da importância da tradição, da visão transcendente, da boa educação, etc., é porque a sociedade não mais os toma em consideração. Gómez Dávila fez essa apologia de um modo chocante, talvez com o objetivo de sacudir uns poucos leitores para os quais o epíteto “reacionário” constitui mais um estímulo do que um objeto de repulsa.