O coração é um caçador solitário

Por Martim Vasques da Cunha

Cast a cold eye on life, on death,
Horsemen, pass by!

W.B. Yeats

 Howard Hawks fazia questão de não ser chamado de “artista”. Era, sobretudo, um profissional – e um profissional da ação. E que ação! Vários diretores hoje dariam braços e mãos para realizar uma seqüência de ação segundo as regras de Hawks. Não deve se entender aqui “ação” no sentido de correrias, perseguições, lutas, tapas e variantes desses mesmos temas – apesar de ele também ter feito tudo isso de maneira impecável -, mas de “ação” no sentido estritamente humano do termo: aquela de homens que se encontram em situações de risco ou de perigo extremo.

Hawks conhecia ambas as situações. Era um bon-vivant da adrenalina. Nascido em 30 de maio de 1896, na cidade de Goshen, Howard Winchester Hawks vinha de uma família próspera que só tendia a crescer em posses e dinheiro. Nem por isso, acomodou-se. Formou-se em engenharia (profissão que não seguiria, mas que lhe daria um know-how peculiar na logística dos seus filmes) e logo depois apaixonou-se pela aviação, junto com seu irmão Kenneth.

Mas os dois também tinham outros interesses “mais mundanos”: fazer sucesso em um setor em surgimento, o do cinema. Foram para Hollywood e, cada qual a seu modo, encontraram vagas em postos-chave na produção de filmes: Kenneth como produtor e Howard como diretor de filmes mudos, especialmente de ação e de comédia. Como os Hawks não precisavam do dinheiro – tinham-no de sobra -, isso lhes conferia um fascínio incomum em Hollywood, o que lhes proporcionava uma certa independência profissional que Howard aproveitava muito bem. Desde o início de sua carreira, brigava com os produtores – não por questões “artísticas”, mas simplesmente por problemas de profissionalismo, uma vez que, segundo ele, “ninguém sabia fazer as coisas direito”.

Pouco a pouco, o talento superou a fama de temperamental. Hawks sabia filmar e contar uma história com um frescor único. Mas ainda não era, por assim dizer, “Howard Hawks”. Quem vê seus filmes da fase muda, nem espera o que virá a seguir. Seria necessário que acontecesse um fato traumático para Hawks perceber que seus filmes deveriam tratar de um único tema, aquilo que Peter Bogdanovich viria a chamar de “a audácia da cavalgada”.

O fato em questão foi a trágica morte de Kenneth em um acidente de avião. No dia 2 de janeiro de 1928, ao filmar cenas áreas para Such Men Are Dangerous, sobre o piloto Alfred Loewenstein, o avião de Kenneth colidiu com outro que tentava captar as mesmas cenas, matando também dois camera-men. Howard já havia avisado o irmão de que era perigoso fazer essas cenas se não pudesse ter total confiança nos outros pilotos: “Para dizer a verdade, ele não era muito bom piloto”, contou em uma entrevista, “e quando me chamaram para avisar do acidente, só perguntei: ‘Eles colidiram um com o outro?’, e responderam-me apenas ‘Sim'”.

A fama de “frieza” de Howard ao saber de eventos traumáticos nasceu de episódios como esse – vários deles, porém, inventados por ele mesmo ou por outros. É verdade que não era sentimental (mas estava longe de ser insensível); por isso, a coincidência entre irônica e trágica de dirigir justamente um filme sobre a vida arriscada dos aviadores – aquele que seria o seu primeiro grande sucesso, The Dawn Patrol (1930) – bem na época da morte de seu irmão não o abalou em nenhum momento. O profissionalismo falava mais alto.

É a partir deste momento que Howard Hawks começa a se transformar em Howard Hawks. Quando além disso ocorre o encontro com ninguém menos que Howard Hughes, o excêntrico bilionário, e juntos decidem fazer Scarface – A vergonha de uma Nação (1932), é também o momento em que o cinema moderno deixa as fraldas. Talvez o filme de gângsteres mais violento já feito (superado apenas por seu remake da década de 80, dirigido por Brian De Palma, roteiro de Oliver Stone e com Al Pacino no papel-título), Scarface mostra o princípio de um estilo em que Hawks atingiria a perfeição sete anos depois e que jamais abandonaria: uma direção precisa de atores, diálogos ágeis e afiados – que quase sempre se sobrepõem uns aos outros, tal como na vida real -, uma encenação que se preocupa apenas com a ação e nada mais, além de um olhar frio e brutal sobre as coisas do mundo, que viria a ser sua marca registrada.

Hawks mostrou o seu talento e independência em Scarface, mas não ficaria nos filmes de gângsteres. Ele aplicou o seu profissionalismo e o seu sistema de direção a comédias inusitadas como Levada da breca (1936), com Gary Grant e Katherine Hepburn, que daria origem a um gênero que daria fruto muitos anos depois: as screwballs comedies (literalmente, as “comédias amalucadas”). Com Scarface, Hawks lançou a semente do film noir da década de 40 e influenciou desde Coppola (na trilogia do Poderoso chefão) até o último Martin Scorsese (com seu Os infiltrados, que traz referências à sombria “marca do X” ao antecipar cada cena de assassinato); agora, com Levada da Breca, não é exagero afirmar que faz o papel de avô de Judd Apatow (de Ligeiramente grávidos), dos irmãos Zucker (de Apertem os cintos, o piloto sumiu!) e dos clássicos filmes de adolescente de John Hughes (como Curtindo a vida adoidado e O Clube dos Cinco).

Mas a marca de Hawks não está apenas nos filmes mais populares. Diretores mais “intelectualizados” como Jean Luc-Godard, François Truffaut e Eric Rohmer simplesmente idolatram o cinema hawkisiano. Godard afirmava peremptoriamente: “O cinema é Howard Hawks”. Truffaut afirmava que Hawks era o segundo maior diretor do cinema americano, ficando atrás apenas de Alfred Hitchcock. E Rohmer – bem, toda a obra de Rohmer é praticamente uma variação em torno de Hatari!, o ápice da filmografia de Hawks.

A fama de grande diretor chegou muito tarde – só na década de 70, quando estava para se aposentar – mas qualquer pessoa de bom gosto já sabia da grandeza de Hawks quando saiu, em 1939, Paraíso infernal, filme que solidificaria a quintessência de seu estilo. Localizada em uma cidade da América do Sul, a história conta o cotidiano de um grupo de aviadores que vive o perigo e o risco em cada minuto que passa, uma vez que, naquela época, a infra-estrutura dos aviões de carga ainda não apresentava medidas razoáveis de segurança. Novamente com Cary Grant (um dos atores favoritos de Hawks, junto com Humphrey Bogart, John Wayne e o indefectível Walter Brennan) no papel principal, interpretando em todas as nuances o novo herói hawksiano – durão, determinado, com um código de honra entre amigos que beira o estoicismo, mas que guarda a sete chaves um coração de ouro -, Paraíso infernal é a aventura que Steven Spielberg pediria a Deus que o deixasse dirigir, em troca de abandonar o seu sentimentalismo barato…

Hawks imprime ao filme um ritmo alucinante que deixa qualquer um sem fôlego, sem no entanto perder um detalhe ou uma nuance de comportamento, e ao mesmo tempo sem nunca impor sua visão aos personagens. Deixa as coisas acontecerem naturalmente, num equilíbrio extremamente habilidoso que conserva o picaresco e o humano. A prova disso está nos vinte minutos iniciais do filme: um aviador morre em uma missão perigosa e Cary Grant se mostra impassível perante a tragédia. Afinal de contas, como diria um dos personagens, de que adianta lamentar-se? A estrangeira interpretada por Jean Arthur (e futuro pivô romântico do filme) fica chocada com a reação. Contudo, momentos depois, ela compreende que a vida é assim mesmo e começa a tocar uma música na pianola do bar onde se hospedam os aviadores. Uma festa começa do nada. Para Hawks, não há melhor modo de lembrar um morto do que uma boa farra.

A partir deste filme, ele realizaria uma seqüência de clássicos que deixaria qualquer diretor com inveja mortal. Desde de Sargento York (1941), filme de guerra que seria a maior influência sobre o cinema de Clint Eastwood (de acordo com o próprio), passando pela comédia Jejum de amor (1941), com roteiro de ninguém menos que Billy Wilder e Charles Brackett, até Rio Vermelho (1948), o western que provou que John Wayne realmente sabia interpretar (além de descobrir um jovem chamado Montgomery Cliff), Hawks desenvolveria variações quase obsessivas sobre o mesmo tema: a lealdade e a confiança entre os homens e as mulheres como a única maneira de viver neste mundo maluco, repleto de incerteza e morte.

Parece uma declaração metafísica – e deveria sê-lo, se Hawks não fosse o menos “intelectual” dos cineastas. Claro, ele tinha pendores intelectuais; apesar de se gabar de ser apenas um engenheiro e de ler poucos livros, seus amigos (de bebida) eram ninguém menos que William Faulkner e Ernest Hemingway. Com os dois, fez um dos grandes sucessos de Hollywood, o famoso Uma aventura na Martinica (1945), em que um Humphrey Bogart cínico se envolvia com uma Lauren Bacall em início de carreira – assediada, diga-se de passagem, pelo priápico e mulherengo Hawks. Como todos sabem, no entanto, o assédio não deu certo: Bogart casou-se com Bacall e Hawks contentou-se com fazer mais um clássico com eles – À beira do abismo (1946), talvez a melhor adaptação de um romance de Raymond Chandler, apesar da trama intricada e quase impenetrável (a propósito, uma característica marcante em todos os filmes que Hawks fez com Faulkner como roteirista).

Hawks era um profissional; queria ganhar dinheiro, mas ao mesmo tempo fazia questão de manter a sua independência artística, feito raro na Hollywood dos grandes estúdios, como a MGM, a Paramount e a Fox. O seu prestígio garantia que fosse um dos poucos que podiam incluir o nome antes do título do filme (outro era Hitchcock). Esta independência era refletida nos temas que escolhia e no modo como ele lidava com eles. Assim, por exemplo, gostava de criar situações, nunca histórias: para ele, não importava se o filme tinha uma trama – considerada geralmente requisito básico em qualquer empreendimento cinematográfico -; bastava-lhe apenas colocar os personagens em um ambiente hostil e observar como reagiriam.

Foi o que fez em dois longas com John Wayne no papel principal: os fantásticos Rio bravo (1959) e Hatari! (1962), considerados os pontos altos de sua filmografia. Em cada um deles, temos respectivamente situações de espera e de caçada, em que homens ficam na expectativa de um momento que os surpreenda e revele as possibilidades de uma vida que não hesita em encarar o perigo. Eram situações que, obviamente, fascinavam o próprio Hawks, um fanático por caçadas, tão fanático que fez questão de filmar Hatari! porque queria captar o instante exato em que a presa –
um leão, uma girafa ou um rinoceronte – sentia o coração tão apertado como o de um homem.

François Truffaut sugeriu que Hatari! era uma descrição do próprio cinema – uma longa e exaustiva caçada, uma espera que parece infrutífera. Fica claro também, em seus filmes, que Hawks pensava dessa maneira sobre a própria vida. Por isso não há nada de “intelectual” em sua obra – feita sem nenhuma “firula” técnica e sem nenhum conceito mais complicado que as paixões dos homens. Hawks filmava a vida em sua ambigüidade, com a honra como único código capaz de afirmar o sentido no palco do permanente perigo de morte. Seus heróis refletiam sua visão sobre os assuntos que eram realmente importantes: sempre ir em frente, não importando os obstáculo, mesmo que fosse a “indesejada das gentes”. Não sabemos se era leitor de poesia – é pouco provável -, mas certamente sorriria se lesse os versos que W.B.Yeats deixou: Cast a cold eye on life, on death, Horsemen, pass by!

Esse olhar gélido sobre as coisas pode ser percebido nas fotografias, que retratam um Hawks que beira o inescrutável. Não era à toa que o apelidavam de the grey fox of Hollywood – aliás, título de uma biografia formidável de Todd McCarthy sobre este cineasta-engenheiro com olhar de poeta. Mas a frieza era aparente: quem tiver sensibilidade, descobrirá em seus filmes um calor pela humanidade raras vezes visto, apesar de encoberto pela dureza do ambiente ou pelo estoicismo das personagens. A prova disso era o depoimento de seus atores e colaboradores de filmagem, que sempre mostraram um cineasta preocupado com seus atores e atrizes (neste último caso, preocupado até demais), leal aos seus roteiristas e técnicos (Leigh Brackett, que escreveu o roteiro de À beira do abismo e Rio bravo, dizia que Hawks nunca a pressionou; simplesmente dava-lhe as instruções necessárias e depois ia jogar golfe) e que nunca gritou no set. Se tinha controle das coisas, não o aparentava; apenas filmava o que tinha de filmar e fazia o que tinha de fazer.

Nada mais profissional e, ao mesmo tempo, nada mais artístico. Contudo, havia uma razão para esta atitude: Hawks sabia que estava a fazer filmes para uma época que terminava. Seus filmes guardam a aura de uma caçada e revelam um homem com o coração mais solitário do mundo. Essa nostalgia hawkisiana ainda mantém seu fascínio hoje, mas agora em variações high-tech; o grande discípulo, sem dúvida, é Michael Mann que, com Colateral (2004) e Miami Vice (2005), afirma explicitamente que a lealdade e o profissionalismo entre os homens são as únicas razões para se manter íntegro no mundo. Isso sem contar o Spielberg de Agarre-me se puder (2003), com seu olhar que beira a screwball comedy e, como já dissemos, o Scorsese de Cassino (1999), O aviador (2003) – a propósito, uma biografia de Howard Hughes – e Os inflitrados. Entretanto, talvez com exceção de Mann e de Clint Eastwood (com o seu díptico A Conquista da honra e Cartas de Iwo Jima), falta a seus seguidores mais ilustres aquele calor humano que transforma uma película de Hawks em uma experiência ímpar. É a humanidade que veio com a lenta e dolorida observação dos traumas da vida; para muitos, isso pode ser um fardo impossível de carregar; para um artista como Howard Hawks, foi aquilo de que os nossos sonhos são feitos. É algo que nada nem ninguém pode tirar de nós.

 

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista e coordenador do Departamento de Humanidades do Instituto Internacional de Ciências Sociais.