O susto

Por Bernardo Ajzenberg

Duas horas depois do ocorrido, Charles, de sobrenome Feldman, ainda se torturava. Buscava os motivos, não tanto do acontecimento em si, mas da sua reação diante dele. Um acontecimento daquela gravidade deveria ter despertado algo na mesma proporção, ao menos em pessoas normais. E essa era a questão. Se nele o esperado, o normal, não acontecera, como devia acontecer em qualquer pessoa de bom senso, de boa formação, o que então havia nele? O que dentro dele fizera com que tudo se tivesse passado diferente, de um modo, como ele mesmo dizia, mordendo os lábios, animalesco? A resposta, a explicação tinha de existir, mas certamente não viria fácil, residia num ponto profundo, num esconderijo, dentro de sua mente, ao qual ele jamais tivera acesso.

A mocinha da fábrica, Amélia, de sobrenome Silva Santos, gritara em desespero, um grito eminentemente feminino, autêntico, expressivo, em volume competente e eficaz como quem realmente pede socorro.

– Seu Mário! Seu Mário! Meu Deus! Seu Mário! – ela gritara várias vezes o nome do patrão ao mesmo tempo em que corria na direção dele e, mesmo com seu corpo minguado, de mocinha desnutrida, recém-contratada, buscava erguê-lo.

Mas era um senhor grande, não muito gordo, mas alto, pesado, de ossos de gigante, um homem na altura dos oitenta anos, e homens com essa idade costumam causar problemas – a si mesmos e aos outros – quando tombam, quando tropeçam num fio ou numa dobra de tapete mal afixado no piso.

Amélia não sabia exatamente o que tinha ocorrido, ou melhor, como aquilo tinha ocorrido, mas havia um fato: o velho Mário estava de joelhos, sem condições, aparentemente, de se erguer sozinho, com o corpo inclinado para o lado esquerdo, apoiando-se no cotovelo. Os óculos tinham voado para alguns metros adiante (“que sorte, que grande e muita sorte”, ele comentaria), de forma que os olhos tinham sido poupados de um choque direto, cortante. Mas a testa, Amélia via, estava muito avermelhada, assim como deviam estar os joelhos e provavelmente outras partes daquele homenzarrão de cabelos brancos escassos e ossos muito pesados que tombara de repente, e ninguém sabia exatamente como.

O grito de Amélia no corredor ecoou por toda a pequena fábrica de malhas, chamando a atenção, de imediato, de Charles, que estava no balcão da loja, na parte da frente, dobrando mercadorias para enfiá-las em sacos plásticos, de modo a conservar a lã em sua cor original pelo maior tempo possível, como ensinara o avô.

Charles ouviu, então, o nome do avô soando em estado de profunda exasperação na voz daquela mocinha, largou as malhas no balcão e saiu em disparada rumo ao corredor, ação que transcorreu em não mais do que cinco segundos, já que a fábrica e a loja eram pequenas, desproporcionais em relação ao corpanzil do homem caído e mal-amparado pelos braços miúdos da mocinha.

Do alto de seus trinta e três anos de idade, Charles quase pisou nos óculos do avô ao se aproximar da cena, do acidente, do episódio. Nem percebeu o fato, mas Amélia sim, e recolheu de imediato o objeto, guardando-o no avental azul-claro em cujo bolso, na altura do seio esquerdo, estampava-se o nome da pequena empresa: Malhas Melanie, com os dois emes casando-se como pássaros no espaço.

– Gelo! Vai pegar gelo, Amélia! – ordenou Charles, a voz tirânica, no mesmo instante em que Mário começou a chorar.

– Está doendo muito, vô? – perguntou, percorrendo com os olhos cada centímetro do rosto machucado, ambos agora ajoelhados sobre o tapete enrugado.

– Essa droga de tapete! – exclamou o jovem. – Mamãe bem que tinha alertado que um dia isso ia acabar acontecendo. Vamos tentar levantar?

O velho, porém, fazia sinal com uma das mãos mostrando que preferia manter-se ali mesmo, ajoelhado, pelo menos mais algum tempo. E seu choro crescia de intensidade, como o de uma criança.

Imobilizado, Charles sentiu um alívio quando Amélia chegou com cubos de gelo envolvidos num pano de cozinha.

– Põe isso na testa, seu Mário – disse a moça, com uma firmeza que fez o patrão obedecer imediatamente.

– Está doendo muito? – perguntou Charles, palavras que lhe valeram um olhar nitidamente repreensivo de Amélia, e ele logo percebeu a estupidez da pergunta.

Sem forças para se levantar, Mário pediu que o encostassem à parede do corredor. Falava com dificuldade, em meio aos soluços e às expressões faciais de um choro rude, intenso.

Quantas vezes Charles passara correndo por ali, desde muito criança, brincando na fábrica do avô? Centenas, muitas centenas de vezes, ele sabia. Quantas vezes, desde muito pequeno, não passara horas, várias horas, ao longo de inúmeros finais de semana, ao lado do avô, ajudando-o no trabalho, indo e vindo com ele por aquele mesmo corredor, aprendendo com ele o ofício? Quantas balas de caramelo, quantas balas de goma e jujubas, quantos pedaços de chocolate e quantas paçocas ele tinha ganhado do avô naqueles pequenos momentos de estadia informal, alegre? E quantas vezes o avô o levantara no colo? Quantos beijos ele sentira, com seu sal mediterrâneo, na face, provenientes daqueles lábios e daquela pele que ele sabia terem vindo de muito longe, de outro continente, muitos e muitos anos antes?

Mário, de sobrenome Feldman, passara horas, milhares de horas ao longo dos anos, contando ao neto preferido as dores e as delícias da travessia, em navio, de Varsóvia até Santos, e depois São Paulo. Todos os detalhes da longa viagem, ele mocinho com a sua noiva, a vó Estela, que Charles conhecera pouco por causa de um maldito câncer. A fábrica, no Bom Retiro, fora montada muitos anos depois, com o auxílio dos três irmãos – todos falecidos, bem enterrados no cemitério israelita da Vila Mariana- , quando a fase de mascate já se tornara apenas um álbum de fotografias, algumas imagens maiores na parede do apartamento e uma caixa de camisa no alto do armário.

Quantas vezes o avô levara Charles para brincar no Ibirapuera? Quantas vezes ele segurara a sua mão na sinagoga – carinhosamente, sem dúvida, mas também para conter o garoto, para que acompanhasse as orações, para que balançasse junto com os mais velhos em seus murmúrios ininteligíveis, lamentosos?

Charles via Mário chorar, ali caído no corredor.

– Você está melhor, vô?

Amélia, que saíra de novo com eficiente rapidez, voltava ligeira, um copo na mão.

– Água com açúcar, seu Mário… Bebe que o senhor acalma.

Charles observou como eram volumosas as lágrimas do avô, que ele nunca tinha visto. E como seu rosto se remexia. Como suas mãos eram velhas. Como sua pele era seca, enrugada, com pontos escuros e pelos fracos. Observou, como nunca antes, as manchas vermelhas na cabeça de cabelos ralos. Os olhos, antes sempre muito azuis, pareciam-lhe acinzentados.

– Vamos levantar, vovô! Eu ponho o senhor na poltrona…

Desta vez o velho acedeu, e foram-se os três, um arrastado pelos outros dois, em direção à poltrona de couro da loja, a poucos metros dali, perto do balcão de onde Charles saíra, onde Mário então se sentou, ainda sem os óculos, ainda a chorar, como se diz, copiosamente. E foi nesse momento que a dor em Charles começou a se manifestar.

Sentiu a testa pesada, sentiu as pálpebras esmagando-se e, enquanto Amélia dava continuidade aos primeiros socorros e ele constatava mais uma vez o susto do avô, pois foi essa a palavra que Mário emitira (“Não estou sentindo muita dor, foi mais o susto, foi um susto horrível, achei que tinha quebrado a perna, Chachá, meu querido, que tinha batido a cabeça com mais força no chão, que os óculos tinham quebrado no meu rosto, nos meus olhos, e que tinha sangue… Foi um susto horrível, estou chorando de susto, Charles querido, não se preocupe, é de susto…”).

– Tem sangue em algum lugar? – perguntou Mário.

– Não, vovô, nem um pouco. A testa está um pouco vermelha, só isso. E os joelhos, olha aqui – e levantou as calças do avô -, aqui está ficando meio roxo, só uns hematomas…

– Isso passa – disse o avô, com dificuldade, enfrentando o choro.

A cada palavra do avô, mais crescia a dor em Charles, a dor que ele não conseguiria explicar mesmo duas horas depois do ocorrido: a dor de não ter sentido nada em relação ao avô, ao acidente com o avô, de não ter sentido nem mesmo pena, dó, nada, de não ter sentido o impulso legítimo de uma pessoa normal, como Amélia, de não ter experimentado uma sensibilização diferente. A dor de ter sido formal, de ter dito apenas as palavras previsíveis, de ter reagido de um modo absolutamente esperado para o caso de um estranho apenas prestimoso. Esse o seu susto: o susto de sentir que se o avô desaparecesse ali mesmo, se o tombo tivesse sido mais grave, mais sério, e o corpo idoso não tivesse resistido, talvez Charles nem sequer chorasse. Lamentaria, como Amélia (talvez até menos, ele calculava), como um guarda-noturno que via Mário poucas vezes ao ano. Esse o seu susto: ele, um rapaz de tão boa formação, com um sorriso tão fácil, um bom rapaz, sempre prestativo, um homem que não gostava de contrariar ninguém, calmo, que muitas vezes deixava de dizer o que pensava simplesmente para evitar disputas de boas maneiras, que nunca dera trabalho algum aos pais, muito menos ao avô, ótimo aluno, sempre limpinho, aquele que sempre admitira ficar mais tempo na sinagoga do que todas as outras crianças, até o último toque do shofar no Ano Novo…

Esse ser, e eis o seu susto: onde estava, nele próprio, a “energia vital” de que tantas vezes, em diferentes histórias, ouvira o avô falar, se nada sentira diante da queda que tanto pavor e tanto choro e tanto desespero havia provocado nesse mesmo avô, e, em boa proporção, na própria pequena Amélia?

A dor e o susto substancioso do avô, ele sentia tristemente, tinham refletido e desviado dele como de uma superfície sem aderência. Qual o grau de infelicidade capaz de causar ou ao menos justificar tamanha frieza? Não, frieza não, corrigiu-se. Pior, muito pior: indiferença. De onde provinha aquela indiferença, ele se perguntaria.

Depois de meia hora na poltrona, respirando fundo e repondo os óculos, Mário decidiu erguer-se.

– Já estou bem, gente. Desculpe o susto que eu dei em vocês. Obrigado pela força, por estarem aqui…

– O que é isso, vovô?

– O senhor é um homem de ferro, dos brabos, seu Mário!

Duas horas depois, ao deixar a loja-fábrica, a pé, Charles ainda se pergunta, assustado: meu Deus, de onde vem essa indiferença? Gostaria de ter alguém, algum amigo, para conversar, mas percebe que não tem. Quem, ou o quê, sabota os sentimentos que deveriam aflorar num momento como este? Foi o meu avô que sofreu tudo isso! Não um estranho qualquer. E ele chorou muito! Podia ter-se espatifado inteiro ali na própria fábrica, no chão que ele mesmo tinha mandado construir. Nunca o vi chorar assim! Tem oitenta e dois anos! Sempre me aprovou em tudo o que fiz e em tudo aquilo que eu queria que me aprovasse. Como é possível que eu, que sempre busquei a perfeição, não tenha sentido nada de verdade quando essa pessoa simplesmente desabou a poucos metros de mim e quase morreu? Como é possível que não esteja sentindo nada nem mesmo agora? Ele me carregou no colo milhões de vezes, me deu milhões de beijos e milhões de balas…

Charles avança pela calçada, como todos os dias, formigando de interrogações, e, como todos os dias, compulsivamente, toca forte a mesma campainha, a três quadras da loja onde o avô caíra de testa no chão, bate na mesma porta, onde, no alto de uma imensa escadaria, recebe-o Magda, de sobrenome desconhecido, “oi, amor, que bom ver você de novo por aqui, sempre pontual, hein, isso é que é coisa gostosa, neném, vem, meu neném, vem”, em cujos braços, cobertos de pulseiras de plástico multicoloridas, ele mais uma vez se deixará engolfar suando ao som de um bolero antigo, olhos fechados, até o último dos sustos, até ser mandado embora aos gritos, “cai fora, bobão, vai gastar suas lágrimas em outro canto, que aqui não é penico, trouxa, babaca, molengão…”, não sem antes deixar o montante diariamente combinado.

 

Bernardo Ajzenberg, escritor, tradutor e jornalista. Publicou os romances Carreiras Cortadas (Francisco Alves, 1989), Efeito Suspensório (Imago, 1993), Goldstein & Camargo (Imago, 1994), Variações Goldman (Rocco, 1998), A Gaiola de Faraday (Rocco, 2002, prêmio de Ficção do Ano da Academia Brasileira de Letras) e o livro de contos Homens com Mulheres (Rocco, 2005, finalista do Prêmio Jabuti). Formado em jornalismo pela Fundação Cásper Líbero, trabalhou em veículos como a Gazeta Mercantil, Última Hora, Veja e Folha de S. Paulo, onde exerceu as funções de Secretário de Redação e Ombudsman. Foi também Coordenador Executivo do Instituto Moreira Salles.