Peter Quince no teclado

Por Wallace Stevens

Tradução de Lawrence Flores Pereira

 

A vida de Wallace Stevens transcorreu sem os grandes incidentes que o senso comum costuma associar aos poetas. Nascido na Pensilvânia em 1879, era filho de um advogado que encaminhou seus três filhos para a mesma profissão. Antes de terminar seus estudos, tentou ingressar na profissão de jornalista, mas a decepção com este ofício não demorou e ele voltou aos estudos de direito. Terminada a sua formação, teve algumas experiências frustradas como advogado, mas enfim empregou-se como advogado na Hartford Accident and Indemnity Insurance Company de Connecticut, na qual permaneceu até o final de sua carreira. Stevens publicou o seu primeiro livro em idade relativamente avançada. Estava com mais de 40 anos quando veio a público Harmonium, seu primeiro volume de poesia. Eis uma vida perfeitamente plácida, que não permite adivinhar a elaboração de sua poesia.

É justamente no livro Harmonium, um marco do modernismo americano, que se encontra o atual poema. Peter Quince ao Teclado fora publicado pela primeira vez em 1915, na revista “Others: A Magazine of the New Verse”, e somente em 1923 viria a constar na longa seleta da sua primeira obra. O poema é um espelho minúsculo onde se podem ver refletidos os temas e as ironias que ressurgirão em toda sua obra: a beleza como um ser presente no agora e que deve ser sempre lembrada como tal; a amplitude das sensações vibrantes congeladas na contemplação; a reflexão poética entre música, poesia e pintura; a postulação da eternidade associada ao momento de encontro com a beleza.

O poema está montado sobre um fundo de alusões bíblicas (a bela Susana do livro de Daniel, ameaçada em seu banho por anciãos lúbricos) e literárias (o próprio Peter Quince, gracioso artesão que, no Sonho de uma Noite de Verão, de Shakespeare, lidera os cômicos ensaios para a peça “Pyramus and Thisby”). Mas, num poema assim tão atmosférico, sinestésico, tudo nele se confunde, música, experiên-
cias vitais e imaginárias, produzindo uma espécie de bruma musical em que as palavras são imagens e as imagens os sons, num jogo compacto e maravilhoso.

Imitando as estações de uma sinfonia, os versos seguem movimentos, e cada um tem formas, ritmos próprios: um primeiro reflexivo, um segundo ameno e matinal, um terceiro barulhento. Este é uma espécie de intermezzo ruidoso em que servos bizantinos invadem “a cena”, surrealmente. Eles interrompem os devaneios narcísicos da virginal Susana. Aqui sentimos o Stevens que lança mão de certo nonsense caprichoso e brincalhão. É esse o tom que levou muitos a verem no autor uma espécie de dandy da era dos seguros. São versos aqui carregados de irônica vertigem. O poema termina num gran finale repleto de paradoxos risonhos, mas também cheios de certa grandeza lancinante: a visão da beleza fugidia, ou seja, a fuga da formidável Susana, que deixa para os velhos – eles que viram a beleza “espasmódica” – apenas a risada irônica da morte. Mas o poema, é bem verdade, não se dobra a interpretações. É certamente um poema espesso, de muitas fontes e combinações. Seria preciso dar nome às sensações musicais às quais nos transporta, mas não buscar nenhum tipo de síntese. Parece usar temas, desenvolvimentos, músicas, ritmos para produzir no leitor a mesma sensação de beleza abissal que as notas sonoras combinadas e o corpo de Susana suscitam nos pobres velhos. Estes, sim, foram violados pela imagem. É notável como a linguagem musical pode ter ressonâncias alteradas. Quando se fala, nos últimos versos, da “viola” (viol), obviamente o instrumento evoca ao longe e fugazmente o ato violento que não se realizou, mas apenas se ensaiou. Logo no início, os velhos são tocados em suas cordas mais “baixas” – nos seus “contrabaixos”, nas suas notas graves – como se, tão próximos daquele país do qual ninguém retornou, as vibrações um pouco risíveis (pizzicati) da vida os acometessem, sublinhando a mortalidade humana e a eternidade da beleza no corpo. Eternidade que é borrada, apreendida apenas obliquamente pelos sentidos. Há feixes de sugestões que se insinuam, de ora em vez, e que evocam o ato sacrificial de virgens “coreutas”, mas, no final, o que é sublinhado é o fugato temático de Susana. Em si mesma, a fuga se desdobra na belíssima imagem do “verde ir-se”, do verde desenrolar-se. O poema de Wallace Stevens, enfim, não nos convida a interpretar, mas ao abandono.

 

 

 

 

Peter Quince no Teclado

por Wallace Stevens

Tradução de Lawrence Flores Pereira

 

 

I

Como meus dedos nestas teclas
Fazem música, assim os mesmos sons
Em meu espírito fazem música também.

Música é sentir, então, não é som;
E então é isto mesmo o que sinto,
Aqui neste quarto, desejando-te,

Pensando em sua seda azul-sombreada,
É música. É como a canção
Reavivada nos velhos por Susana:

Numa tarde verde, clara e quente,
Banhou-se em seu jardim sereno, enquanto
Os velhos, olhos tintos, vigiando, sentiram
Os baixos dos seus seres palpitar
Em feiticeiras cordas e o lânguido sangue
Pulsar pizzicati de Hosana.

 

II

Na água, clara e quente,
Susana deita.
Ela buscou
O toque da Primavera,
E encontrou
Ocultas fantasias.
Suspirou
Por tantas melodias.

À ribeira, ela ficou
No leve frio
Das gastas emoções.
Sentiu, por entre as folhas,
O rocio
De antigas devoções.

E caminhou na grama,
Ainda tremendo.
Os ventos eram tais suas damas,
Com pés atentos,
Trazendo seus véus trançados,
tremeluzentes.

Um sopro sobre a sua mão
Emudeceu a noite.
Ela virou –
Um címbalo reboou,
E trompas retumbantes.

 

III

 Logo com som de tamborins,
Entraram os servos bizantinos.

Por que Susana está aos brados
Contra esses velhos ao seu lado?

Sussurravam, e o refrão inteiro
Era chuva varrendo o salgueiro.

E então uma chama já adensada
Mostrou Susana envergonhada.

E, então, ao som de tamborins,
Saíram rindo os bizantinos.

 

IV

Na mente, a beleza é momentânea –
O traçado espasmódico do portal;
Mas na carne é imortal.

O corpo morre; a sua beleza vive.
Assim noites morrem, em seu verde ir-se,
Uma onda, interminavelmente fluindo.
Assim jardins morrem, seu débil odor imbuindo
O capuz do inverno, arrependido.
Assim virgens morrem, para a auroral
Celebração de um coro virginal.
A música de Susana tocou as cordas obscenas
Daqueles velhos pálidos; mas, fora de cena,
Deixou o rangido irônico da morte apenas.
Ora, em sua imortalização, toca-lhe
Na viola límpida da memória,
E molda o constante sacramento de exaltação.

 

Peter Quince at the Clavier

by Wallace Stevens

I

Just as my fingers on these Keys
Make music, so the selfsame sounds
On my spirit make a music, too.
Music is feeling, then, not sound;
And thus it is that what I feel,
Here in this room, desiring you,

Thinking of your blue-shadowed silk,
Is music. It is like the strain
Waked in the elders by Susanna.

Of a green evening, clear and warm,
She bathed in her still garden, while
The red-eyed elders watching, felt
The basses of their beings throb
In witching chords, and their thin blood
Pulse pizzicati of Hosanna.

 

II

In the green water, clear and warm,
Susanna lay.
She searched
The touch of Springs,
And found
Concealed imaginings.
She sighed,
For so much melody.

Upon the bank, she stood
In the cool
Of spent emotions.
She felt, among the leaves,
The dew
Of old devotions.

She walked upon the grass,
Still quavering.
The winds were like her maids,
On timid feet,
Fetching her woven scarves,
Yet wavering.

A breath upon her hand
Muted the night.
She turned –
A cymbal crashed,
And roaring horns.

 

III

Soon, with a noise like tambourines,
Came her attendant Byzantines.

They wondered why Susanna cried
Against the elders by her side;

And as they whispered, the refrain
Was like a willow swept by rain.

Anon, their lamps’ uplifted flame
Revealed Susanna and her shame.

And then, the simpering Byzantines
Fled, with a noise like tambourines.

 

IV

Beauty is momentary in the mind –
The fitful tracing of a portal;
But in the flesh it is immortal.

The body dies; the body’s beauty lives.
So evenings die, in their green going,
A wave, interminably flowing.
So gardens die, their meek breath scenting
The cowl of Winter, done repenting.
So maidens die, to the auroral
Celebration of a maiden’s choral.

Susanna’s music touched the bawdy strings
Of those white elders; but, escaping,
Left only Death’s ironic scrapings.
Now, in its immortality, it plays
On the clear viol of her memory,
And makes a constant sacrament of praise.

 

  

Lawrence Flores Pereira é Professor da Universidade Federal de Santa Maria. Doutorado sobre Racine e Shakespeare (Literatura Comparada PUC – RS, 1999). Co-diretor do Núcleo Filosofia-Literatura-Arte (PPG-Filosofia da UFRGS), Lawrence Flores Pereira é poeta, tradutor e ensaísta. Publicou vários livros sobre clássicos das literaturas inglesa, francesa e brasileira, além dos clássicos gregos. Suas traduções de Antígona e de Hamlet foram levadas ao palco (Teatro São Pedro de Porto Alegre e Teatro Solis, Montevidéu), e recebeu a indicação para o Prêmio Fato Literário.