Uma criatura

de Machado de Assis

 

Sei de uma criatura antiga e formidável,
que a si mesma devora os membros e as entranhas,
com a sofreguidão da fome insaciável.

Habita juntamente os vales e as montanhas;
e no mar, que se rasga, à maneira de abismo,
espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo.
cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
parece uma expansão de amor e de egoísmo.

Friamente contempla o desespero e o gozo,
gosta do colibri, como gosta do verme,
e cinge ao coração o belo e o monstruoso.

Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
e caminha na terra imperturbável, como
pelo vasto areal um vasto paquiderme.

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
vem a folha, que lento e lento se desdobra,
depois a flor, depois o suspirado pomo.

Pois esta criatura está em toda a obra;
cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
e é nesse destruir que as forças dobra.

Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
começa e recomeça uma perpétua lida,
e sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.

 

Uma observação inicial: talvez o leitor tenha reparado que este poema, metrificado e rimado de maneira bastante convencional, possui uma naturalidade singular. Isso acontece porque o verso de doze sílabas freqüentemente se ajusta melhor às nossas palavras longas do que o verso decassílabo, permitindo que haja bem mais coincidência entre as pausas sintáticas e os fins dos versos. Pode ser polêmico dizer isso, considerando o lugar que o decassílabo ocupa em nossa tradição e a vasta quantidade de obras-primas que o utilizam. Fica, no entanto, o convite para que o leitor recite o poema em voz alta e compare-o com outros em decassílabo.

Bem, não faz sentido reprisar aqui o suspense e a surpresa do poema de Machado de Assis, mas vale a pena começar observando que a função de toda surpresa posta ao final de um texto é apenas levar o leitor a repensar tudo o que fora dito até então de um jeito diferente. Isso, por sua vez, pressupõe duas admissões por parte do artista: primeiro, que ele deliberadamente induziu o leitor a uma determinada interpretação, mesmo que prefira outra; segundo, que ele mesmo acha essa primeira interpretação razoável ou respeitável, ainda que ao fim pretenda desmenti-la. O artista pode até achá-la respeitável a contragosto, mas precisa dela porque precisa do leitor, e essa interpretação funciona como fator de empatia. O desejo de empatia, por sua vez, está presente em qualquer obra de arte: mesmo o mais radical e incompreensível dos artistas conceituais espera encontrar o crítico que o compreenda e defenda. A única coisa que varia é o número e o tipo de pessoas com quem ele pretende estabelecer empatia.

Por isso, foi provavelmente buscando a empatia com uma parte significativa do público culto de sua época que Machado de Assis decidiu brincar com os topoi então correntes, como o cientificismo poetizado em tons macabros que já vimos em Augusto dos Anjos – aliás, aqui do século XXI, podemos dizer que nesse poema ele parece até um Augusto dos Anjos menos transtornado.

O próprio Machado usa esse topos para começar a jogar pistas de que está falando da Morte e a contrariar as expectativas de que a “criatura antiga e formidável” seja a Vida logo no segundo verso, dizendo que ela “a si mesma devora os membros e as entranhas, / com a sofreguidão da fome insaciável.” Na verdade, o simples fato de a criatura aparecer individualizada já é uma pista de que seja a Morte, pois, ao contrário da vida, é comum que se pense nela como um personagem. Acrescente-se a isso que, ao dizer que a morte está em tudo, parece que se evoca a Grande Coragem de Enfrentar as Duras Realidades, e que muitas vezes esperamos que um Grande Escritor nos mostre que todas as ambigüidades aparentes são na verdade máscaras do nosso medo. Mas é justamente nessa expectativa – não a de que seja a Morte, mas a de que as coisas sejam inambíguas – que Machado vai dar uma rasteira, e essa é uma das marcas de um grande escritor sem pomposidades. Afinal, é mais fácil dar conta de apenas um aspecto (lembrando que em sua origem latina “aspecto” significa “olhar”) do que dar conta de dois ou mais.

Pensando nisso, basta retomar as dualidades do poema, como “os vales e as montanhas”, “o colibri e o verme”, “o belo e o monstruoso”, para lembrar que somente a Vida pode conter dualidades, e nunca a Morte. A Morte é inequívoca; o fim é literal. Mas a Vida contém o início e o fim, “o poluto e o impoluto”: a nossa expectativa de que as coisas sejam “só isso” e o fato de elas serem mais.

Um comentário em “Uma criatura

  1. Pingback: Dez domingos com poesia de uma vez - O Indivíduo

Comentários não permitidos.