A antiga e a nova ética da virtude

por Maria Cecília Leonel Gomes dos Reis

Atribui-se a Hannah Arendt – filósofa alemã nascida em 1906 – um comentário perfeito para apresentar a ética antiga e realçar em quê esta perspectiva distingue-se da moralidade de senso comum. Coloque-se a pergunta celebrizada no romance Crime e Castigo de Dostoiévski “Por que eu não deveria matar uma velha agiota a quem devo dinheiro?”, e compare as seguintes respostas. Um indivíduo religioso poderia alegar que “Não o faria para não ser condenado ao inferno” (seja objetivo, seja subjetivo). De um ponto de vista laico e distanciado, um outro talvez admitisse que “Ninguém gostaria de ser morto futilmente por outra pessoa, e por esta razão tal conduta deve ser interdita e severamente punida para a vida em sociedade”. Ora, a resposta da ética antiga teria um enfoque completamente diferente: “Já que tenho de viver comigo mesmo pelo resto de meus dias, não gostaria de estar para sempre na companhia de um assassino”. Esta maneira de ver o problema, embora incorra em algum anacronismo, coloca na perspectiva correta a moralidade antiga e sugere que seu foco esteja no caráter do próprio agente.

À luz desta breve introdução, na primeira parte deste artigo será apresentado um panorama geral da ética antiga que tentará subsidiar, em seguida, tanto um esboço das principais diferenças que ela guarda com a filosofia moral moderna, como uma pequena defesa de sua relevância para a atualidade.

I.

É a pergunta socrática – “Como viver?” – que, de fato, inaugura na Grécia do século V a.C. a investigação de questões humanas. E o faz na chave da moralidade pessoal e em tom auto-reflexivo – Que tipo de pessoa tenho sido? Que tipo de pessoa aspiro ser? –, ao mesmo tempo em que, de alguma forma, coloca na meta da estimativa de si próprio a noção antiga de virtude ou areté, i.e., toda a forma de mérito individual ou de excelência, em qualquer atividade.

Na concepção tradicional de Homero, há evidências da areté dos heróis, em particular numa forma comum de epitáfio – “um homem tornado nobre morreu” – e na locução kalós kai agathós, que se refere às qualidades de valentia e habilidade guerreira, ou seja, à eficácia naquela nobre função.

A perspectiva socrática, por outro lado, além da coragem, elege como valores morais a justiça, a temperança, a piedade e a sabedoria. Tais são, efetivamente, as noções que animam a busca (frustrada) por definições dos primeiros diálogos de Platão, nos quais Sócrates figura como personagem central. A teoria moral, em Sócrates, inclui algumas teses bem difundidas. A virtude é conhecimento, ou seja, o indivíduo só alcança a excelência humana quando tem uma visão singular e permanente do que é o bem para o homem. Afinal, as virtudes formam uma certa unidade. E é este lampejo sobre o bem em geral que guia a pessoa nas circunstâncias particulares de sua vida, para que aja como alguém de valor – mostrando-lhe, por exemplo, quando o direito dos outros deve ser respeitado, quando a moderação é necessária, quando atos de coragem lhe são requeridos. E por esta razão, não basta procurar regras externas que pautem a conduta dos homens. É preciso olhar para dentro de si e perceber por si mesmo o justo, o bom e o belo em cada circunstância. Os homens precisam, enfim, cuidar da alma, pois é a qualidade boa ou má de sua própria alma que fará de cada um uma pessoa boa e feliz ou, pelo contrário, má e infeliz. Donde a observação socrática da máxima apolínea “Conhece-te a ti mesmo”.

A doutrina socrática implica, contudo, uma nova concepção de alma: a psykhé agora é vista como a sede das faculdades intelectuais e morais, e não mais como o mero sopro da vitalidade que abandona o indivíduo no instante da morte. Aos olhos modernos, essa filosofia moral parece sofrer de um intelectualismo exagerado. Se virtude é conhecimento, então a ação correta segue o conhecimento correto, e a incorreta é fruto da mera ignorância e não daquilo que chamamos de fraqueza da vontade. É preciso lembrar, no entanto, que a perspectiva socrática parece entender que os homens, quando agem mal, estão sempre persuadidos por algo que imaginam como bom e vantajoso – e é nisto que está a falha cognitiva. Além do mais, o conhecimento do bem não consiste na posse de proposições abstratas, mas numa visão direta pelos “olhos internos da alma” que compele à ação.

A ética e a psicologia de Aristóteles são tributárias da teoria moral de Sócrates. A questão “Como viver?” indaga como me tornei a pessoa que sou e como vejo agora minhas atitutes diante do pano de fundo de meus planos futuros, o que implica pensar na vida como um todo. E, de fato, todas as escolhas e ações humanas têm por finalidade algo considerado bom para o próprio agente. Mas, segundo Aristóteles, os fins subordinam-se uns aos outros, formando uma hierarquia. Há fins imediatos – como o preparar-se para a vida profissional –, mas estes não dão uma explicação completa da razão pela qual o agente os pratica. Pois nossas motivações organizam-se de modo a haver um objeto último de desejo – o fim ao qual todas as nossas escolhas aspiram. E aquilo que buscamos como um valor absoluto deve ser também alcançável por nossas ações. Este sumo bem é, evidentemente, ser feliz. Pois a felicidade (eudaimonia) é procurada em si mesma e torna a vida desejável e carente de nada. Com isso Aristóteles sugere que, se você advoga que a felicidade consiste no prazer, por exemplo, mas admite que uma vida capaz de combinar prazer e sabedoria é ainda superior, então reconhece que faltava algo em sua primeira noção de felicidade. Ora, a felicidade é algo auto-suficiente. Mas, já que existem várias concepções de felicidade, como fazer de minha vida uma existência feliz?

Há basicamente três modos de vida – a vida devotada ao prazer e entretenimento, aquela dedicada ao serviço público e, ainda, a vida voltada ao conhecimento e à filosofia – ligados, por sua vez, a três razões para preferir a vida à morte – desfrutar dos mais altos prazeres; ganhar um nome respeitado aos próprios olhos e aos dos demais; apreciar uma compreensão do mundo em que nos encontramos.

Aristóteles sustenta que a felicidade será alcançada no exercício das virtudes morais e intelectuais – o que parece favorecer a vida pública e a contemplativa. Pois, assim como o bem de um flautista, por exemplo, é o desempenho competente de sua habilidade específica – tocar flauta bem –, já que aquilo que faz dele um flautista é justamente tocar o instrumento; do mesmo modo, o bem para o ser humano é o desempenho excelente das disposições que fazem dele o que é, a saber, um ser racional. Ser feliz, em suma, é viver e agir bem, é realizar-se como ser humano. Ora, o homem tem uma natureza particular: é um ser vivo dotado de capacidade intelectual, e a função própria da inteligência é contribuir para a sua felicidade. Segundo Aristóteles, nossa felicidade estará, então, na atividade inteiramente excelente de nossa capacidade de pensar – seja em seu aspecto prático, seja no teórico –, acompanhada de moderada boa sorte e ao longo de uma vida completa. Pois é difícil ser feliz e ter uma vida bem sucedida se você, por exemplo, é horrível, chucro das idéias, nascido para ser escravo ou pai de filhos que o desonram, embora a boa sorte seja apenas uma condição para a felicidade. E, numa vida bem vivida, o prazer será uma espécie de coroamento: algo bom quando advém da atividade não impedida e própria ao homem em condição moral adequada.

As virtudes éticas ligam-se ao aspecto emocional do indivíduo – a elementos irracionais como a raiva, o medo, a lascívia, a inveja, o ressentimento –, bem como aos estados mentais de prazer e dor, que acompanham hábitos adquiridos a fim de que a pessoa expresse uma resposta emocional adequada diante de dada circunstância. A moralidade não é algo que possuímos por natureza, segundo Aristóteles. De qualquer modo, a partir desses fatores configuram-se quatro modos de caráter – quem faz o certo com prazer; quem age corretamente, mas a duras penas; quem faz o errado e sofre por isso; quem age mal e sente-se inclusive satisfeito com isso.

As virtudes intelectuais, por sua vez, ligam-se ao aspecto racional da conduta – à sabedoria prática (phronesis) que põe para o indivíduo tanto uma apreciação geral do que é o bem para o homem enquanto tal, como uma estimativa daquilo que está próximo e é exeqüível, na cadeia do raciocínio prático.

A sabedoria reside não apenas no deliberar bem sobre o que é útil e bom para si mesmo por levar ao viver bem em geral, mas em certas qualidades da própria conduta, examinadas por Aristóteles de forma detalhada. Entre elas estão as assim chamadas virtudes clássicas – a coragem, no que diz respeito às situações que suscitam medo; a moderação na busca dos prazeres físicos, e a justiça na distribuição daquilo que cabe a cada um –, bem como outras, inteiramente novas para o escopo da teoria moral socrática. A liberalidade e a magnificência, por exemplo, no uso do dinheiro (seja em pequena, seja em grande escala); a honradez no mérito pretendido para si mesmo e a dignidade na noção do próprio valor; a afabilidade nas relações sociais e a amizade nas pessoais; a espirituosidade na maneira de conversar; e por fim, a calma no que diz respeito à raiva. Cabe notar, inclusive, que a relação de qualidades éticas constituintes da sabedoria prática segundo Aristóteles talvez esteja na raiz de muitas virtudes morais exaltadas pela cristandade: no lugar da moderação encontramos agora o elogio da castidade, e das demais, sucessivamente, a igualdade, a generosidade, o recato, a modéstia, a solidariedade, a fraternidade, a pureza e a paz.

Fica claro, por fim, o motivo pelo qual o tratamento das questões éticas se fará, segundo Aristóteles, apenas em linhas gerais. A moralidade, por assim dizer, carece de fixidez. Pois os próprios agentes devem considerar, em cada caso, o que é mais apropriado à ocasião, ainda que se deva obervar um preceito constante – a boa conduta pode ser arruinada tanto pelo excesso como pela carência, isto é, a qualidade de uma ação sempre será preservada pela busca do meio termo.

II.

Na interpretação de alguns filósofos – Henry Sidgwick (1838-1900) e Bernard Williams (1929-2003), por exemplo –, o pensamento ético antigo e o pensamento ético moderno são nitidamente irreconciliáveis. Pois o ponto de partida dos antigos é a noção de bem, ou melhor, de bem humano ou felicidade (eudaimonia). Contudo, se o bem de um ser é determinado por sua função natural; e se para o homem esta é a atividade intelectual excelente – seja teórica, seja prática (phronesis ou ação correta); e se a ação correta, por sua vez, depende da percepção que um agente excelente terá daquilo que é exigido pelas circunstâncias; então não haverá um corpo de regras universais de conduta.

A filosofia moral moderna, por outro lado, tem como ponto de partida a noção de certo e errado e o código ético que nos foi legado pela cristandade medieval, ou seja, um sistema de normas gerais de conduta, fundamentado na lei divina. Ora, com as disputas religiosas da Reforma e o surgimento de uma sociedade secular, bem como da ciência moderna, o conteúdo específico daquele código não podia mais ser justificado por qualquer apelo à Revelação. E, mesmo que alguns admitissem como base da conduta certos sentimentos humanos, a grande tarefa do Iluminismo no campo da moralidade foi procurar fundamentos para o nosso sistema de deveres em princípios universais determinados pela razão natural.

A ética moderna – a deontologia e o utilitarismo, em particular – nutre, de fato, o desejo de alcançar um conhecimento certo com fundações inabaláveis, e assim oferecer princípios universais a partir dos quais a solução prática de problemas éticos possa ser racionalmente deduzida. Ora, tal exigência parece essencialmente irrealizável pelos traços característicos da ética antiga.

O mais claro empreendedor de uma moralidade com feições universais foi o alemão Immanuel Kant (1724-1804), para quem a ética deve e pode fundar-se completamente na razão humana. O homem distingue-se pela autonomia moral – capacidade de comprometer-se voluntariamente com fins racionalmente escolhidos – em oposição à sua heteronomia física – sua fisiologia é comandada por leis naturais que não dependem de sua própria vontade. Mas o valor moral dos atos humanos liga-se justamente ao fato de terem sido livremente escolhidos: o indivíduo que tem seu comportamento controlado por causas além de seu próprio controle – sejam as subjetivas, como desejos e emoções, sejam as objetivas, como qualquer tipo de coerção física –, não é alguém que age livre e voluntariamente. Por isso mesmo, sua conduta é completamente desprovida de qualquer valor moral, não importa as conseqüências boas ou más que traga. A vontade, para Kant, é razão em ação. E deve purificar-se, então, de toda e qualquer influência sensível, pois a vontade só é efetivamente livre quando quer e busca aquilo que a razão determina – deveres logicamente deduzidos e, por isso mesmo, obrigatórios. Em suma, ser uma pessoa boa é difícil, pois envolve um verdadeiro conflito interior entre nossas inclinações – aquilo que eventualmente gostaríamos de fazer – e os imperativos inflexíveis da razão. Para Kant, enfim, moralidade nada tem a ver com felicidade do agente, tampouco com as conseqüências de suas ações.

De fato, a filosofia moral deontológica (assim chamada por conta do termo grego déon, “deve”) distingue-se radicalmente do utilitarismo, ainda que cada uma busque princípios universais para fundamentar a conduta dos homens.

Na ética utilitarista, que tem como precursor Jeremy Bentham (1748-1832), a melhor vida para uma pessoa consistirá naquela que apresente o melhor balanço entre prazer e dor: pode valer a pena suportar certos sofrimentos – como uma cirurgia – em vista de produzir ao longo prazo uma maior quantidade de prazer – saúde por muitos anos. O valor de diversos prazeres e dores resultantes de um curso determinado de ação pode ser calculado e então multiplicado pela probabilidade de a ação realmente ocorrer. Um de seus principais expoentes, John Stuart Mill (1806-1873), embora tenha aceitado a premissa de que o ser humano busca o agradável e evita o desagradável, para evitar certas implicações inaceitáveis do hedonismo de Bentham procurou distinguir certas qualidades nos prazeres. De qualquer forma, definiu-se como princípio universal a maximição da utilidade líquida estimada para todas as partes envolvidas numa tomada de decisão – seja lá o que se entenda por “utilidade”: prazer, bem-estar, preferência. Para os utilitaristas, enfim, as motivações do agente não podem ser conhecidas, e nem mesmo são importantes. Apenas as conseqüências da conduta contam na avaliação moral de seus atos.

III.

A influência da ética antiga na filosofia moral contemporânea não é gratuita. De fato, e a seu modo, a ética antiga convergiria para aquilo que, em poucas palavras, pode ser chamado de ‘crise de legitimação’: a atitude de dúvida e incredulidade que ganhou tantos adeptos nos últimos cem anos, ou mesmo antes, quanto à aspiração de universalidade da ciência e ética modernas, sobretudo por não acreditarem na possibilidade de identificar qualquer ponto externo aos sistemas para avaliá-los objetivamente, o que acarretaria uma inevitável multiplicação de perspectivas. No entanto, a visão ética antiga, ainda que não tenha regras de condutas absolutas – pois vê a conduta adequada como dependente sempre do singular – parece contornar os riscos do relativismo radical, tão premente em nossos dias. É, por fim, uma filosofia moral altamente analítica, bem como racional e lógica, voltada para o auto-aperfeiçoamento induzido pela criação de hábitos via punição e recompensa, com requisitos realistas quanto ao caráter do agente.

A título de conclusão, cabe ainda realçar algumas características da ética antiga muito afinadas com o mundo de hoje. Nascida para servir e educar a juventude com pretensões públicas, não desconhece a realidade da competitividade social. Pelo contrário, vê como postiva a rivalidade (a boa éris) entre iguais que disputam algo de valor (seja a coroa de louros nos jogos olímpicos, seja a opinião pública nas discussões políticas). É uma ética voltada para a moralidade individual – para aquilo que é um valor de ordem moral para o próprio agente. Baseia-se também na busca de excelência e de desempenho competente. E, mais do que isso, é uma ética da honra pessoal e da justiça segundo o mérito – e isto significa que o próprio mérito é visto como um aval para a recompensa individual.

Assim, não enfrenta as dificuldades práticas das éticas baseadas no altruísmo e na benevolência, sem ser uma teoria que advogue o egoísmo – já que o auto-interesse nada tem a ver com ambição crassa e oportunismo impulsivo – ou o hedonismo – pois o prazer, embora tenha um lugar na felicidade, não consiste na mera satisfação de carência, mas na experiência de bem-estar que emerge na atividade natural e excelente do homem.

Maria Cecília Leonel Gomes dos Reis é graduada em Artes Plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado, Doutora em Filosofia pela USP e professora de Ética no Ibmec-São Paulo. Publicou uma tradução do Sobre a alma, de Aristóteles (De anima. São Paulo: Editora 34, 2006, 360 pp.) e recentemente o romance O mundo segundo Laura Ni (São Paulo: Editora 34, 2008, 192 pp.).