A história do tamanduá

por Stephen Vincent Benét

 

Neste número ousamos apresentar um conto autenticamente transgressor e escandaloso que, contrariando todos os cânones literários vigentes, não fala de sentimentos de fracasso, dor de cotovelo e negrume absoluto, nem do enésimo-quinto matiz indistinguível do desespero, e nem ao menos sugere que é preciso resignar-se às secreções gosmentas da nossa condição ou, se possível, pular do vigésimo andar.

Mas, ironias à parte, é de fato uma obra rara em toda a literatura universal pelo tema, uma visão quase impressionista não do drama ou da possível tragédia, mas do amadurecimento do amor. Vê-se que é escrito por um homem maduro, a ponto de quase podermos dizer um sábio. No entanto, o autor não se destaca por especiais peripécias de vida; é antes uma figura de segundo plano, mas muito popular e prolífica – escreveu obras de história, reportagem e ficção -, das letras norte-americanas do entre-duas-guerras. Dos seus contos, vários pertencem ao gênero que por lá se chama “histórias de mistério”, mas outros tantos, como este, são meio inclassificáveis: giram em torno do que talvez pudéssemos chamar “reflexões antropológicas”. O único que, ao que saibamos, chegou a ser traduzido e publicado aqui e ali em alguma antologia é o seu clássico Daniel Webster e o demônio, que une precisamente estes dois gêneros.

*****

A mais jovem sentou-se ereta na cama, ainda envolta nos lençóis.

– “Se você vai descer para espiá-los”, sussurrou acusadoramente, “eu também vou! Além disso, a Alice vai pegar você”.

– “Ela não vai me pegar”. A voz da irmã mais velha transbordava de desprezo. “Ela está lá na despensa, ajudando. Junto com aquele cara do Gray’s”.

– “Mesmo assim, eu vou. Só quero ver se o sorvete é em forminhas ou só do tipo a granel com morangos. E se a Alice não vai pegar você, também não vai me pegar”.

– “Vai ser em forminhas”, disse a outra com uma sabedoria que nascia das profundezas da experiência. “A mamãe sempre usa as forminhas quando vêm os Whitehouse. E o sr. Whitehouse faz uma espécie de estalinhos na garganta e fala de ‘doces para quem é doce’. Ele já devia saber que é brega, mas não percebe. Além disso, não é a sua vez”.

– “Nunca é a minha vez”, reclamou a menor, repuxando os lençóis.

– “Tudo bem, então vá, já que você faz tanta questão de ir! E depois faça um só barulhinho, e eles nos ouvem, e um deles sobe…”.

– “Às vezes eles trazem coisas quando sobem…”, disse a novinha, sonhadora. “Aquele homem da cara cor-de-rosa trouxe. E disse que eu era um anjinho”.

– “Esse é que era brega”, disse a mais velha com voz congelante, “e além disso você passou mal depois e sabe o que a mamãe falou”.

A criança soltou um suspiro, um longo suspiro de derrota e resignação.

– “Tudo bem”, disse. “mas da próxima é a minha vez. E você vai me contar se era em forminhas!”

A mais velha concordou com a cabeça, já se esgueirando pela porta.

Na primeira volta da escada, um pequeno patamar oferecia um excelente posto de observação, desde que se conseguisse chegar ali sem ser percebido. Jennifer Sharp atingiu-o sem ruído e, encolhendo-se toda para ocupar o menor espaço possível, olhou avidamente para baixo, para a sala de jantar.

Não conseguia ver a mesa inteira. Mas observou imediatamente que a sra. Whitehouse tinham um negócio que parecia um besouro prateado no cabelo, que o coronel Crandall estava mais parecido com um cachorro policial do que nunca, e que havia cestinhos de prata com mentinhas rosas e brancas. Isso significava que era realmente um jantar de gala. A seguir, tomou nota do sorvete para Joan.

Conversa e risadas subiam até ela – frases estranhas e brincadeiras incompreensíveis de um outro mundo, a serem recordadas, examinadas e analisadas quanto ao seu significado ou à sua falta de significado quando ela e Joan estivessem a sós. Ela abraçou os joelhos: estava se divertindo muito. Daí a pouco o seu pai acenderia a pequenina chama azul sob a misteriosa máquina de vidro que fazia o café. Ela gostava de vê-lo fazer aquilo.

Observou-o agora com orgulho. O coronel Crandall tinha lutado com os alemães nas trincheiras e o sr. Whitehouse tinha um banco para guardar o seu dinheiro. Mas o pai, no fim das contas, era mais legal do que qualquer um deles. Ainda se lembrava, como quem olha através de uma vasta planície, de quando o papai e a mamãe tinham sido apenas Pai e Mãe, enormes fenômenos naturais, amados mas incompreensíveis como o clima, únicos na sua condição. Agora que era mais velha, sabia que os pais e as mães dos outros eram diferentes. Até Joan sabia isso, embora Joan ainda fosse muito criança. Jennifer sentia-se muito velha e bastante condescendente enquanto filosofava assim sobre si mesma e sobre os seus pais e sobre a infantilidade de Joan.

O sr. Whitehouse estava falando, mas o papai queria falar também – sabia disso pelo pequeno gesto nervoso que ele esboçou com a mão esquerda. Agora todos riram e o pai se inclinou para a frente.

– “Isso me lembra”, disse, “de uma das nossas histórias favoritas…”. E, de repente, todo o seu rosto assumiu um aspecto jovem e divertido.

A sua filha mais velha recuou um pouco mais para as sombras, com um sorriso entediado mas tolerante nos lábios. Sabia o que estava para vir.

*  *  *

Quando Terry Farrell e Roger Sharp se apaixonaram, a guerra para acabar com todas as guerras tinha terminado fazia pouco, a permanente no cabelo ainda era uma opção, os filmes eram mudos e as roupas femininas não podiam ser mais malucas. Também era opinião comum que a jovem geração era adoidada, mas no fundo ainda tinha o coração no lugar certo, e que assim que conseguíssemos pôr um homem de negócios na Casa Branca, tudo se acertaria.

Quanto a Terry e Roger, eram tão experientes quanto adoidados. Ao menos, é o que lhe teriam dito. Terry tinha sido beijada por diversos homens em diversas danças, e Roger ainda se lembrava do episódio curioso e um tanto nojento da garota, em Forth Worth; ou seja, a experiência de vida não podia ser mais patente. Eram inteiramente emancipados e livres; mesmo assim, apaixonaram-se da maneira mais elementar e inesperada. O seu casamento não se pareceria com nenhum outro, pois conheciam todas as respostas certas para todas as perguntas e não tinham a menor intenção de se submeterem aos lugares-comuns habituais da vida social.

No começo, aliás, queriam até  formar uma união livre, pois tinham lido a respeito nos livros populares da época. Mas, sem que conseguissem entender bem como, assim que Roger começou a visitar Terry as respectivas famílias mostraram-se muito acolhedoras. Eles não pretendiam dar a menor atenção ao que as suas famílias dissessem, mas quando a sua família faz comentários favoráveis sobre o rapaz ou a moça por quem você está apaixonado, bem, fica difícil combatê-la. Antes de saberem direito o que estava acontecendo, estavam formalmente comprometidos e, pior ainda, gostando muito daquilo, embora ambos estivessem de acordo em que um noivado formal era um costume social ultrapassado e ridículo.

Brigaram bastante, porque ambos eram jovens e um tantinho ferozes na veemência com que exprimiam as suas opiniões, certos como estavam delas. Essas opiniões tinham a ver, em geral, com liberdade e personalidade, e apoiavam-se muitas vezes em citações do Ramo dourado [1]. (Nenhum dos dois tinha lido o livro até o fim, mas ambos estavam de acordo em que era uma grande obra). No entanto, as discussões eram sobre generalidades e não deixavam marcas; além disso, antes e depois, vinham acompanhadas da sensação de estarem descobrindo um no outro potencialidades, semelhanças e convicções previamente insuspeitadas, mas maravilhosas.

Em suma, o fato puro e simples é que eram um casal perfeitamente bem ajustado – “feitos um para o outro”, como se costumava dizer –, por mais que eles mesmos tivessem abominado a idéia. Afinal, tinham lido as obras menores de Haverlock Ellis [2] e conheciam o nome de Freud. Portanto, não acreditavam em pessoas “feitas uma para a outra”; eram avançados demais.

Foi dez dias antes da data marcada para o casamento que tiveram a sua primeira briga real. Nessa ocasião, infelizmente, não ficou nas generalidades.

Tinham tirado o dia longe dos presentes e das famílias para darem uma caminhada mais longa pelo campo, com direito a um piquenique. Ambos, contra a vontade, estavam um pouco solenes e um pouco nervosos. A atmosfera de Casamento Próximo pesava sobre eles; quando as suas mãos se tocavam, a corrente fluía, mas quando olhavam um para o outro sentiam-se estranhos. Terry estivera fazendo compras no dia anterior; estava cansada, e começou a desejar que Roger não andasse tão rápido. Roger estava a preocupado com saber se o sexto ajudante – aquele que tinha estado nos fuzileiros – ia realmente aparecer; e também alimentava suspeitas quanto ao eventual comportamento do padrinho quando chegasse a hora de uns costumes tão antiquados como arroz e gravatas. Tinham certeza de estarem apaixonados, de quererem casar-se, mas a conversa, curiosamente, não queria deslanchar.

O almoço ajudou, e o mesmo fez a paz de estarem a sós. Mas tinham esquecido o sal e Terry tinha uma bolha estourada no calcanhar. Quando Roger pegou o cachimbo, só tinha tabaco para meia cachimbada. Mesmo assim, o vento estava refrescante e a terra quente, e, sentados com as costas contra um rochedo cinza no meio de um campo verde, o pensamento começou a correr mais naturalmente. A corrente entre as mãos entrelaçadas fluía com mais força – num ou dois instantes, voltariam a ser aqueles que sempre tinham conhecido.

Talvez Roger tenha escolhido o pior momento possível para contar a história do tamanduá.

Ele esvaziou o cachimbo e, de repente, sorriu de alguma coisa que lhe passava pela cabeça. Terry sentiu o coração estremecer, uma repentina suavidade na boca – como ele parecia jovem e divertido sempre que sorria! Ela lhe devolveu o sorriso, e todo o seu rosto mudou.

– “Que foi, querido?”, perguntou.

Ele riu. – “Nada”, respondeu. “Só me lembrei… Já lhe contei a história do tamanduá?”

Ela balançou a cabeça.

– “Bem”, começou ele. “Não, não é possível que não a tenha ouvido. Tem certeza de que não? Bem, então, havia uma cidadezinha lá no Sul…”

“… e aí o negão disse: ‘Ué, dona, isso aí não é tamanduá nenhum – é o Edward!’”, terminou, triunfalmente, momentos depois. Não pôde deixar de rir depois de concluí-la – aquela história boba sempre o divertia, por mais velha que fosse. Nesse momento olhou para Terry e viu que ela não estava rindo.

– “Ué, que acontece?”, disse, mecanicamente. “Está com frio, querida, ou –”.

A mão dela, que pouco a pouco se enrijecera na dele, agora foi tirada de vez.

– “Não”, respondeu ela, olhando fixamente em frente, “estou muito bem. Obrigada”.

Ele a olhou. Ali estava alguém que nunca tinha visto antes.

– “Bem”, disse confuso, “bem”. E a seguir a boca se firmou, o queixo se projetou para a frente, e também ele passou a olhar a paisagem.

Terry lançou-lhe um olhar de esguelha. Era terrível e assustador vê-lo ali sentado com aparência distante e estranha. Quis falar-lhe, lançar-se ao seu pescoço, dizer: – “Ë tudo culpa minha, é tudo culpa minha!”, e experimentar a reconfortante sensação de dizê-lo. Nesse momento, voltou a lembrar-se do tamanduá e o seu coração endureceu-se.

Não era nem ao menos, disse severamente de si para si, que se tratasse uma história suja. Não o era, e mesmo que fosse, não tinham eles combinado ser sempre francos e emancipados um com o outro a respeito de coisas como essa? Mas era exatamente o tipo de história que ela sempre tinha odiado, cruel e – sim! – vulgar. Nem ao menos sadiamente vulgar – vulgar sem adjetivos atenuantes. Ele devia saber que ela odiava esse tipo de história. Devia saber!

Se amar significava alguma coisa, segundo os livros, significava compreender o outro, não era isso? E, se você não conseguia compreendê-lo numa coisa tão pequena, como seria a vida depois? O amor era como um dólar de prata novo – brilhante, sem mancha e inteiro. Não, não podia haver meios-termos quando estava em jogo o amor.

Todos esses pensamentos confusos mas veementes passaram num relance pela sua mente. Também sabia que estava cansada e confusa e nervosa, e que a bolha no calcanhar era um pontinho rubro de dor. E então Roger falou.

– “Sinto muito que você não tenha gostado da  minha história”, disse ele no tom anguloso dos ofendidos e injustamente acusados. “Se eu soubesse que era assim que se sentiria, teria tentado contar alguma mais divertida – mesmo que tenhamos combinado…”

E parou, o rosto rígido voltado para ela. Ela sentiu os músculos da própria face tensionando-se e congelando em resposta.

– “Não fiquei nem um pouco chocada, posso garantir-lhe”, respondeu na mesma voz artificial. “Simplesmente não achei muito engraçada. É só isso”.

– “Ah, entendo. Bem, desculpe-me a ofensa”, respondeu ele, voltando-se de novo para a paisagem.

Um pequenino pulso de raiva começou a latejar no pulso dela. Alguma coisa estava sendo machucada, alguma coisa estava sendo quebrada dentro dela. Quando bastava que ele fosse o Roger de sempre e a beijasse, ao invés de dizer… bem, agora era culpa dele!

– “Não, se você quer saber, não achei nada engraçada”, voltou à carga, , numa voz aguda que a surpreendeu. “Só cruel e grosseira e… o pobre negro…”.

– “Isso!”, respondeu ele com profunda amargura na voz, “tenha piedade do preto! Tenha piedade de todo o mundo menos da pessoa que está tentando alegrá-la! Pois eu acho que é uma história muito engraçada… sempre achei… e…”.

Agora estavam ambos de pé, apunhalando-se mutuamente. – “É vulgar”, dizia ela acaloradamente, “pura e simplesmente vulgar… nem ao menos suja o bastante para ser divertida. Tamanduá, bah! Olha, Roger Sharp, é…”.

– “Onde está aquele senso de humor de que você vivia falando?”, berrava ele. “Meu Deus, Terry, que aconteceu com você? Sempre pensei que você… e agora você…”.

– “Bem, ao que parece nós dois estávamos enganados um sobre o outro”, Terry ouviu aquela voz estranha dizer. E a resposta, terrível, naquele tom esquisito dele:

– “Bem, se é isso que você acha, certamente estávamos”.

Olharam um para o outro, espantados.

– “Tá aqui!”, gritava ela, “tá aqui! Oh, meu Deus, por que ele não quer sair do meu dedo?”

– “Você nem pense em tirar isso! Está ouvindo, sua maldita tonta!”, urrou ele, tão repentinamente que ela se assustou, tropeçou, meteu o pé numa fenda da pedra, caiu desajeitadamente e, apesar de todas as suas disposições em contrário, se desfez de maneira absolutamente vergonhosa e convencional numa torrente de lágrimas.

Assim chegaram, por fim, à reconciliação. Que correu, como era de esperar, por canais inteiramente convencionais, repleta de “Não, a culpa foi minha! Diga que foi!”, mas mesmo assim foi, para eles, um evento único na história.

Terry repassou tudo cheia de remorsos, naquela noite, enquanto esperava por Roger. Ele tinha razão. Tinha sido uma tonta. E experimentou o inexplicável alívio de reconhecer que tinha sido uma tonta.

No entanto, tinham dito aquelas coisas um ao outro, e tinham querido dizê-las. Ele a tinha ferido, e ela tivera a intenção de feri-lo. Contemplou solenemente esses fatos. Amor, o brilhante dólar de prata. Não como as moedas comuns nos bolsos das outras pessoas, mas qualquer coisa de especial, de diferente – já um pouco, um quase-nada embaçado, como um vidro se embaça com a respiração.

Ela sido uma tonta. Mas não conseguia esquecer inteiramente o tamanduá.

Pouco depois, estava nos braços de Roger – e soube, com plena certeza, que ela e Roger eram diferentes. Sempre seriam diferentes. O seu casamento não se pareceria nunca com nenhum outro casamento no mundo inteiro. 

*  *  *

Os Sharp estavam casados há exatamente seis anos e cinco horas e Terry, olhando através da mesa para o rosto inteligente e atilado do seu dedicado e satisfatório marido, descobriu de repente que estava mergulhada na solidão mais desoladora.

Em primeiro lugar, tinha sido um erro, isso de ir ao jantar dos Lattimore exatamente no dia do seu aniversário de casamento. O sr. Lattimore era o chefe da companhia em que Roger trabalhava, e o convite da sra. Lattimore quase tinha a força de uma ordem real. Roger e ela tinham conversado a respeito e decidido, prudentemente, que não podiam deixar de ir. Mesmo assim, fora um erro.

Eles eram seres humanos racionais e modernos, asseverou ferozmente a si mesma. Não eram como aqueles casais horríveis das caricaturas – a mulherzinha perguntando ao marido desnorteado se se lembrava de que dia era aquele, e todas as coisas desse tipo. Conheciam bem demais a vida e o amor para se prenderem a esquemas articiais de datas. Eram diferentes. Mesmo assim, tinha havido um tempo em que diziam um ao outro, com um sorriso tolo na cara: “Estamos casados há uma semana, ou há um mês, ou um ano! Pense só!” Agora que o considerava friamente, esse tempo lhe parecia estar à distância de uma era geológica.

Avaliou Roger com uma estranha objetividade. Sim, ali estava ele – um jovem inteligente em ascensão, de trinta e poucos. Não especialmente bonito, mas indubitavelmente atraente – encantador, ao menos quando queria – um amigo leal, um bom pai, um marido de quem a gente se podia orgulhar. E teve a impressão de que, se ele esboçasse de novo aquele pequeno gesto nervoso com a mão esquerda, ou contasse a história do tamanduá, ela iria gritar.

Como era estranho que a descoberta de que você tinha perdido tudo aquilo que mais contava na vida devesse chegar durante um jantar formal, enquanto falava da guerra com um oficial de cabelos escuros em cuja voz vibrava o mel do Sul. E então Terry se lembrou de que ela e Roger tinham descoberto o seu mútuo amor não num gramado iluminado pelo luar, mas na sala de espera (cheia de moscas mortas esmagadas pelas paredes) de uma minúscula estação de estrada de ferro – e o que lhe acontecia agora começou a parecer-lhe menos estranho. A vida era assim. Dava inesperada e abruptamente, sem dar a mínima para a decoração do palco ou as conveniências românticas. E, de maneira igualmente inesperada e abrupta, tirava.

Enquanto a sua boca continuava a falar, uma parte da sua mente procurava obtusa e dolorosamente as razões que poderiam ter dado origem a essa calamidade. Tinham amado um ao outro no começo – mesmo agora, ela tinha absoluta certeza disso. Tinham tentado ser sensatos, tinham sido fiéis, tinham sido francos e alegres. Não os separava nenhuma oposição profunda de temperamentos, nem havia em nenhum deles algum defeito insuspeitado, que se manifestava sob pressão e ameaçasse romper os muros do seu lar. Procurou uma parte culpada, mas não a encontrou. Havia apenas o correr dos dias, uma sucessão de coisas pequeninas que seguiam uma à outra sem correrias nem interrupções. Isso era tudo… mas parecia ter sido suficiente. E agora Roger a olhava – com aquele mesmo olhar curioso, explorador, que ela usara uns momentos antes.

Que sobrava? Uma casa com um menino adormecido, uma rotina de vida, alguns hábitos, certas lembranças, determinados sofrimentos passados em comum. O suficiente para a maioria das pessoas, talvez? Mas eles tinham querido mais.

Alguma coisa lhe soprou ao ouvido: “Bem, e se, no fim das contas, a coisa ainda nem começou de verdade?” Ela se voltou para o seu vizinho de jantar, vendo-o de fato pela primeira vez. Quando a gente reparava nele, descobria que era uma pessoa encantadora. A voz era deliciosa. Nada nele tinha a menor semelhança com Roger Sharp.

Ela riu e percebeu que, com esse riso, alguma coisa despertava nos olhos dele. Ele também não tinha realmente tomado consciência dela até então. Mas agora a vira. Terry ainda não chegara aos trinta, não perdera a beleza. Sentiu fluírem de volta antigos poderes, antigos estados de espírito, coisas que considerava esquecidas, o glamour da primeira juventude. Em algum lugar, na curva de um lago escuro, um bote flutuava… um homem falava com ela… não podia ver o seu rosto, mas sabia que não era o de Roger…

A voz da sra. Lattimore a despertou do devaneio.

– “Mas eu jamais imaginaria! Eu não tinha a menor idéia!” E, chamando o marido na outra extremidade da mesa: – “George! Você sabia que era aniversário de casamento destes dois? Quanta gentileza terem vindo! E eu literalmente tive que arrancar essa informação do sr. Sharp!”

Terry sentiu-se ferver e gelar ao mesmo tempo. Ela estava dolorida, tinha o coração partido, o amor era um mito, mas tinha confiado muito especialmente em que Roger não contaria a ninguém que era o aniversário de casamento deles. E ele tinha contado!

Sobreviveu de alguma maneira às congratulações e às piadas de sempre sobre “Bem, é o sétimo ano de vocês que começa… e vocês sabem o que dizem do sétimo ano!” Até sobreviveu ao comentário pensativo da sra. Lattimore: “Seis anos! Puxa, minha querida, eu jamais pensaria! Vocês são crianças… verdadeiras crianças!” Queria morder a sra. Lattimore: “Crianças!”, pensou indignada. “Quando eu… quando nós… quando tudo está em ruínas!” Tentou lançar um olhar congelante a Roger, à longa distância, mas ele não estava olhando para o lado dela. E sentiu faltar-lhe o chão, pois o destino trazia na manga uma sorte ainda pior.

Alguém, com suprema infelicidade, havia levantado o assunto dos animais domésticos. Viu uma luz iluminar lentamente o rosto de Roger – viu que se inclinava para a frente. Rezou para que a casa caísse, o tempo parasse, a sra. Lattimore explodisse como um fogo de artifício em estrelas verdes e púrpuras. Mas, mesmo enquanto rezava, viu que não ia adiantar nada. Roger ia contar a história do tamanduá!

A história já não lhe parecia chocante, ou mesmo cruel. Mas era uma espécie de resumo de todos aqueles anos de vida com ele. Ao longo desses anos, calculou com amargura, devia tê-la ouvido pelo menos umas cem vezes.

De alguma forma – nunca chegou a saber como – conseguiu sobreviver à centésima-primeira narração, do insuportavelmente familiar “Bem, havia uma cidadezinha lá no Sul…” até o triunfante “é o Edward!” do final. Até conseguiu fixar um sorriso rígido na cara para enfrentar a tempestade de risadas que se seguiu. E então, ó misericórdia, a sra. Lattimore fez sinal de que tinha terminado o jantar.

Os homens ficaram para trás – à história do tamanduá já se tinha seguido outra. Terry encontrou-se, inesperadamente, cara a cara com a sra. Lattimore.

– “Minha querida”, disse-lhe a grande senhora, “é claro que teria convidado vocês em outro dia se eu soubesse. Mas estou muito contente de que tenham podido vir hoje. George queria muito especialmente que o sr. Colden conhecesse o seu brilhante marido. Vão participar juntos daquele projeto no Oeste, você sabe, e o Tom Colden viaja amanhã. De forma que nós dois estamos muito agradecidos pela sua bondade em vir”.

Terry sentiu um súbito latejo quente atravessar a fria neblina que parecia envolvê-la. – “Oh”, gaguejou, “mas o Roger e eu estamos casados há anos… e ficamos muito contentes de vir…” Olhou para a mulher mais velha. – “Mas, por favor, diga-me”, disse numa explosão de confiança que não conseguiu conter, “a senhora nunca teve a impressão de que não agüentaria ouvir uma certa história de novo… nem morta?” 

Um brilho risonho apareceu nos olhos da sra. Lattimore.

– “Minha querida”, disse, “George alguma vez lhe contou da sua viagem ao Peru?”

– “Não”.

– “Pois bem, não o deixe fazê-lo”. Ela refletiu uns momentos. “Ou, melhor – deixe-o fazê-lo. Pobre George – ele se diverte tanto contando-a. E você sempre seria uma ouvinte nova. Mas foi há quinze anos, querida, e penso que eu poderia repeti-la palavra por palavra sempre que ele começa. Mesmo assim, muitas vezes sinto-me como se ele nunca mais fosse terminar”.

– “Mas aí, o que a senhora faz?”, perguntou Terry, ansiosa, mas interessada demais agora para se preocupar com a boa educação.

A mais velha sorriu: – “Ué, penso na história que eu vou contar depois, sobre o guia na galeria de Uffizi. O George deve tê-la ouvido umas dez mil vezes, mas ainda está vivo…”.

Pôs a mão sobre o braço da mais jovem.

– “Todos somos iguais, minha querida. Quando eu for uma velha senhora numa cadeira de rodas, George continuará a contar-me sobre o Peru. Mas, se ele não o fizesse, eu não saberia que era o George”.

Afastou-se, deixando a Terry um pouco de tempo para meditar essas palavras. A sua raiva ainda não se tinha acalmado, e a sua vida continuava em ruínas. Mas, quando o jovem oficial moreno entrou na sala, reparou que o seu rosto era bastante vulgar e a sua voz não passava de uma voz agradável.

O sr. Colden deixou os Sharp em casa. Os dois homens ficaram um momento conversando no portão de entrada, enquanto Terry entrou correndo para ver como estava a criança. O menino dormia pacificamente, os punhos bem cerrados; nesses momentos, parecia-se muito com Roger. De repente, ela percebeu ao redor as imagens e os sons familiares da casa. Sentia-se cansada, como se tivesse voltado de uma longa viagem.

Desceu. Roger acabava de entrar. Parecia cansado também, ela notou, mas ao mesmo tempo exultante.

– “Colden teve de sair correndo”, disse-lhe ele imediatamente. “Deixou-lhe os seus melhores cumprimentos… disse que esperava que você compreendesse… só teve elogios a seu respeito. É um grande cara, Terry. Quanto àquele negócio novo no Oeste…”

Percebeu o olhar grave no rosto de Terry e o seu próprio tornou-se grave.

– “Sinto muito, querida. Foi muito duro para você? Bem, para mim foi, mas não tinha jeito. Pode apostar que, da próxima vez…”.

– “Oh, da próxima vez …”, disse ela e beijou-o. “É claro que não foi duro para mim. Somos diferentes, não é?”

 *  *  *

 Aquela inteligente matrona, a sra. Roger Sharp, sentada agora na cabeceira da sua própria mesa de jantar, fazia de tempos a tempos os comentários apropriados – os “Realmente?”, os “Sim, de fato” e os “É o que eu sempre digo ao Roger” – que bastavam para cumprir todos os deveres da perfeita anfitriã, ao menos no caso do coronel Crandall. O coronel Crandall tinha a maravilhosa capacidade de fazer a gente descansar – bastava lançar-lhe essas poucas migalhas, e podia-se ter a certeza de que ele continuaria a falar indefinidamente, sem no entanto criar um deserto conversacional ao seu redor. A sra. Sharp estava-lhe muito agradecida por isso no momento. Queria retirar-se por uns instantes para um lugar secreto na sua mente e observar o andamento do seu jantar, como mera espectadora, e o coronel Crandall estava-lhe dando a oportunidade.

Tudo estava correndo muito bem. Desde o começo esperava que fosse assim, mas agora tinha certeza, e pôde dar um minúsculo e inaudível suspiro de alívio. Roger estava no seu melhor, os jovens Durward tinham superado a timidez do início, o sr. Whitehouse ainda não começara a falar de política, o suflê tinha sido um sucesso. Relaxou um pouco e deixou a mente divagar para outras coisas.

Amanhã, era preciso lembrar o Roger do terno cinza-claro e marcar o dentista para a Jennifer, e depois seria necessário dar um jeito diplomático na sra. Quaritch na questão do comitê. Era cedo demais para decidir sobre o acampamento de verão para as meninas, mas Roger Junior tinha de saber que eles estavam orgulhosos com as suas notas, e se a mamãe pretendia não viajar por causa da pobre e velha srta. Tompkins – bem, era preciso fazer alguma coisa. E havia também as questões da nova fornalha de calefação, da Associação de Pais e Mestres e do casamento dos Brewster. Mas nenhuma destas realmente a preocupava – sempre tivera muitas coisas a fazer – e, naquele momento, sentiu um desejo pouco habitual de olhar para o passado.

Mais de vinte anos desde o Armistício. Vinte anos! Roger Junior estava com dezessete – e ela e Roger estavam casados desde 1920! Logo, logo celebrariam o seu vigésimo aniversário de casamento. Parecia incrível, mas era verdade.

Percorreu em retrospectiva esses anos, vendo uma criatura cada vez mais jovem com o seu mesmo rosto, uma criatura que ria ou chorava por razões agora esquecidas, corria aloucadamente de um lado para o outro aqui, sentava-se solenemente na cátedra do juiz ali. Experimentou uma forte simpatia por aquele estouvamento juvenil, mas igualmente um forte desejo de sorrir. Não estava velha, mas tinha sido – tão jovem!

Roger e ela… o começo… os primeiros anos… o nascimento de Roger Junior. A casa em Edgehill Road, aquela com a rodeira para pratos na sala de jantar, e o choro quando a deixaram, porque nunca mais voltariam a ser tão felizes como tinham sido, mas voltaram a sê-lo, e era uma casa incômoda. Os ciúmes por causa de Milly Baldwin – que idiota tinha sido! – e a horrível dança no country-clube em que Roger ficara bêbado; agora já não era horrível. Os anos estranhos e corridos do boom… o crash da bolsa… os tempos difíceis… Roger voltando para casa depois do suicídio de Tom Colden e o olhar no seu rosto. Jennifer. Joan. Casas. Pessoas. Acontecimentos. E sempre as manchetes nos jornais, as vozes no rádio, retinindo, retinindo. “Não há segurança… Problemas… Desastre… Não há seguranças”. Mesmo assim, no meio da insegurança, tinham-se amado e gerado crianças. No meio da insegurança, pelo tempo de uma respiração, por uma breve hora, tinham construído, e aqui e ali encontrado a paz.

Não, não havia garantias, Terry pensou. Não há garantias. Quando você é jovem, pensa que há, mas não há. Mesmo assim, eu faria tudo de novo. Logo estaremos casados há vinte anos.

– “Sim, é o que sempre digo ao Roger”, disse, automaticamente. O coronel Crandall sorriu e continuou. Ele continuava bastante bonito, pensou ela, lá naquele seu tipo moreno, mas estava ficando bem careca. O cabelo do Roger tinha uns poucos fios cinzentos, mas continuava denso e rebelde ao pente. Ela gostava de homens que não perdiam o cabelo. Lembrava-se também de ter pensado, há muitos anos, alguma coisa a respeito da voz do coronel Crandall, mas não conseguia lembrar-se do que fora.

Reparou numa manchinha branca na curva da escada, mas não disse nada. O roupão era quente e, se não lhe dessem atenção, Jennifer logo voltaria para a cama. Era diferente com a Joan.

De repente, ficou alerta. A sra. Durward, na extremidade mais próxima do Roger, tinha mencionado o Zoológico. Terry sabia o que aquilo significava: o Zoológico – as novas construções – o novo secretário da habitação – e eis o sr. Whitehouse lançado em mais uma interminável tirada contra os seus inimigos políticos favoritos por todo o resto do jantar. Por um instante miraculoso, conseguiu ficar olho a olho com Roger. O sr. Whitehouse já estava limpando a garganta, mas conseguira enviar o sinal ao Roger. Ele os salvaria. Terry viu a sua mão esquerda dar uma batidinha na mesa, naquele seu pequeno gesto característico, viu como captava a atenção dos comensais. Como o seu rosto parecia jovem e divertido, à luz das velas!

– “Isso me lembra de uma das nossas histórias favoritas”, começou ele. Ela se reclinou na cadeira. Um profundo contentamento a invadiu. Ele ia contar a história do tamanduá – e, mesmo que alguns dos comensais já a tivessem ouvido, teriam de rir, pois ele sempre a contava tão bem. Sorriu antecipando o triunfante “É o Edward!” E, se depois o sr. Whitehouse ainda ameaçasse, ela mesma contaria a história de Joan e do regador.

 *  *  * 

Jennifer entrou sem fazer barulho no quarto às escuras.

– “E aí?”, perguntou um sussurro ansioso vindo da outra cama.

Jennifer respirou fundo. A lembrança da mesa de jantar iluminada ergueu-se diante dela, multicolorida, faiscante, portentosa – um presságio majestoso, um mistério de esplendor que precisava ser meditado com calma. Como poderia transmitir aquela imagem a Joan, para que visse o que ela tinha visto? Além de que Joan ainda era tão criança!

– “Oh, ninguém me viu”, disse com voz entediada. “Mas foi em forminhas, só isso. Ah, e o papai contou de novo a história do tamanduá”.

 

 

Título original “The Story about the Anteater”; conto publicado em The Stephen Vincent Benét Pocket Book, Pocket Books Inc., New York, 1946.

 

Stephen Vincent Benét (1898-1943) foi poeta, contista e romancista. Entre as suas obras mais conhecidas, estão John Brown’s Body (1928), longo poema de corte épico que narra a Guerra Civil Americana, e que recebeu o prêmio Pulitzer em 1929, e os contos The Devil and Daniel Webster e By the Waters of Babylon.

 

Tradução de Henrique Elfes.

 


[1] Referência à obra de Sir James Frazer, The Golden Bough, de 1890, vasto estudo de mitologia e história das religiões, enormemente difundido na época. O esquematismo darwinista e positivista fez com que a obra perdesse valor com o tempo, mas continua hoje a ser fonte interessante de informações; influenciou diversos estudiosos posteriores, entre eles Mircea Eliade e René Girard.

 

[2] Henry Havelock Ellis (1859-1939) foi médico e um dos primeiros, se não o primeiro, sexologista; também se empenhou em promover causas sociais (feminismo, socialismo etc.) e foi defensor da eugenia.