A queda de Roma

por W. H. Auden / tradução de Pedro Sette Câmara

As ondas batem contra o cais;

a chuva sobre o descampado

açoita um trem abandonado;

nos montes há ladrões demais.

As vestes cada vez mais belas;

o Fisco busca sem pudores

abscônditos sonegadores

nos esgotos das cidadelas.

Faz-se dormir, com ritos mágicos,

no templo as sacras prostitutas;

e os literatos já recrutam

um amiguinho imaginário.

Catão, o cérebro perfeito,

louva os saberes do passado;

fuzileiros amotinados,

porém, exigem seus direitos.

Esfria o leito imperial

enquanto um reles funcionário

em seu rosado formulário

diz: MEU TRABALHO PAGA MAL.

Sem riqueza e sem piedade,

passarinhos de rubras pernas

aquecem seus ovos e observam

a gripe entrando nas cidades.

Num lugar distante, entrementes,

imensos bandos de veados

correm por milhas de dourado

musgo, silenciosamente.

Como essa tradução de “The Fall of Rome” foi feita por mim mesmo, deixo os elogios aos bem e as execrações aos mal-amados; vou tratar dela diretamente, e por duas razões: primeira, traduzir, numa expressão excelente de Paulo Henriques Britto (que me ajudou em dois versos aqui), é “reescrever um poema em outra língua de modo que ele continue o mesmo, em algum sentido da palavra mesmo” – assim, este “A queda de Roma” é o mesmo poema de Auden, em algum sentido; segunda, a tradução literária acrescenta à literatura, ainda que seu status preciso esteja por ser estabelecido. Certo é que a tradução é uma forma de apropriação e de acesso fundamental, já que raríssimos autores, inclusive entre os maiores, são também filólogos eruditos capazes de ler qualquer coisa. Para que se tenha uma idéia, o texto literário mais influente da história é a Odisséia. Quantos o leram no grego antigo original? Claro que por isso também é válido falar em como os tradutores de um idioma se apropriam de um original, e que isto afetará a influência daquele texto; mas onde começa e onde acaba a influência do autor e começa a do tradutor? Também acho que isso pode ser estimado de modo bastante razoável, mas é algo muito trabalhoso.

“A queda de Roma” acrescenta algo à tradição da nossa língua. Estamos acostumados a rir muito do que é escrachado; a dar sorrisos com o que é menos escancarado; mas onde estão os poemas irônicos – mas irônicos sem aquele arzinho de superioridade, sem comentário político, sem trocadilho fácil? Sei que nesse momento há a tentação de opor inteligência à superficialidade, e talvez essa seja mais uma percepção do que uma tentação, já que a marca dessa ironia a que me refiro é uma certa sutileza.

Como se constrói “A queda de Roma”? Pela inversão das expectativas. O título é épico, mas o tratamento do tema chega por vezes a ser intimista. Temos a insatisfação do funcionário, os passarinhos que chocam seus ovos. Em vez de uma grande visão geral – “A queda de Roma” já nos faz pensar em algum filme que começasse mostrando a cidade ao longe e fizesse a câmera viajar até chegar ao suntuoso aposento de uma autoridade palaciana, no qual aconteceria não um pequeno, mas um nababesco ato coletivo de perversão – o poema traz pequenas cenas isoladas que funcionam pelos contrastes. Na verdade, cada estrofe traz um contraste interno. É possível que o mais interessante seja o de Catão com os fuzileiros, sugerindo, talvez de maneira populista, um descompasso entre as elites e os famosos anseios populares; mas, se não houvesse esse descompasso, também não haveria distinção entre elite e povo, em qualquer sentido dessas palavras que preserve seu mútuo antagonismo. A exceção a essa estratégia de cada estrofe é a última, que contrasta com o poema inteiro e que retoma a primeira estrofe, falando de um fenômeno natural: as ondas, a chuva, os veados que correm (e na verdade até os pássaros de rubras pernas) permanecem indiferentes ao que sucede no mundo dos homens. Roma cai; e daí?

Auden chegou a descrever a si mesmo como “um poeta cômico”. Sua comicidade nunca chegou ao escracho, mas permaneceu, neste e em outros poemas, naquilo que vulgarmente se chama de “humanização”, isto é, a escolha de uma perspectiva bastante prática e direta para tratar de questões “grandiosas”. Aqui ele questiona o fenômeno histórico da queda de Roma olhando para as cenas que o compuseram, preferencialmente na escala dos indivíduos humanos. O poema vê a queda de Roma; mas os seus personagens, o que vêem?

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