Amigo da ciência, inimigo do cientificismo

por Joel Pinheiro da Fonseca

  

A humanidade assistiu passiva ao crescimento do Estado ao longo do século XX, seja sob a forma de socialismo, fascismo, social-democracia ou Welfare State. Hoje, sofremos as conseqüências desse processo: liberdades perdidas e qualidade de vida estagnada. A defesa da liberdade vem ganhando novos adeptos; por muitas décadas, no entanto, apenas um intelectual resistia bravamente ao estatismo dominante: Ludwig von Mises. Uma recente biografia o chama de “último cavaleiro do liberalismo”. A alcunha é justa. Sendo um liberal clássico convicto, sua vasta produção intelectual parecia, à época, uma empreitada quixotesca.

Ela rende frutos, contudo, até os dias de hoje, seja por seus grandes tratados econômicos (o principal é Ação humana), seja pelos livros menores, auxiliares, como o que será aqui resenhado – que trata de epistemologia, um tema não menos importante. Afinal de contas, uma base epistemológica sólida é essencial para o estudo da ciência e para uma postura saudável frente à realidade, que consiste no desejo de chegar sempre à verdade e na crença no poder da razão para consegui-lo, aliados à percepção sóbria de que a própria mente humana é limitada, assim como cada um dos métodos por ela empregados.

Mises considerava suas dissertações epistemológicas um complemento à sua produção como economista, e inseparáveis dela. Segundo ele, mesmo a filosofia da ciência deve mais aos cientistas que aos filósofos: “As contribuições básicas à epistemologia moderna das ciências naturais foram uma realização de Galilei, não de Bacon; de Newton e Lavoisier, não de Kant e Comte” (pág. xiii). Por esse motivo, tentarei articular a filosofia do autor com sua economia, mas é claro que a primeira, foco do livro, tomará o lugar principal. Antes de tudo, porém, é conveniente dizer algo sobre esse grande economista, hoje tão pouco conhecido.

O autor e o livro

 

Ludwig Heinrich Edler von Mises nasceu em 1881, na cidade de Lemberg, Império Austro-Húngaro, filho mais velho de uma rica família judaica. Formou-se na Universidade de Viena, onde conheceu a obra de Carl Menger e estudou com Eugen von Böhm-Bawerk, duas influências que o voltaram definitivamente para a defesa do livre mercado e para uma ciência econômica primariamente lógica e verbal, e não matemática e nem experimental. Participou, assim, do fervilhante caldeirão cultural que foi a Viena do início do século XX. Nos anos 20, trabalhou como assessor econômico do governo. Com a ascensão do nazismo, fugiu para a Suíça. Em 1940, emigrou para os Estados Unidos. Deu aulas como professor visitante na Universidade de Nova Iorque, e lá viveu até sua morte em 1973.

A defesa intransigente do liberalismo econômico rendeu-lhe muitos adversários. Tratava-se menos de teimosia que de coragem. Num mundo de compromissos e reticências diplomáticas, onde incoerência era confundida com honestidade intelectual, permanecia firme em seus princípios, e defendia incansavelmente o que considerava ser verdadeiro. Era, em suas próprias palavras, um racionalista, mas não no sentido de atribuir poder infinito à razão e valor absoluto a algum método limitado de obtenção de conhecimento. Seu racionalismo consistia, sim, em considerar a razão a única via de conhecimento, mas com plena consciência de seus limites e da pluralidade de métodos que as diversas áreas do saber exigem. Economista, era bastante cioso de combater os erros cometidos em sua ciência.

E esses erros foram muitos. Na juventude, participou do debate contra a escola histórica alemã, segundo a qual as particularidades de cada povo impediriam a formulação de uma ciência econômica universal. Ao mesmo tempo, combatia tenazmente os socialistas, que defendiam a economia planificada. Nos anos 30, digladiou-se contra o keynesianismo, que enxergava na falta de demanda o grande inimigo da prosperidade e propunha que o governo gastasse mais para levar a economia adiante. Já nos anos 60 (o livro é de 1962), o maior oponente intelectual no campo das humanidades era o positivismo, tendência viva até hoje, que busca submeter todo o saber humano ao método das ciências naturais. O fundamento último da Ciência Econômica vai fundo nesse debate.

É possível distinguir três níveis de profundidade na discussão científica. O primeiro consiste nas próprias questões de cada ciência. No caso da economia, exemplos vêm facilmente: o que determina o preço de um produto? O aumento do salário mínimo produz desemprego? A emissão de mais moeda leva ao aumento geral dos preços? Essas são questões que todos os economistas discutem. O segundo nível é o metodológico, que faz perguntas do tipo: como um economista prova uma teoria? De uma série de dados históricos pode-se inferir um teorema econômico? Qual é o papel da matemática na economia? Aqui, discute-se o proceder da ciência. O terceiro nível é aquele que a deixa temporariamente de lado e trata de questões mais puramente filosóficas: quais são os pressupostos básicos acerca da realidade que o economista faz ao conduzir seu estudo? Quais são os diferentes pontos de partida metafísicos de cada metodologia econômica, e o que deles se conclui? O livro situa-se nesses dois últimos níveis.

Resumindo-o em uma linha, trata-se de uma grande defesa da mente. Não contra alguma corrente mística e irracionalista que negue a capacidade da razão de conhecer a realidade, mas contra um adversário que pretende exaltar determinado uso da razão, e o faz às custas das demais aspirações da mente. Ao restringir o alcance da racionalidade apenas àquilo que se possa testar empiricamente, o positivismo mina a base das ciências humanas, como a economia, e ainda lega a ética, a metafísica e a teologia ao campo da irracionalidade e do subjetivismo.

O ataque às pretensões positivistas visa a abrir espaço à ciência econômica, que depende, antes de tudo, de conceitos não-observáveis e puramente mentais (fins, meios, valor, preço, lucro etc. existem apenas na interpretação que a mente faz da realidade). Sua missão é frear o avanço do positivismo nas ciências humanas, por ser não só intelectualmente estéril, mas trazer consigo conseqüências sociais danosas. Para cumpri-la, ele tem de mergulhar na filosofia e discutir, entre outras questões, se o universo é composto de uma substância apenas, se a realidade externa existe, se a mente é ou não produto de reações físicas, e se o homem é ou não livre. Estamos bem longe dos manuais de economia!

Uma seção preliminar e oito capítulos compõem este livro curto de 120 páginas. Os quatro primeiros são mais filosóficos e discutem certas posições acerca da mente humana e da estrutura da realidade que estão por trás da ciência e, mais especificamente, da ciência econômica. Os quatro seguintes focam-se na própria economia e nos erros de se negligenciá-la, bem como nos perigos da influência positivista nesse campo.

 

 

A discussão filosófica

 

O grande ponto dos positivistas é o de que nenhuma tese a priori (isto é, comprovável sem recurso à experiência) confere conhecimento válido ao ser humano. O conhecimento, argumentam, só pode ser alcançado pelo método empírico ou experimental. Tudo que não passe por ele é, ou mera subjetividade, ou tautologia. Com essa base epistemológica, categorias não-observáveis são deixadas de fora da explicação científica. A causalidade é reduzida à mera sucessão temporal ou à correlação estatística, e a mente é reduzida a fenômenos observáveis externamente, como movimentos corporais ou processos cerebrais.

Deixando transparecer sua influência kantiana, Mises argumenta que o conhecimento depende de categorias lógicas da mente, que não são dadas pela experiência. A estrutura da mente é anterior aos fatos da experiência, e é por ela que a experiência é interpretada. Há o risco de transformá-lo num idealista, segundo o qual a mente molda a realidade, mas ele mesmo afasta essa possibilidade com a constatação óbvia de que a realidade independe do conhecimento humano – mesmo antes da descoberta dos microorganismos, eles já causavam infecções muito reais. As categorias da mente não moldam a realidade; antes, estão em harmonia com ela. A mente humana trabalha com categorias a priori que correspondem ao mundo externo. Caso contrário, não seria possível agir com sucesso, e o homem rapidamente se extinguiria.

Se o universo fosse caótico, se seus fenômenos não obedecessem a nenhuma regularidade, as categorias da mente não dariam conta de entendê-lo. “Nenhuma inferência de eventos passados para o que pode acontecer no futuro seria permitida. Portanto o homem não poderia agir. […] A primeira e mais básica realização do pensamento é a percepção de relações constantes entre os fenômenos externos que afetam nossos sentidos” (pág. 17). Assim, o homem é um ser racional num universo ordenado. A estrutura de sua mente está em consonância com a estrutura da realidade externa.

Tudo isso serve para estabelecer o ponto de que não é só de experiências externas que o conhecimento é constituído. A análise da estrutura mental humana é também fonte de saber. É com base nas categorias a priori que afirmamos que todo evento tem uma causa. É só com elas que podemos entender as ações de outras pessoas não como fenômenos espontâneos da natureza, mas como dotadas de propósito inteligível. A ação humana é uma categoria auto-evidente; todo homem sabe o que é visar conscientemente a um objetivo. Nessa simples categoria de ação já estão contidos os conceitos que, uma vez desenvolvidos, darão origem à ciência econômica.

Para levar adiante seu plano de pesquisa, os positivistas precisam dar conta dos fenômenos mentais e explicar por que a ciência deve ignorá-los. Em geral, a explicação é materialista: todos os fenômenos mentais (pensamentos, idéias, desejos etc.) são resultado de fenômenos físicos (sinapses neurológicas, por exemplo). Assim, tudo o que se passa na mente é resultado de algum processo do cérebro. Se conhecêssemos o cérebro perfeitamente, esgotaríamos tudo o que há para se conhecer da mente; saberíamos por que “os fatores materiais necessariamente produziram no homem Maomé a religião muçulmana, no homem Descartes a geometria analítica, e no homem Racine a Fedra” (pág. 25).

A refutação dessa posição é engenhosa. Os defensores do materialismo pensam que sua doutrina elimina apenas a distinção entre bem e mal (afinal, quem é culpado de suas idéias e ações se elas são fruto de processos físicos?), sem perceber que ela elimina também a distinção entre verdadeiro e falso. Se um cérebro produz o juízo “A”, e outro o juízo “B”, como dizer que um está certo e o outro errado? A natureza não erra; o que se tem são dois cérebros diferentes que, com estímulos diferentes, chegam a resultados diferentes, de modo que não cabe qualquer atribuição de acerto ou erro. “Para uma doutrina que afirma que os pensamentos têm a mesma relação com o cérebro que a bile tem com o fígado, não é mais permitido falar em idéias verdadeiras ou falsas que atribuir verdade ou falsidade à bile” (pág. 26).

Em geral, o materialismo positivista decorre de uma concepção monista da realidade, ou seja, da crença de que, no fundo, existe apenas um tipo de coisa, do qual tudo o mais é feito (mesmo o desprezo pela metafísica baseia-se numa metafísica). Corpo e mente, assim, são aspectos diferentes de uma mesma realidade subjacente. Mises não visa a solucionar essa questão metafísica, concluindo apenas que, para o homem, o monismo é indefensável. Povos primitivos atribuíam volição consciente a fenômenos naturais; os positivistas modernos cometem o erro oposto: negam a volição até mesmo nos atos humanos. Mas a diferença entre um acontecimento puramente material e uma ação é um dado inescapável da experiência. Não é possível uma ciência unificada que abranja tudo aquilo que o homem pode conhecer. As ciências naturais não têm ferramentas para lidar com idéias ou com a finalidade, e, portanto, não dão conta das ciências humanas.

 

 

A discussão econômica

 

A interferência do positivismo nas ciências humanas em geral, e na economia em particular, adquiriu muitas formas. Uma delas era a tentativa de fazer uma economia behaviorista, que se limitasse exclusivamente ao comportamento observável dos homens. Hoje, tenta-se se produzir uma “neuroeconomia”, ou seja, uma ciência econômica que prescinda das categorias mentais e lide apenas com os fenômenos neurológicos que ocorrem no cérebro. As incontáveis regressões estatísticas e econométricas que visam a substituir a teoria econômica exemplificam a mesma mentalidade. Todas até agora se mostraram infrutíferas, e não é para menos: deixam de lado o cerne epistemológico da economia, que está por trás de todas as suas descobertas.

As ciências podem ser divididas em dois grandes grupos. Há as ciências naturais, que lidam com eventos nos quais não há nenhum ato de vontade (a pedra não quer cair, e a água não quer ferver a 100 graus); e há as ciências humanas, que tratam de todos aqueles eventos nos quais a volição humana está presente. Note-se que o estudo do homem não é monopólio das ciências humanas; o funcionamento dos órgãos do nosso corpo e da estrutura do cérebro, por exemplo, são partes da biologia, que é uma ciência natural. A psicologia participa um pouco de ambas as categorias; é natural na medida em que estuda pulsões e tendências independentes da vontade, e humana na medida em que estuda e explica ações conscientes. O que separa as ciências humanas das naturais é a presença da volição, ou seja, do ato de escolha (que pressupõe uma mente consciente); por isso, Mises chama as ciências humanas de ciências da ação humana.

Dentro das ciências da ação humana, é possível traçar outra divisão. Um grupo trata dos aspectos contingentes da ação, ou seja, daquilo que poderia ser diferente do que é; são as ciências históricas. A história trata de ações particulares que ocorreram no passado; seu objeto é o mais contingente de todos. Ela não tem a pretensão de elaborar teoremas universalmente válidos. O historiador deve se utilizar de todas as outras ciências na medida em que forem relevantes, mas nenhuma delas esgota seu trabalho. Falta ainda o principal: a interpretação. Por que D. Pedro declarou a independência do Brasil? Uma lista de dados precisa e completa acerca de D. Pedro e do Brasil colonial ajudaria, mas não responderia a pergunta. É preciso que o historiador “entre” na mente de D. Pedro e interprete suas crenças e valores.

A psicologia e a sociologia também são ciências históricas, no sentido de que seu objeto de estudo é contingente. Elas não apenas descrevem e explicam eventos passados; com base neles, fazem inferências sobre o funcionamento da mente e da sociedade. Chegam a conhecimentos gerais, diferentemente da história, mas ainda assim contingentes; os homens poderiam, em princípio, pensar e querer coisas radicalmente diferentes do que em geral pensam e querem. Essas ciências dependem, portanto, da observação para testar suas hipóteses.

O outro conjunto de ciências da ação humana é a praxeologia. As ciências históricas lidam com o contingente; a praxeologia lida com o necessário. A estrutura lógica da mente humana é um dado da realidade; é o ponto de partida para pensar ou fazer qualquer coisa. Conhecendo-a, é possível deduzir conseqüências válidas para todo e qualquer ser humano, isto é, para qualquer ser com a mesma estrutura mental. As ciências praxeológicas não dependem da observação de como os homens agem, e nem do conteúdo particular de seus pensamentos e desejos. É do mero fato de os homens pensarem e agirem que elas tirarão, por meio da dedução, suas conclusões. A economia é a principal e mais desenvolvida das ciências praxeológicas.

O ponto de partida da economia é a categoria de ação, isto é, visar a um fim conscientemente. É só com base nessa categoria que é possível falar, por exemplo, de lucros e prejuízos. Esses conceitos necessariamente fazem referência à realidade mental do agente: o que ele valoriza? O que ele desejaria evitar, mas aceita sofrer na busca de seus valores? O conceito básico de bem econômico depende dos desejos do indivíduo, que são não-observáveis. Bem econômico é tudo aquilo do qual uma unidade adicional permitiria ao indivíduo satisfazer melhor seus desejos. Para um monge budista, um carro esporte não tem valor algum; não é, portanto, um bem econômico, e esse monge não pode ser considerado mais rico se vier a ganhar tal carro. A economia não tem nenhuma pretensão de dizer o que os indivíduos buscam ou deveriam buscar; ela se limita a deduzir as conseqüências lógicas de se buscar qualquer coisa. Se amanhã os homens abandonarem as cidades e virarem monges, ela continua valendo. Pois depende apenas da estrutura da mente humana. Assim, tenham os homens as crenças e valores que tiverem, ainda será verdade que, tudo o mais sendo constante, o aumento no preço de um bem leva a uma redução da sua quantidade demandada. Entenda-se o que é bem e o que é preço; daí decorre a conclusão de que, aumentando o preço, cai a demanda.

Afirmar que a economia é uma ciência dedutiva é, sem dúvida, polêmico. Não é o objetivo do livro, e nem da minha resenha, prová-lo. Quem o faz são os próprios economistas em seu trabalho (David Hume não precisou alterar de fato a quantidade de dinheiro em circulação para mostrar os efeitos de tal fenômeno; e nem David Ricardo teve de contabilizar os produtos trocados entre diversos países para demonstrar os ganhos de troca advindos das vantagens comparativas). Aqui a preocupação maior é com as conseqüências de se descartar o método da ciência econômica em prol do método empírico.

Mises era alguém apaixonado pela economia. O engajamento com que conduz as discussões revela uma preocupação visceral acerca das teses em jogo. Não é para menos! Uma aparentemente etérea discussão epistemológica traduz-se, em última análise, em conclusões práticas sobre a organização da sociedade.

Ao eliminar a mente e a ação humana de sua concepção do universo, o positivismo transforma o homem em mais uma partícula material, mais um aglomerado de átomos a ser moldado, ou então numa lista de preços e valores agregados sem qualquer relação com as pessoas reais que compõem a sociedade. Isso fortalece a pretensão de redesenhar a estrutura da produção de acordo com planos “racionais”, mais eficientes que o caos anárquico do mercado. É verdade que tal pretensão planificadora arrefeceu desde o fim da URSS. Contudo, a interpretação materialista de recentes descobertas da neurologia e da genética vem, aos poucos, dando suporte a novas formas de controle social, com pouco ou nenhum respeito à autonomia humana, às quais as críticas de Mises são igualmente válidas. Além disso, o culto à ciência introduziu nas mentes a noção errônea de que a causa da pobreza de uma nação é a falta de conhecimento científico ou know-how tecnológico, esquecendo-se do sistema político e econômico que permite tanto o uso eficaz das inovações tecnológicas para a melhora da vida quanto a acumulação dos capitais físico e humano necessários para sua implantação prática: o capitalismo.

Capitalismo não é favorecer grandes bancos e empresários; não é a simbiose maligna entre governo e corporações que vemos hoje em dia. Isto é intervencionismo. Capitalismo é o sistema de propriedade privada e liberdade. Grandes empresas podem sim surgir, mas duram apenas enquanto satisfizerem os desejos dos consumidores. No mercado, todos são produtores a serviço de consumidores e consumidores servidos por produtores. Quer ser servido? Então trate de servir aos outros. Assim, harmonizam-se o desejo individual e o coletivo. “Na cooperação social, todo mundo, ao servir seus próprios interesses, serve os interesses de seus concidadãos” (pág. 79).

É apenas nesse contexto que ocorre a acumulação de capital, ou seja, a poupança para uso futuro, que financia os novos projetos e iniciativas dos empreendedores que, utilizando-se da tecnologia disponível e em busca do lucro próprio, atendem aos desejos da população. Quem determina para onde vai o capital são os próprios consumidores. Ao comprar ou se abster de comprar, eles “determinam, em última instância, a renda e a riqueza de todos. Elas [as massas de consumidores] concedem o controle dos bens de capital àqueles que sabem como utilizá-los para sua, i.e. das massas, melhor satisfação” (pág. 102).

A ciência econômica revela a precariedade da existência humana, e o sistema de mercado é o único capaz de mobilizar os recursos escassos disponíveis para melhor lidar com ela. As alternativas ao mercado apenas acentuam os problemas que pretendem sanar. Essa dura realidade bate de frente com os sonhos utópicos de muitos intelectuais. É nesse desejo de validar planos de engenharia social, e, portanto, negar a ciência econômica, que Mises enxerga a motivação do positivismo. Aqui, devo discordar em parte. Apaixonado pela economia e pela liberdade humana, ele tendia a enxergar em todos os erros que combatia o desejo de destruir o capitalismo, desejo cuja raiz é a inveja; há alguma verdade aí, mas outras motivações mais profundas também estão em jogo. A negação da metafísica e da espiritualidade, ou então sua delegação para o campo da pura subjetividade, alimentam muito do positivismo cientificista de nossos tempos. O que alimenta esse ódio ao espírito, contudo, é tema para outros artigos.

 

 

O legado misesiano

 

Tempos de crise aumentam o interesse pela economia. Todos vão atrás das causas e das soluções. Mises tem muito a dizer a eles. É uma oportunidade de corrigir certos erros prevalentes na economia contemporânea, e recolocar o mundo no caminho do livre mercado e da prosperidade. Quem sabe, ainda, essa correção traga consigo uma mudança na forma de encarar as ciências, de modo que a razão recupere e restabeleça todos os métodos a seu dispor para a busca da verdade.

Mises queria, como foi dito, abrir espaço para a ciência econômica na epistemologia vigente. Ao fazê-lo, abriu também o caminho para todas as outras áreas do saber que o positivismo eliminara. Ainda que fossem distantes de seus interesses, via todas as aspirações da mente humana com bons olhos: “Metafísica e teologia não são, como querem os positivistas, produtos de uma atividade indigna ao homo sapiens, resquícios da era primitiva da humanidade que pessoas civilizadas devem descartar. Elas são uma manifestação do desejo insaciável do homem por conhecimento. Possa ou não essa sede por onisciência ser algum dia saciada, o homem não deixará de persegui-la apaixonadamente” (pág. 108). Ler Mises não mata de vez essa sede; ele não esgota o que há para ser dito em economia. Mas certamente nos dá combustível para levar essa busca apaixonada adiante, enquanto seu exemplo de vida e de postura intelectual nos dá um modelo salutar para torná-la mais eficaz.

 

Joel Pinheiro da Fonseca é economista pelo Ibmec-SP e bacharel em filosofia pela FFLCH-USP.