Aos sócios da Nova Arcádia

Bocage

Vós, ó Franças, Semedos, Quintanilhas,

Macedos e outras pestes condenadas;

vós, de cujas buzinas penduradas

tremem de Jove as melindrosas filhas;

vós, néscios, que mamais das vis quadrilhas

do baixo vulgo insossas gargalhadas,

por versos maus, por trovas aleijadas,

de que engenhais as vossas maravilhas,

deixai Elmano, que, inocente e honrado,

nunca de vós se lembra, meditando

em coisas sérias, de mais alto estado.

E se quereis, os olhos alongando,

ei-lo! Vede-o no Pindo recostado,

de perna erguida sobre vós mijando.

Não parece injusto dizer que nossa poesia de língua portuguesa é geralmente muito séria. Talvez isto venha da posição periférica de Portugal e do Brasil, países em que os escritores freqüentemente estão preocupados demais em mostrar-se fiéis a um modelo estrangeiro de última geração para “descer” ao imediatismo do cotidiano e rir de alguma coisa. Tanto é que os manuais nos ensinam que o humor acabou virando “marca” de dois movimentos: o modernismo de 1922 e a poesia marginal dos anos 1970, com seu “poema-piada”. Mas em ambos o humor é uma prescrição, um conteúdo programático ou, como já dizem hoje em dia, uma agenda, e o fato de o humor ter vindo como prescrição demonstra uma reação contra a sisudez d’antanho. Provavelmente a percepção (justa) de que, como disse Afrânio Coutinho, “no Brasil, a vida literária é mais importante do que a literatura”, também contribui para o cuidado com a imagem – que, no Brasil, é importante a ponto de gerar uma aberração jurídica chamada “direito de imagem”, como se alguém pudesse ser dono das opiniões que os outros têm dele.

Talvez por tudo isso evitemos o humor na poesia, e os poetas fiquem como as feministas da piada. Não conhece? Bem, você conhece piadas do tipo “Quantos BLÁ BLÁ BLÁ são necessários para trocar uma lâmpada”. A minha favorita é: “Quantos libertários são necessários para trocar uma lâmpada? Nenhum. As forças do mercado vão trocá-la”. Pois bem. Eis a versão feminista, que poderia ser com os nossos poetas: “Quantas feministas são necessárias para trocar uma lâmpada?” Resposta: “Isso não tem graça”.

Mas nossos poetas, quando querem, têm muita graça, e graça de diversos tipos. O primeiro tipo de humor que me vem à mente, talvez por uma perversidade pessoal, é o escárnio contra outras pessoas. E como o escárnio se junta à ordem cronólogica que estrutura a Anatomia do Poema, é impossível não pensar em Bocage. O leitor mais sabido já percebeu que não, não selecionei um dos poemas pornográficos – poemas que poderiam ser lidos por adolescentes (sobretudo meninos) e que, se certamente não contribuiriam em nada para sua edificação, provavelmente estimulariam mais o gosto pela poesia do que os piores poemas de Carlos Drummond de Andrade, que as escolas costumam selecionar. Entre bobagens do ex-grande poeta como “Stop. / A vida parou. / Ou foi o automóvel?” e bobagens bocagianas como “Não lamentes, ó Nise, o teu estado…” (use o Google) já dá para ouvir de longe o ritmo da segunda, como o ritmo da música de uma festa longínqua, enquanto a primeira evoca o branco e preto de uma prova de vestibular.

Eu ia falar em suingue, mas tenho medo de soar como um jornalista. Então fiquemos no ritmo. O mesmo ritmo que está no poema que dedicou aos sócios da Academia Nova Arcádia, que não era exatamente uma “academia”, mas um clube que se reunia regularmente para tomar chá, comer bolinhos e ouvir as modinhas do Pe. Domingos Caldas Barbosa (brasileiro a quem Bocage dedicou tratamento racistíssimo em outro poema contra a Nova Arcádia, “Preside o neto da rainha Ginga”). Em suma, uma reunião de pessoas maravilhosas e esclarecidas que se consideravam os donos da poesia em sua época. E esse é o momento em que eu vou deixar o leitor meditar sobre a “atualidade” do poema, mas não vou dizer isso porque não sou jornalista. Por isso apenas observo: Pindo são montanhas que há na Grécia, que nem estão perto da Arcádia, mas ficar reparando nisso é tornar-se digno da mijada. E Elmano, Elmano Sadino, era o codinome árcade de Bocage.

2 comentários em “Aos sócios da Nova Arcádia

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