Fernando Pessoa: o testemunho de um fingidor

por Ivo Barroso

Quando leu a autobiografia de Aleister Crowley – “místico” inglês já então mundialmente conhecido como astrólogo, cabalista, mágico etc. –, Fernando Pessoa, que também era dado a estudos esotéricos, exultou. Encontrara um erro no mapa astrológico que Crowley (pronuncia-se crôuli) estampara no livro e, corrigindo-lhe a hora de nascimento para 23h16, resolveu escrever-lhe. Crowley reconheceu o erro numa carta dirigida a Pessoa (fac-símile do original anexo), com isto estabelecendo uma correspondência entre ambos. Pessoa aproveitou para enviar-lhe os seus English Poems, com vistas à publicação na Inglaterra. Crowley retrucou oferecendo-lhe o poema “Io, Pan”, que o poeta português viria, mais tarde, a traduzir (vide anexo) – a tradução hoje está integrada à sua obra completa –, e já mencionando a necessidade de um encontro entre eles.

O poema era assinado por Mestre Therion, pseudônimo de Crowley, que também se autointitulava Besta 666. Aliás, seu nome completo era originalmente Edward Alexander Crowley, mas ele tinha trocado o Alexander pela forma escocesa Aleister, que lhe parecia mais sonora e formava um verso latino de 1 dáctilo e 1 espondeu. Como se vê, os dois tinham muitos traços em comum.

A história dessas autodenominações é interessante: Crowley, nascido em 1875 em Leamington Spa, na Inglaterra, estudou no Trinity College da Universidade de Cambridge, mas não chegou a se formar. Interessou-se antes pelos estudos ocultísticos e, pouco depois, tornou-se membro da Ordem Hermética da Aurora Dourada (Golden Dawn), sociedade secreta que praticava a magia, a cabala, a alquimia, o tarô, a astrologia e outras atividades esotéricas. Em 1903, aos 28 anos, casa-se com Rose Kelly e, no Egito, onde o casal passava a lua-de-mel, a esposa, que até então não demonstrara qualquer interesse pelos assuntos mediúnicos, começa a entrar em transes sucessivos, insistindo em afirmar ao marido que o deus Hórus queria estabelecer contato com ele. Crowley – segundo sua própria narrativa –, para testá-la, leva-a ao Museu Bulak, pedindo a ela que lhe apontasse a imagem do deus. Rose Kelly passa diante de várias imagens conhecidas daquela divindade e vai parar diante de uma estela funerária de madeira pintada, da 26ª dinastia, que representava Hórus recebendo o sacrifício do morto ali mumificado, um sacerdote de nome Ankh-f-n-khonsu. Chamou a atenção de Crowley o fato de aquela peça do museu estar catalogada sob o número 666, com o qual se identificava desde a meninice. Passando a ouvir os conselhos de Rose, encerra-se num quarto e escreve o “Livro da Lei” (Liber Al vel Legis or The Book of the Law), que lhe teria sido ditado por uma sombra (Aiwaz).

A partir daí, passa a desenvolver um sistema pessoal de filosofia, na tentativa de conjugar a magia negra com a magia rubra (ou sensual). Inspirando-se na gnose, na tantra e no sufismo, elabora uma doutrina refinada, mas ao mesmo tempo pervertida e provocante. Crowley achava que todos os desejos do homem eram lei, e se definia como “um santo de Satã”, ou antes “a grande Besta Selvagem”, dizendo que a purificação (ou ascese) só podia ser obtida através da prática do pecado e de sua posterior abjuração. Para tanto, promovia rituais orgiásticos, inspirados em cerimônias demoníacas, a fim de praticar seus ensinamentos, e funda uma ordem oculta, a Argenteum Astrum (“Astro Prateado”), na “abadia” de Thelema, na Sicília, de onde acaba sendo expulso em 1923, em decorrência dos excessos “holóficos” a que chegara. Todavia, não deixou de escrever e em 1929 publicou uma própria teoria e prática da magia, verdadeira suma de sua doutrina esotérica, que lhe trouxe então fama urbi et orbi.

Foi esse amor de pessoa que desembarcou nas docas de Lisboa no dia 2 de setembro de 1930, a fim de conhecer em pessoa o próprio que o esperava no cais e vinha acompanhado do jornalista português Augusto Ferreira Gomes, também interessado em assuntos ocultísticos. O inglês era alto, corpulento, sangüíneo, de rosto arredondado, trajava uma capa preta e, com olhar indagativo e irônico, foi logo perguntando: “Por que diabos você me arranjou este nevoeiro?” O navio “Alcântara”, em que viajara, havia atrasado a partida de Vigo, na Espanha, por cerca de 24 horas, devido a um espesso nevoeiro que se abatera sobre o litoral português. Segundo João Gaspar Simões, o primeiro biógrafo a abordar as relações dos dois “místicos”, Crowley era “um estranho homem, verdadeiro Cagliostro dos tempos modernos, em cuja complexidade e desenvoltura se acusam os traços típicos desse misto de charlatão e de inspirado que o nosso tímido mistificador debalde procurou ser”. Chegava acompanhado não da esposa, mas de uma jovem alemã, Anni L. Jaeger, e ambos se instalaram no Hotel Europa, no alto do Chiado, mas logo se transferiram para Sintra e Cascais. A permanência do casal estrangeiro foi de cerca de um mês, porém marcou profundamente a biografia do poeta, já a essa época bastante conhecido nos meios intelectuais portugueses..

No final de setembro, chega às mãos da polícia portuguesa (talvez por intermédio do jornalista Ferreira Gomes) uma cigarreira e um misterioso bilhete encontrados no local denominado Boca do Inferno, uma escarpa que termina em gruta em pleno mar, na região balneária de Cascais. O bilhete dava a entender que o enigmático visitante inglês se havia suicidado, escolhendo um local que se tornara emblemático para essa espécie de desporto:

L.G.P.
Ano 14, Sol em Balança
Não posso viver sem ti.
A outra Boca do Inferno
Apanhar-me-á – não será
Tão quente como a tua.
Hisos.
Tu Li Yu

Chamado a depor na qualidade de amigo da suposta vítima, Fernando Pessoa, conforme se pode ler no Notícias ilustrado de 5 de outubro, contribuiu largamente para a intensificação do mistério: “Em 18 de setembro – depõe – recebi uma carta de Crowley, escrita do Hotel Miramar, no Estoril. Dizia-me que miss Jaeger tivera, na noite de 16, um violentíssimo ataque histérico, que havia sobressaltado o Hotel Paris inteiro: que em virtude disso tinha vindo para o Hotel Miramar, mas que, na manhã de 17, miss Jaeger havia desaparecido, deixando apenas duas linhas a lápis, dizendo que voltaria em breve. No mesmo dia 18, Crowley apareceu em Lisboa, visivelmente preocupado com o desaparecimento de miss Jaeger. Disse-me que o que sobretudo o preocupava era a hereditariedade carregadíssima dela, a sua tendência proclamada para o suicídio e a convicção em que estava de estar sendo perseguida por um mago negro chamado York. Achava, pois, urgentíssimo descobrir seu paradeiro”.

Tudo fazia crer que Crowley se suicidara por ter sido abandonado por miss (ou Fraulein?) Jaeger. Não só a polícia portuguesa envolveu-se na busca de ambos, pois consta que vieram de Londres dois agentes do Intelligence Service, talvez por Crowley ter feito parte dessa organização durante a Primeira Guerra Mundial. Após intensa especulação jornalística em Lisboa, saborosamente transcrita na imprensa inglesa, descobre-se finalmente que a jovem deixara o país no dia 20 daquele mês a bordo do navio Werra, com destino à Alemanha, e que era americana e não alemã, tendo até pedido auxílio monetário ao consulado dos Estados Unidos. Em posteriores declarações à imprensa, Pessoa insinua que Crowley na verdade se suicidara, mas seu fantasma continuava rondando pelas ruas de Lisboa: “Despediu-se de mim às 10h30 do dia 23, à porta do Café Arcada, no Terreiro do Paço – diz ele em outra entrevista. Nunca mais lhe falei. Quero crer que ainda o vi. No dia 24, de manhã, vi Crowley ou o seu fantasma dobrar a esquina do Café La Gare para a Rua 1° de Dezembro. Nesse mesmo dia, ao atravessar a Praça Duque da Terceira, vi Crowley ou o seu fantasma, entrar com outro indivíduo na Tabacaria. Inglesa”.

Carta de Aleister Crowley a Fernando Pessoa. Fonte: Isabel Murteira França, Fernando Pessoa na intimidade. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987. Reproduzida em: http://www.insite.com.br/art/pessoa/misc/crowley.html

A razão (?) que Pessoa alegava para acreditar no suicídio era a data exata da mensagem cabalística: “Ora – enfatizava – o que nenhum astrólogo, por motivos que não é lícito revelar, ousaria fazer é falsear uma carta escrita em sinais de astros”. E explicava que a assinatura “Tu Li Yu” era o nome de um sábio chinês que viveu há uns três mil anos antes de Cristo “e de quem Crowley dizia ser a reencarnação”. Falando ao jornal lisboeta O Girassol, dias depois, Pessoa, além de sustentar a sua história, acrescentava: que, em Londres, o médium Dr. A.V. Peters entrara em transe e revelara “que o mágico desaparecido fora assassinado nos arredores de Lisboa, em rochas ao pé da água”. Mas a farsa – com ou sem a conivência de Pessoa, que certamente, pelo seu gosto acentuado pelo fingir, poderia a ela se prestar perfeitamente – foi, pouco depois, desfeita. A polícia portuguesa descobriu que “na fronteira de Vilar Formoso fora registrada a passagem do famoso mago a caminho da França, terminadas suas férias em Portugal”.

Qual teria sido a finalidade da mistificação? Acrescentar “mistério” à figura do mago? Ou Crowley “armou” o “suicídio” simplesmente para poder sair à socapa sem pagar o hotel? Para os que defendem a lisura de Pessoa neste caso, há a hipótese de ter o jornalista Augusto Ferreira Gomes participado do golpe sensacionalista. Quanto a Pessoa, fingidamente ou não, nunca deixou de sustentar a “morte e ressurreição” de Crowley, tanto assim que, no ano seguinte, escreve a João Gaspar Simões, que dirigia a revista Presença: “O Crowley, que depois de se suicidar passou a residir na Alemanha, escreveu-me há dias e perguntou-me pela tradução – ou antes, pela publicação da tradução… veja lá agora; não me deixe mal com o Mago!” A tradução do poema foi finalmente publicada na mesma revista Presença, editada em Coimbra e dirigida por João Gaspar Simões, José Régio e outros, em seu nº 33, de julho/outubro de 1933.

Aleister Crowley viveu mais dezesseis anos, falecendo depois da Segunda Guerra Mundial; segundo seus biógrafos, drogava-se com freqüência e abusava do hipnotismo para manter uma pequena mas fiel clientela de fanáticos. Escreveu cerca de oitenta livros, inclusive de poesia esotérica, e é personagem fartamente mencionada no romance O Pêndulo de Foucault, de Umberto Eco. Além dessa referência literária mais recente, e ainda do tempo em que Crowley estava vivo, o escritor britânico Somerset Maugham escreveu em 1907 uma novela intitulada The Magician (“O Mágico”), em que traça um retrato de Crowley, compatriota que conhecera em Paris. Segundo o romancista, “Crowley fazia e publicava versos em edições luxuosas que ele próprio custeava, e andava metido com o satanismo, a magia e o ocultismo, o que era então uma espécie de moda em Paris, nascida, sem dúvida, do interesse que ainda despertava o livro de Huysmans, Là-Bas”. Embora Maugham haja declarado que “Crowley tenha servido de modelo para Oliver Haddo [o personagem principal de O Mágico], este não é em absoluto um retrato dele. Crowley, no entanto, reconheceu-se na criatura de minha invenção – pois não era outra coisa – e escreveu uma crítica da novela que ocupou uma página inteira da revista Vanity Fair, assinando-se Oliver Haddo”. O próprio Pessoa, inspirando-se no acontecido, escreveu um conto policial em inglês, intitulado Mouth of Hell, que trata do assassínio de um taxista, na Quinta da Terrugem, também envolto em circunstâncias misteriosas.

O hino a Pan

Numa carta endereçada a João Gaspar Simões com data de 4.1.1933, o poeta português assim se refere ao poema: “O Mestre Therion não é heterônimo meu: é simplesmente o ‘nome supremo’ do poeta, mago, astrólogo e ‘mistério’ inglês que em vulgar se chama (ou chamava) Aleister Crowley, que também se designava por ‘A Besta 666’. O ‘Hino a Pan’ é uma espécie de prefácio ao trabalho intitulado Magick (Magia), que foi publicado em Paris em quatro tomos. Crowley mandou vir de Inglaterra um tratado desses para mim: recebi-o, por sinal, já depois do Crowley ter desaparecido de Lisboa em circunstâncias misteriosas. Lembrei-me um dia de traduzir o ‘Hino a Pan’, o que fiz conforme meu critério de traduzir verso, em absoluta conformidade rítmica com o original. Mandei a. v. o poema para, como lhe disse, v. ver o que é propriamente um ‘poema mágico’, em comparação com um simples ‘poema a respeito de magia’ como é o meu ‘Último Sortilégio’”.

Hymn to Pan
Aleister Crowley, 1929

Thrill with the lissome lust of the light,
O man! My man!
Come careering out of the night
Of Pan! Io Pan!
Io Pan! Io Pan! Come over the sea
From Sicily and from Arcady!
Roaming as Bacchus, with fauns and pards
And nymphs and satyrs for thy guards,
On a milk-white ass, come over the sea
To me, to me,
Come with Apollo in bridal dress
(Shepherdess and pythoness)
Come with Artemis, silken shod,
And wash thy white thigh, beautiful God,
In the moon of the woods, on the marble mount,
The dimpled dawn of the amber fount!
Dip the purple of passionate prayer
In the crimson shrine, the scarlet snare,
The soul that startles in eyes of blue
To watch thy wantonness weeping through
The tangled grove, the gnarled bole
Of the living tree that is spirit and soul
And body and brain – come over the sea,
(Io Pan! Io Pan!)
Devil or God, to me, to me,
My man! My man!
Come with trumpets sounding shrill
Over the hill!
Come with drums low muttering
From the spring!
Come with flute and come with pipe!
Am I not ripe?
I, who wait and writhe and wrestle
With air that hath no boughs to nestle
My body, weary of empty clasp,
Strong as a lion and sharp as an asp –
Come, O come!
I am numb
With the lonely lust of devildom.
Thrust the sword through the galling fetter,
All-devourer, all begetter;
Give me the sign of the Open Eye,
And the token erect of thorny thigh,
And the word of madness and mystery,
O Pan! Io Pan!
Io Pan! Io Pan Pan! Pan Pan! Pan,
I am a man:
Do as thou wilt, as a great god can,
O Pan! Io Pan!
Io Pan! Io Pan Pan! I am awake
In the grip of the snake.
The eagle slashes with beak and claw;
The Gods withdraw;
The great beasts come, Io Pan! I am borne
To death on the horn
Of the Unicorn.
I am Pan! Io Pan! Io Pan Pan! Pan!
I am thy mate, I am thy man,
Goat of thy flock, I am gold, I am god,
Flesh to thy bone, flower to thy rod.
With hoofs of steel I race on the rocks
Through solstice stubborn to equinox.
I rave; and I rape and I rip and I rend
Everlasting, world without end,
Mannikin, maiden, maenad, man,
In the might of Pan.
Io Pan! Io Pan Pan! Pan! Io Pan!

Vibra do cio sutil da luz,
Meu homem e afã
Vem turbulento da noite a flux
De pan! Iô Pan!
Iô Pan! Iô Pan! Do mar de além
Vem da Sicília e da Arcádia vem!
Vem como Baco, com fauno e lera
E ninfa e sátiro à tua beira,
Num asno lácteo do mar sem fim
¬A mim, a mim!
Vem com Apolo, nupcial na brisa
(pegureira e pitonisa),
Vem com Artêmis, leve e estranha,
E a coxa branca, Deus lindo, banha
Ao luar do bosque, em marmóreo monte,
Manhã malhada da âmbrea fonte!
Mergulha o roxo da prece ardente
No ádito rubro, no laço quente,
A alma que aterra em olhos de azul
A ver errar teu capricho exul
No bosque enredo, nos nós que espalma
A árvore viva que é espírito e alma
E corpo e mente – do mar sem fim
(Iô Pan! Iô Pan!),
Diabo ou deus, vem a mim, vem a mim!
Meu homem e afã!
Vem com trombeta estridente e fina
Pela colina!
Vem com tambor a rufar à beira
Da primavera!
Com frautas e avenas vem sem conto!
Não estou eu pronto?
Eu, que espero e estorço e luto
Com ar sem ramos onde não nutro
Meu corpo, lasso do abraço em vão,
Áspide aguda, forte leão –
Vem, está vazia
Minha carne, fria
Do cio sozinho da demonia.
À espada corta o que ata e dói,
Ó Tudo-Cria, Tudo-Destrói!
Dá-me o sinal do Olho Aberto,
E da coxa áspera o toque ereto,
E a palavra do Louco e do Secreto,
Ó Pã! Iô Pã!
Iô Pã! Iô Pã Pã! Pã Pã! Pã,
Sou homem e afã:
Faze o teu querer sem vontade vã,
Deus Grande! Meu Pã!
Iô Pã! Iô Pã! Despertei na dobra
Do aperto da cobra.
A águia rasga com garra e fauce;
Os deuses vão-se;
As feras vêm. Iô Pã! A matado,
Vou no corno levado
Do Unicornado.
Sou Pã! Iô Pã! Iô Pã Pã! Pã!
Sou teu, teu homem e teu afã,
Cabra das tuas, ouro, deus, clara
Carne em teu osso, flor na tua vara,
Com patas de aço os rochedos roço
De solstício severo a equinócio.
E raivo, e rasgo, e roussando fremo,
Sempiterno, mundo sem termo,
Homem, homúnculo, mênade, afã,
Na força de Pã.
Iô Pã! Iô Pã Pã! Pã! Iô Pã

IVO BARROSO é poeta, ensaísta e tradutor. Resenha para O Globo, O Estado de São Paulo e A Folha de São Paulo. Publicou recentemente A Caça Virtual e Outros Poemas (2001) e a obra completa de Rimbaud (tradução).