Mil anos atrás desabou na Terra o planeta de Rinceau

por Alexandre Soares Silva

 

I. Prólogo (com galinhas)

 

Mil anos atrás desabou na Terra o planeta de Rinceau, feito de vitrais, se espatifando durante a noite na cidade de Lyon. As pessoas acordaram com o barulho de um planeta inteiro de vidro caindo nos seus telhados e, saindo para a rua, descobriram que pisavam em milhares de cacos de vidro, que só quando o sol nasceu foi possível ver que eram de cores variadas: algumas ruas estando cobertas de cacos vermelhos, outras de amarelos,  verdes, azuis, e grisaille. Vacas e cabras, e alguns bêbados, e coitado um mendigo com bócio, que dormiram aquela noite ao relento, amanheceram mortos com pedaços de vidro enfiados nos pescoços, nas costas, no mencionado bócio, nos couros cabeludos, nas nucas, debaixo das pálpebras. O maior pedaço encontrado tinha o tamanho de uma bola de basquete e representava o focinho de um cavalo, marrom contra folhagem verde clara. Estava fincado no peito de um ferreiro que havia, infelizmente, dormido debaixo do telhado inacabado da sua casa na Croix Rousse. E se estamos relembrando compungidos as vítimas históricas dessa tragédia, me deixe mencionar as doze galinhas que morreram de susto com o barulho todo, seus coraçõezinhos explodindo quietamente dois ou três segundos depois da grande explosão de vidro: Paulina, Frangina, Paola, Piolina,  Piccolina, Fantine, Martine, Berthe La Poule, Brigida I e Brigida II, a pequena Tommasina e a inesquecível Lola Pamplemousse, com seu famoso requebradinho e seu cocoricó sensual de cigana.

 

 

II. Geografia

 

A tradição, examinando os cacos nos séculos seguintes, reconstruiu mentalmente o planeta, formando um modelo muito parecido com o da arqueologia moderna. A melhor maneira de conceber Rinceau é se imaginar flutuando no centro dele. O planeta é oco, feito de vidro e ferro. Pelo lado de fora só se vê que está coberto de nuvens; quando essas nuvens se abrem, a aparência é a do lado de fora de um vitral. A superfície do planeta tem só alguns milímetros de espessura, e embaixo disso não há nada além de ar.  Toda a vida no planeta acontece colada do lado de dentro da casca. Ou não, nem colada – na própria casca, dentro da casca.

Imagine que você está dentro desse grande vitral esférico, suas perninhas sacudindo de pânico ou até mesmo de faniquito. Alguma luz passa pelas nuvens e vidro, de modo que você vê bem toda a superfície côncava do planeta. Essa esfera é cortada por linhas horizontais pretas que formam os limites de cento e onze faixas de mais ou menos um metro de altura cada. Sua primeira impressão é de que essas faixas são predominantemente amarelas, com áreas grandes de vermelho e azul aqui e ali.

É nessas faixas que vivem quatro tipos de criatura: reis, rainhas, monges e freiras. Os reis se vestem de vermelho, e têm barbas, espadas, e coroas amarelas. Alguns estão a cavalo, outros num trono, outros dormindo, ou comendo, ou caçando. Os monges usam hábitos marrons e carregam livros: uns rezam ajoelhados, outros dormem, outros bebem. As rainhas se vestem de azul, podem ser loiras ou morenas ou ruivas, parecem distintamente mais jovens do que todo mundo, e lêem ou conversam ou tocam música ou praticam falcoaria. As freiras usam hábitos brancos e pretos, e rezam, ou choram olhando para crucifixos, ou fazem tortas que acredito de limão.

Os reis estão do mesmo lado que as freiras; digamos, todo o hemisfério à sua frente; os monges estão do mesmo lado que as rainhas; digamos, todo o hemisfério às suas costas. Cada faixa horizontal é um continente separado de onde não se pode passar para o de cima ou o de baixo, com sua própria grama verde clara, árvores verdes claras, e céu amarelo sem nuvens. Nessas faixas as criaturas seguem as regras da perspectiva: se uma  aparece de pé sobre a linha preta de baixo, e a cabeça, ou a coroa, atinge a linha preta de cima, é porque ela está perto do hipotético observador do vitral, você; mais perto do que isso ela não chega; e se aparece menorzinha, está longe, caçando a cavalo, com bestas, um porco selvagem, ou dormindo debaixo de uma árvore. Elas todas ignoram completamente as vidas que acontecem nas faixas superiores ou inferiores, com seus próprios céus e montanhas.

Além desses quatro tipos de criaturas há cavalos brancos e marrons, porcos do mato, cachorros, javalis e alguns falcões. O contorno de cada objeto ou pessoa é uma linha preta de ferro chamada de ferramenta. Os pólos de cima e de baixo são grandes rosáceas amarelas e vermelhas, onde ninguém vive.

Quando você, observador imaginário, olha para o interior do planeta, vê todas essas centenas de figuras que estão paradas, exatamente como num vitral. Umas estão saltando um riacho a cavalo, outras erguendo uma espada ameaçadoramente – mas você vê todas paradas. Para elas mesmas, elas estão se movendo. Ao longo dos milhares de anos de existência desse planeta, essas criaturas estão vivendo um único dia perfeito e amarelo, e se você tiver muita paciência pode vê-los se movendo um centímetro a cada cinco ou seis anos.

Astrônomos chegaram à conclusão de que o planeta girava em torno do sol, mostrando sempre o mesmo lado para a luz, de modo que se você está flutuando no centro, você vê sempre um hemisfério – o dos reis e freiras – iluminado. Monges e rainhas só não vivem num mundo completamente apagado porque as nuvens do lado de fora do seu hemisfério refletem um pouco de luz; mas mesmo assim têm que ler à luz de velas.

Mais ou menos uma vez a cada sete dias, segundo a tradição, ou a cada dezoito, segundo os astrônomos modernos, as nuvens se abriam um pouco em algum ponto do hemisfério iluminado, e continuavam abertas durante poucos segundos. Assim, durante uns segundos um raio de luz solar atravessa o hemisfério iluminado em um ponto específico, que varia de vez para vez, determinado pela localização das nuvens, e vai iluminar o ponto oposto no outro hemisfério. Imagine que você está numa catedral da Europa vendo um raio de luz atravessar um vitral e ir cair vermelho ou amarelo no chão de pedra à sua frente, ou numa coluna. Um raio de luz amarelo ou vermelho ou azul, desse tipo, cai no hemisfério oposto do planeta.

 

 

III. Reprodução

 

O milagre é que embora essas criaturas vivam aprisionadas no mundo bidimensional lá delas, ignorando a própria existência de faixas acima e abaixo, ou mesmo que estejam em faixas elas mesmas, elas podem ver as outras criaturas vivendo no hemisfério oposto. Agora o que acontece é o seguinte. As nuvens se abrem num ponto específico do hemisfério iluminado. Durante uns segundos, no máximo um minuto, você, do centro do planeta, vê um rei e uma freira, digamos, se iluminando intensamente. (Para os efeitos do que vou dizer, esquece a freira.) O roupa do rei se torna fantasticamente vermelha, e a sua coroa e a empunhadura da sua espada se tornam fantasticamente amarelas. Enquanto você olha para o rei ele parece se tornar cada vez mais vermelho e amarelo. Saindo dele, um raio vermelho e amarelo atravessa o interior do planeta e vai cair, algumas faixas abaixo, numa rainha e num monge. (Mais uma vez, para os efeitos do que vou dizer, esquece o monge.) A rainha recebe em seu corpo o raio vermelho e amarelo, e deixa de ser azul. Rei e rainha estão unidos num facho de luz que dura uns segundos, no máximo um minuto. É assim que eles reproduzem. Só os reis inseminam, e só as rainhas engravidam; ou melhor dizendo só através dos reis as rainhas são inseminadas por algo que está atrás de todos os reis. Alguns anos depois aparece em algum ponto do vitral, já vestido, adulto e de pé, um novo rei, rainha, monge ou freira, substituindo alguém que morreu.

As freiras não sendo, dã, homens, não podem inseminar ninguém, e os raios que as atravessam são estéreis; os monges estando do lado escuro, os raios que os atravessam não os inseminam, e lhes saem pelas costas, muito enfraquecidos, para fora do planeta, nunca caindo em nenhuma mulher e nunca inseminando ninguém. De fato é por isso que reis, rainhas, monges e freiras escolheram os lados em que estão no planeta. Presume-se que monges e freiras quiseram ficar de fora do ciclo reprodutivo. Ou, se reis e rainhas escolheram essa posição à revelia de monges e freiras, ninguém sabe, ou eu não sei (o que é mais ou menos a mesma coisa).

Para saber como reis e rainhas se sentem durante esse processo, basta ver a figura de ambos atravessados por um único raio de sol. O rei subitamente iluminado não escolhe, mas vê, a rainha que está impregnando do outro lado do mundo. A rainha vê um rei sendo iluminado alguns segundos antes de perceber que está sendo iluminada também, e se deseja ser a iluminada, e se tem medo de que o raio de luz atinja outra, e ainda se as outras sentem ciúmes durante todo o processo, é algo que só se pode imaginar. Já como os monges, mas não as freiras, se sentem durante o mesmo processo, é algo que se pode deduzir a partir da história do monge Tabanigno.

IV. História de Tabanigno e Prezzemolina

 

A tradição coloca Tabanigno três ou quatro faixas abaixo da faixa equatorial, carregando um feixe de lenha nas proximidades de uma mesa ao ar livre onde está sentada a rainha Prezzemolina. Ela olha para um prato sem comer e segura um copo de vinho com a mão direita pousada na toalha. Outras rainhas na mesa, à esquerda da rainha Prezzemolina, comem ou tocam instrumentos, mas o que sugere uma certa intimidade do monge com a rainha é o fato de que o lugar imediatamente à esquerda de Prezzemolina está vago, fazendo com que ela pareça isolada da conversa geral de rainhas. Tabanigno, ao fundo, está quase esbarrando no ombro dela. 

Durante séculos os dois viveram nesse isolamento. Tabanigno e Prezzemolina têm os dois um sorriso pouco disfarçado de desprezo porque gostam de correr os olhos pelas faixas do hemisfério iluminado, ridicularizando todos os reis e freiras que conseguem enxergar. O isolamento e a maledicência criaram um laço entre eles e os dois vivem felizes assim no seu canto de vidro, Tabanigno talvez um pouco mais do que Prezzemolina. Quando as nuvens se abrem do lado oposto e um rei se ilumina, os dois se calam com medo que ela seja a impregnada, mas isso nunca aconteceu. Passado o susto, Tabanigno zomba da cara do rei, mencionando algum detalhe ridículo da sua posição ou cara ou reputação – reputações correm circularmente pelo vidro todo sem parar -, e Prezzemolina faz a mesma coisa com alguns segundos de atraso, e um pouco menos de convicção.

Todas as rainhas na mesa de Prezzemolina já foram impregnadas. Mais cedo ou mais tarde ela vai ser também, mas pensar nisso faz com que Tabanigno sofra. Passam alguns sustos de vez em quando. Um dia, as nuvens se abrem e o sol atravessa um rei de aspecto especialmente metido a besta, de pé com as mãos na cintura e pernas bem abertas, e barba ruiva comprida e desgrenhada. Os dois costumam rir desse rei, que parece bárbaro e burraldino, mas agora sua roupa, e especialmente sua barba, lança jorros de vermelhidão na mesa de Prezzemolina, manchando pratos e toalha. O amarelo da bainha da espada do rei aparece nitidamente na mão direita da rainha, que ainda segura o copo de vinho. Ela pára de respirar e olha para a mão, para a quente e obscena e alegre mancha amarela, e lamentavelmente (quer dizer, lamentavelmente para Tabanigno) sorri um pouco, abrindo a boca de antecipação. Antes que ela seja inteira iluminada, no entanto, as nuvens fecham.

Todos os reis do lado iluminado começam a parecer tão monstruosos, tão numerosos para Tabanigno, tão boçais, tão atravessáveis de sol, que num impulso ele diz não se sabe quais palavras para Prezzemolina, que diz não se sabe quais palavras de volta, de tom terno e íntimo, e logo ele começa a andar, partindo diz a tradição na época do império Romano, deixando cair a lenha e retendo só uma tora com que vai matando porcos para comer. Quando fica claro para todos, um século e meio depois, que o monge está andando na direção do lado iluminado, como nenhum monge antes tinha tido a coragem de fazer isso ou nem sequer tido a idéia, há escândalo. Reis começam a olhar feio, suas pupilas se virando lentamente para a esquerda e suas mãos se agarrando às espadas. Bom, não só reis: lamento dizer que nem rainhas, nem freiras, nem monges, o acham um herói, e todos fofocam e maldizem enquanto Tabanigno vai fazendo a circunferência para o outro lado.  Tabanigno não se importa com os olhares de má vontade, nem com os outros monges que se põem no caminho, fazendo com que ele tenha que dar voltas imensas ao redor deles, ficando pequenininho quando está longe e depois custosamente aumentando de novo. A única coisa que o incomoda é a possibilidade de que algum rei ilumine Prezzemolina antes dele; e a falta que sente dela, sem dúvida, já que alguns séculos se passaram durante a caminhada.

Não há nenhum rei na parte do globo que faz a transição entre o hemisfério iluminado e o escuro, porque eles não querem ficar numa área onde teriam poucas chances de que um raio de sol os atravesse. Por isso Tabanigno faz uma passagem tranqüila para a parte iluminada do globo, atravessando a má vontade de dezenas de freiras amantes da ordem e do decoro. Pouco adiante, o que quer dizer cinqüenta anos depois, o monge encontra uma barreira de reis que vem se formando. Eles lutam durante duzentos anos, a tora de madeira do monge partindo crânios e fazendo voar coroas, e durante essa luta ele dá mais vinte ou trinta passos na direção proibida. Aquela região é tão mais quente e clara que a sua que não parece demais esperar que a qualquer momento, quem sabe, as nuvens se abram do outro lado do vidro. Antes disso ele talvez pegue uma coroa no chão, um robe vermelho e uma espada. O que seria demais, talvez, era esperar que logo o primeiro facho de luz que o atravesse fosse iluminar Prezzemolina do outro lado do mundo. Enquanto isso ela o acompanha com os olhos, sentada ainda na ponta esquerda da sua mesa lá longe.

Tudo teria acabado bem para Tabanigno, mas nesse ponto Rinceau entrou na órbita da Terra. O eixo do planeta tombou. Os dois hemisférios estão igualmente iluminados agora, mas os raios de sol vêm diretamente do pólo norte, iluminando a rosácea de cima. Os reis que lutavam com o monge param de se mover; rainhas que tocavam alaúdes param de mexer os dedos; todos olham para cima. Da rosácea de cima despenca um jorro vermelho e amarelo diretamente na rosácea de baixo. Podia haver coisa mais horrorosa, mais aberrante?

Bom, sim; uma segunda modificação no eixo do planeta, e agora o lado iluminado é o hemisfério dos monges e rainhas. O que fez essa mudança particularmente aberrante é que Rinceau já havia baixado tanto em direção ao nosso próprio planeta que perdeu a sua atmosfera para a atmosfera da Terra. Sem nuvens protegendo Rinceau, seu hemisfério iluminado inteiro joga luz contra o hemisfério oposto: todos os monges incandescentes de marronzice e brancura, impregnando ao mesmo tempo, com grande calor, com grande inexperiência, todas as freiras, cujos rostos manchados de branco sorriem sem nenhuma vergonha. Não há nenhum relato muito confiável de como se sentiram as rainhas, brilhando de azul inutilmente, e os reis, respingados do branco dos monges; mas isso não é muito difícil de imaginar.

O que se sabe é que Tabanigno, colhido no meio desse cataclisma, tentou voltar para o seu próprio hemisfério, nadando com lentidão pelo vidro colorido. Mas uma multidão de reis tentava fazer a mesma coisa, se chocando contra uma multidão de rainhas que começava a vir no sentido contrário. Lamento dizer que nenhuma cabeça coroada se comportou com grande dignidade, nem a de Prezzemolina; levantando as bordas das saias e dos mantos, reis e rainhas corriam pela lama, e tropeçavam em tronos, demorando alguns anos para se erguer e continuar correndo. Os reis que estavam a cavalo chegaram primeiro na área de transição, desimpedidos pelos monges que permaneceram parados e atravessados de luz – piscando rapidamente, à medida em que os dias da Terra se alternavam às noites. Tabanigno ia correndo atrás do último cavalo branco. Havia perdido Prezzemolina de vista, e ia procurando por ela entre as rainhas que passavam descabeladas, ou entre as caídas na grama, que os cavalos dos reis haviam atropelado.

 

 

V. O fim do mundo

 

A essa altura Rinceau tinha menos de um segundo de existência. Era noite no mundo e o planeta de vidro passou raspando pelas montanhas do Jura. Parte da rosácea inferior quebrou primeiro contra o Le Crêt de La Neige. O vento frio renovou o ar estagnado do globo, deixando entrar folhas secas e mariposas. Os quase dois mil habitantes de Rinceau mal tiveram tempo de entrar em pânico, porque uma noite na Terra mal equivaleu para eles a um quarto de segundo.

E Rinceau foi descendo sobre a província de Lyonnais, sua estrutura de ferro ocasionalmente enganchando nos galhos mais altos das árvores e fazendo com que o planeta rodasse. E assim Rinceau quase caiu na planície fora de Lyon, com suas maravilhosas fazendas de pêssegos, que teriam ficado recheados de cacos, metade fruta, metade caleidoscópio; e todos os habitantes do planeta teriam acreditado, se tivessem essa capacidade de análise, que haviam caído, despedaçados, num mundo feito de pêssego.

Mas não, foram finalmente cair mais adiante na própria cidade que dormia – Tabanigno e Prezzemolina, junto com todos os reis, monges, rainhas e freiras; suas bíblias de vidro arrancadas de suas mãos junto com os seus rosários, suas espadas reduzidas a matar galinhas de susto, suas lanças reduzidas a se espatifar nas pedras da rua, e os cascos dos seus cavalos batendo uma vez só, em grande velocidade, contra os telhados das casas e das catedrais, contra as praças e as pontes, cavalos e cavaleiros desaparecendo para sempre num único último grito de cacos e pó.

 

Alexandre Soares Silva escreveu o romance A Coisa Não-Deus (Ed. Beca, 2000, 166 pp.), entre outros. Escreve também no blogue que leva o seu nome, em http://soaressilva.apostos.com.