Motivo

por Marco Catalão


Eu canto porque o instante existe…

Buzino porque não agüento

ficar aqui mais um minuto.

Não sou grosseiro nem violento:

mas estou puto.

Ao lado de um fétido rio,

preso num congestionamento,

atravesso dias a fio

a passo lento.

Se chegarei ao meu destino

é algo que eu ainda ignoro.

Não sei. Não sei se desatino,

se rio ou choro.

Sei que buzino, e que a buzina

é só um dejeto a mais no ar

infecto que nos contamina

tão devagar!

Um belo dia estava eu em meu lar copacabanense quando recebi o ainda inédito O cânone acidental, de Marco Catalão. Lendo a primeira estrofe deste poema, dei uma gargalhada que deve ter matado alguns pombos – se é que o som tem esse poder (se tiver, prometo rir mais). Eu já ia admirando e rindo da engenhosidade com que Catalão vai imitando os ritmos de diversos poemas famosos, mas essa paródia de Cecília Meireles foi a que mais funcionou para mim. E as minhas razões subjetivas podem muito bem ser as do leitor em relação a algum outro poema deste livro que ainda verá as prateleiras.

Fazendo algo que é o equivalente a explicar uma piada, vamos ver a primeira estrofe do poema homônimo parodiado: Eu canto porque o instante existe/ e a minha vida está completa./ Não sou alegre nem sou triste:/ sou poeta.

Em muitos dos outros poemas, logo fui percebendo quais eram os “originais”. Nesse não: precisei chegar ao fim da primeira estrofe. Minha gargalhada veio porque o poema de Marco Catalão capturou minha atenção antes que eu pudesse me lembrar do poema de Cecília Meireles. O efeito conjunto de lembrar-se do original e comparar os temas e o vocabulário de um e outro é que deu a graça. Quer dizer, nos outros poemas eu de algum modo já sabia que haveria algo como uma punchline, ou já sabia perfeitamente que estava no terreno do humor. Não veio o leve estado de transe que nos deixa altamente sugestionáveis (sim, ler um poema com interesse não é tão diferente de ver um filme ou uma peça), e que Samuel Taylor Coleridge chamou willing suspension of disbelief. Fui levado como que “inconscientemente” àquele último verso, que por sua vez fez o clique que me levou a despertar, ativando a memória consciente do poema de Cecília Meireles.

Por que ri? Se o riso é uma espécie de catarse, é uma espécie de purgação. Mas o que há para ser purgado? Confesso que nunca gostei de “Motivo”, ainda que idolatre outros poemas de Cecília Meireles. “Motivo”, apesar dos ritmos interessantes, sempre me pareceu ter cara de poema de antologia, ter algo daquela pomposidade que afeta o pior uso do português. O conclusivo “sou poeta” dá-me ganas de atirar tomates. O que havia para ser purgado era essa imagem de pessoa que fala coisas profundas, e que aterroriza aqueles que, como eu, vivem das letras. Isolando essa imagem, podemos apontar para ela e rir. Marco Catalão nos faz esse favor reduzindo a pomposidade do poema original a uma reclamação contra o trânsito que culmina num palavrão.

Só que “Sogramigna”, de Bananère, também é uma obra-prima, e o poema parodiado, de Camões, está longe de ser repulsivo. Não pode haver riso sem o desejo de purgar algo. Mas o quê? Ora, o próprio ar de solenidade de que se revestem os cavalos de batalha da poesia, o próprio estatuto de medalhões. Poemas como “Alma minha gentil, que te partiste” ou “Sete anos de pastor Jacó servia” costumam sofrer ou do excesso de reverência ou de terem se transformado num surdo background literário por causa das excessivas repetições. O que se purga, então, é como que o pó que se acumula sobre o que é velho, venerável, e por isso chatíssimo; o riso traz o poema parodiado de volta à vida, expulsando nossa própria má vontade em relação a ele.

Tenho má vontade com Camões? Não. Mas um leitor de poesia admitirá que aquela música decassílaba, de tão imitada, tornou-se monótona, e que, como em relação a outras coisas, o distanciamento pode ajudar na apreciação. E uma boa paródia, como um bom remédio, um bom purgante, pode ajudar ainda mais.

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>