Os brinquedos da paz

por Saki

 

“As tramas de Saki são mais divertidas que as de P.G. Wodehouse, a sua sátira mais maldosa que a de Evelyn Waugh, os seus epigramas mais agudos que os de Wilde. Entre os seus devotos encontram-se Graham Greene, Noel Coward e Will Self. Uma vez mordidos, os leitores ficam viciados…”. Com estas palavras, Sandie Byrne, sua biógrafa mais recente e crítica politicamente correta, rende-se ao charme desse vetusto jornalista britânico do pré-(Primeira)-Guerra (The Unbearable Saki, Oxford University Press, 2007; o título, aliás, alude à única novela curta do mesmo autor, The Unbearable Bassington, de 1912). Acrescentemos apenas que o mencionado Wodehouse, a genial “pulga amestrada” da literatura inglesa, o considerava seu mestre e modelo.

Embora tenha sido autor de um livro histórico “sério” sobre história da Rússia e de praticamente ser o criador de um pseudo-gênero raro até hoje, a “história alternativa” (When William Came, “Quando Guilherme chegou”, de 1913, passa-se numa hipotética Londres conquistada pelos prussianos), Saki está em casa mesmo é nos contos satíricos, em que pinta e borda com mão levíssima e sempre original.

Mas por que, então, só aqui e ali encontramos alguma tradução sua em coletâneas de contos humorísticos ou, meio de penetra, envergonhadas, em antologias de contos de mistério? Talvez porque o seu humor repouse em parte num manejo tão agudo e econômico do inglês que não é nada fácil traduzi-lo; e talvez porque seja um pouquinho impiedoso demais com as nossas fraquezas morais e intelectuais, com uma ironia universal que quase chega a parecer cinismo. “Este conto não tem uma moral. Se aponta um mal, ao menos não sugere o remédio”, diz wildeanamente numa nota de autor, que aliás poderia aplicar-se à maior parte do que escreveu.

O amoralismo, porém, não era nele reflexo de imoralidade, e sim revolta contra o moralismo fácil e um tanto boboca dos contemporâneos. Tanto assim que, ao estourar a Primeira Guerra, o quarentão cronicamente adoentado mostrou que continuava a ter ideais: alistou-se como soldado raso e mais de uma vez arrastou-se de volta para as trincheiras quando fora classificado como ferido ou doente demais para fazê-lo. Mas não deixou de perseguir a ironia (ou de ser perseguido por ela) até o fim. Morreu numa trincheira francesa, atingido por um franco-atirador; e as suas últimas palavras teriam sido: “Apague esse maldito cigarro”.

 

 *****

– “Harvey”, disse Eleanor Bope, entregando ao irmão o recorte de um matutino londrino de 19 de março, “por favor leia este artigo sobre brinquedos de criança; traz exatamente o que pensamos sobre influências educativas”.

“Na opinião do Conselho Nacional da Paz”, dizia o texto, “há graves inconvenientes em presentear os meninos com regimentos de soldados preparados para a batalha, baterias de canhões e esquadras de dreadnoughts [1]. Os rapazes, admite o Conselho, naturalmente gostam de lutas e de toda a parafernália bélica…, mas isso não é razão para encorajar, e talvez dar forma permanente, aos seus instintos primitivos. Na Exposição do Bem-Estar Infantil, que abrirá daqui a três semanas em Olympia, o Conselho da Paz apresentará aos pais uma opção alternativa sob a forma de ‘brinquedos da paz’. Diante de uma representação do Palácio da Paz em Haia, especialmente pintada para este fim, serão agrupados, não soldados, mas civis em miniatura; não armas, mas arados e ferramentas industriais… Espera-se que os fabricantes se deixem inspirar por essa exposição, que depois produzirá frutos nas lojas de brinquedos”.

– “A idéia certamente é interessante e bem-intencionada”, comentou Harvey; “quanto a dar certo ou não na prática…”.

– “Precisamos tentar”, interrompeu-o a irmã; “como você vem para a Páscoa, e todos os anos traz alguns brinquedos para os rapazes, será uma excelente oportunidade para inaugurar a nova experiência. Percorra algumas lojas e compre todos os brinquedos e modelos que encontrar e que tenham a ver especialmente com a vida civil nos seus aspectos mais pacíficos. É claro que vai ter de explicar os brinquedos às crianças e interessá-las na nova idéia. Preciso dizer, infelizmente, que o ‘Cerco de Adrianopla’ [2] que a tia Susan lhes mandou não precisou de explicação alguma; eles sabiam tudo sobre uniformes e bandeiras, e até os nomes dos comandantes dos diversos exércitos, e quando um dia ouvi um deles usando o que parecia ser uma linguagem muito pouco recomendável, responderam-me que eram comandos em búlgaro; bem, até podia ser, mas por via das dúvidas tirei o brinquedo deles. Agora, espero que os seus presentes de Páscoa dêem um impulso inteiramente novo às mentes das crianças; Eric ainda não completou onze e Bertie tem apenas nove e meio. De forma que ainda estão numa idade bastante influenciável”.

– “É preciso levar em consideração os instintos primitivos, você sabe”, disse Harvey hesitantemente, “bem como as tendências hereditárias. Um dos seus tios-avós lutou da maneira mais fanática em Inkerman [3] – parece-me que foi mencionado especialmente nos despachos de guerra -, e o seu tio-bisavô quebrou todas as estufas dos vizinhos Whig quando foi aprovada a grande Reform Bill [4]. Por outro lado, como você diz, estão numa idade influenciável. Farei o melhor que puder”.

No Sábado de Aleluia, Harvey Bope abriu uma enorme caixa de papelão vermelho, de aspecto prometedor, diante dos olhares ávidos dos sobrinhos. “O seu tio lhes trouxe o que há de mais moderno em matéria de brinquedos”, tinha anunciado Eleanor com ar solene, e as expectativas juvenis estavam ansiosamente divididas entre soldados albaneses e um batalhão de cameleiros da Somália. Eric era ardente partidário da segunda opção. “Eles vêm com árabes a cavalo”, sussurrou; “os albaneses têm uns uniformes legais, e lutam o dia inteiro, e a noite inteira também se houver lua, mas o país é montanhoso, e assim eles não têm cavalaria”.

Quando a tampa foi tirada, a primeira coisa que viram foi uma enorme quantidade de tiras de papel ondulado; sempre começava assim com os brinquedos mais emocionantes. Harvey puxou para trás a camada de cima e logo apareceu um edifício quadrado, quase sem traços característicos.

– “É um forte!”, exclamou Bertie.

– “Não, é o palácio do Mpret da Albânia”, disse Eric, imensamente orgulhoso por conhecer aquele título exótico; “não tem janelas, está vendo, para que as pessoas não possam disparar contra a Família Real”.

– “É um depósito de lixo municipal”, disse Harvey apressadamente; “todos os resíduos e o lixo de uma cidade são reunidos ali, ao invés de ficarem espalhados, prejudicando a saúde dos cidadãos”.

No meio de um terrível silêncio, ele desencavou a figura em chumbo de um homem de terno preto.

– “Este”, disse, “é um cidadão eminente, John Stuart Mill. Era uma autoridade em economia política”.

– “Por quê?”, perguntou Bertie.

– “Bem, porque ele quis sê-lo; pensou que seria uma coisa útil”.

Bertie deu um grunhido expressivo, que demonstrava perfeitamente a sua opinião de que “gosto não se discute”.

Outro edifício quadrado saiu da caixa, desta vez com janelas e chaminés.

– “É um modelo da Associação Cristã de Moças de Manchester”, disse Harvey.

– “Há algum leão ali?”, perguntou Eric, esperançoso. Tinha lido sobre história romana e pensava que, onde houvesse cristãos, seria razoável encontrar também alguns leões.

– “Não, não há leões”, disse Harvey. “Aqui está outro civil, Robert Rakes, fundador das escolas dominicais, e este é o modelo de uma lavanderia pública municipal. Estas coisinhas redondas são pães cozidos numa padaria sanitária. Esta figura de chumbo é um inspetor sanitário, este é um conselheiro distrital e este é um funcionário do ministério do interior”.

– “E o que é que ele faz?”, perguntou Eric com o cansaço transparecendo na voz.

– “Ele cuida de coisas vinculadas a esse ministério”, disse Harvey. “Esta caixa com uma fenda é uma urna eleitoral. Em épocas de eleição, os votos são depositados dentro dela”.

– “E o que se põe em outras épocas?”, perguntou Bertie.

– “Nada. E aqui estão algumas ferramentas de trabalho, um carrinho de mão e uma enxada, e eu acho que estas são varas para amarrar lúpulo. Esta é uma colméia-modelo para abelhas e aquilo um exaustor para ventilação de canais de esgoto. Este aqui parece ser outro depósito de lixo municipal – não, não, é um modelo de escola de arte e biblioteca municipal. E esta figurinha é Mrs. Hemans, uma poetisa; este é Rowland Hill, que introduziu o sistema de postagem por um penny, e este Sir John Herschel, o eminente astrônomo”.

– “A idéia é que nós brinquemos com essas figurinhas civis?”, perguntou Eric.

– “É claro”, respondeu Harvey. “São brinquedos, e foram feitos para se brincar com eles”.

– “Mas como?”

Essa era difícil. “Vocês poderiam fazer duas delas disputar uma vaga no parlamento”, disse Harvey, “e ter uma eleição…”

– “Sim, com ovos podres, e lutas na rua, e um monte de cabeças rachadas!”, exclamou Eric.

– “E narizes sangrando e todo mundo bêbado como gambá”, ecoou Bertie, que andara estudando cuidadosamente um quadro de Hogarth [5].

– “Nada disso”, respondeu Harvey, “nada nem de longe parecido com isso. Os votos serão postos na urna eleitoral e o prefeito os contará, e anunciará quem recebeu mais votos, e a seguir os candidatos vão agradecer-lhe por presidir à eleição, e cada um deles dirá que a disputa correu do começo ao fim num clima de máxima cortesia e honestidade, e todos se separarão com expressões de estima mútua. Aí está um belo jogo para vocês, rapazes, brincarem. Eu nunca tive brinquedos assim quando era jovem”.

– “Acho que não vamos brincar com eles por enquanto”, disse Eric com total ausência daquele entusiasmo que tinha caracterizado as palavras do tio. “Acho que precisamos adiantar uma parte das lições que nos passaram para as férias. No momento, estamos estudando história; temos que decorar alguma coisa sobre o período Bourbon na França”.

– “O período Bourbon?”, perguntou Harvey com certa frieza transparecendo na voz.

– “É. Precisamos conhecer o reinado de Luís XIV”, continuou Eric. “Já aprendi os nomes das principais batalhas”.

A coisa não estava indo pelo rumo certo. “Sim, é verdade que houve algumas batalhas durante o reinado dele”, disse Harvey, “mas imagino que as narrativas sejam muito exageradas. As notícias eram muito incertas naquela época, e praticamente não havia correspondentes de guerra, de maneira que generais e comandantes podiam amplificar cada escaramuça em que se engajavam até fazê-las alcançar as dimensões de batalhas decisivas. Luís ficou famoso mesmo foi como paisagista; o projeto do jardim de Versalhes ficou tão famoso que foi copiado em toda a Europa”.

– “Você sabe alguma coisa sobre Madame Du Barry?”, perguntou Eric; “ela não teve a cabeça cortada?”

– “Essa foi outra grande amante da jardinagem”, disse Harvey evasivamente. “Na verdade, penso que a famosa rosa Du Barry recebeu o nome em homenagem a ela, e agora acho melhor vocês irem brincar um pouco e deixarem as lições para depois”.

Harvey bateu em retirada para a biblioteca e passou uns trinta ou quarenta minutos a perguntar-se se não seria possível compilar uma história geral para uso nas escolas elementares em que não figurassem de maneira muito proeminente batalhas, massacres, complôs assassinos e mortes violentas. Os períodos York e Lancaster e a era napoleônica, foi obrigado a admitir, apresentariam dificuldades consideráveis, e a Guerra dos Trinta Anos deixaria uma espécie de lacuna se fosse pura e simplesmente omitida. Mesmo assim, não seria nada mau se, nessa idade altamente impressionável, fosse possível dirigir a atenção das crianças para a invenção da impressão sobre tecido, desviando-a da Invencível Armada ou da Batalha de Waterloo.

Era hora, pensou, de voltar ao quarto dos meninos e ver como se estavam saindo com os seus brinquedos da paz. Parado do lado de fora da porta, pôde ouvir a voz de Eric erguida em comando; Bertie participava de vez em quando com sugestões construtivas.

– “Este é Luís XIV, o das calças-culote que o tio diz que inventou as escolas dominicais. Não se parece nada com ele, mas que havemos de fazer”.

– “Vamos pintar o paletó dele de púrpura, com as cores da minha caixa de guache”, disse Bertie.

– “Boa! E os sapatos de vermelho. E essa é Madame de Maintenon, a tal que se chama Mrs. Hemans. Ela pede a Luís que não vá à expedição, mas ele faz que não ouviu. E leva consigo o Marechal de Saxe, e precisamos fingir que têm milhares de homens consigo. A senha é Qui vive?, e a contra-senha L’état c’est moi – essa era uma das frases favoritas do rei, você sabe. Eles desembarcam em Manchester na calada da noite e um conspirador jacobita [6] lhes entrega as chaves da fortaleza”.

Espiando pela porta entreaberta, Harvey observou que o depósito de lixo municipal apresentava agora diversos furos para acomodar bocas de canhões imaginários e se convertera na principal praça-forte de Manchester; e John Stuart Mill tinha sido banhado em tinta vermelha e representava aparentemente o Marechal de Saxe.

– “Luís ordena às suas tropas que cerquem a Associação Cristã de Moças e seqüestrem todas. ‘Quando estivermos de volta ao Louvre, todas serão minhas’, exclama. Teremos de usar de novo a Mrs. Hemans como uma das moças; ela exclama ‘Nunca!’, e apunhala o Marechal de Saxe no coração”.

– “E ele sangra copiosamente”, exclamou Bertie, espalhando generosas quantidades de tinta vermelha pela fachada da Associação.

– “Os soldados invadem o prédio e vingam a sua morte com máxima selvageria. Cem moças são assassinadas” – e aqui Bertie derramou o resto da tinta vermelha pelo prédio – “e as quinhentas restantes são arrastadas para os navios franceses. ‘Perdi um marechal’, rosna Luís, ‘mas não volto de mãos vazias'”.

Harvey afastou-se silenciosamente da porta e foi procurar a irmã.

– “Eleanor”, disse, “a experiência…”

– “Sim?”

– “Fracassou. Chegamos tarde”.

Saki, pseudônimo de Hector Hugh Munro (1870-1916), nasceu em Akyab, Burma (hoje Sittwe, Myanmar), filho de um oficial da polícia colonial burmesa, Charles Augustus Munro. Em 1872, a mãe, Mary Frances Mercer, grávida do quarto filho, voltou para a Inglaterra a fim de dar à luz em condições de higiene e segurança mais adequadas; ao menos era o que se pensava, pois em pleno e pacato campo inglês foi atacada por uma vaca tresmalhada e morreu juntamente com a criança. O escritor foi criado com os irmãos por duas tias solteironas e moralistas. Educado na Inglaterra, depois de passar dois anos servindo na polícia indiana (em Burma, como o pai), voltou à Inglaterra por razões de saúde e passou a trabalhar como jornalista. Esteve alguns anos como correspondente estrangeiro para o Morning Post nos Bálcãs, Varsóvia, Rússia e Paris. No começo da Primeira Guerra, embora dispensado por idade, alistou-se nos Fuzileiros Reais como soldado ordinário sem soldo, e morreu na trincheira.

 

Tradução de Henrique Elfes.

 


 

[1] Tipo de navio de guerra lançado em 1906, de enorme sucesso.

 [2] Pelos búlgaros, em luta com o Império Turco durante a Primeira Guerra Mundial.

 [3] Batalha perto de Sebastopol, durante a Guerra da Criméia. 

[4] Provavelmente a Lei de Reforma Eleitoral de 1885, apoiada pelos liberais (Whigs), que levou muitos lugarejos a perder representação no parlamento e aumentou a influência dos Lib/Lab (liberais e trabalhistas).

 [5] Provavelmente, referência às gravuras satíricas da série A Eleição (1755-8), do pintor e gravurista inglês William Hogarth.

 [6] Os “jacobitas”, surgidos após a deposição de Jaime II da Inglaterra, defendiam o retorno da dinastia Stuart ao trono, contra a casa de Orange, chamada da Holanda para assumir o reino depois do final da “república” de Cromwell. Entre 1688 e 1746, protagonizaram alguns motins e rebeliões.

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