por Lawrence Flores Pereira
Só o dom do pó
Junto a essas águas basta
E o chacoalhar dos ossos
Nas correntes fundas
Pra que saibam, Arquita, qual foi o nosso fim.
Nessas paragens, lembramos a morada antiga
A abóbada celeste, o arco pleno e distante.
Mas aqui só sentimos o que já foi
E o que vemos não existe
Nossa memória, o Letes
Só dissolveu uma parte
E pela doçura do vivido
Nosso cerne anseia ainda.
Sim, faríamos tudo para voltar,
Inda que como escravos,
Carregando fardos dia a dia,
E eu diria tudo o que calei
Sentiria tudo o que adiei.
Já sem corpos, inda amamos,
Mas aqui no Orco
As sombras não se tocam.
Ah, ter cruzado o portal terrível
Velhos ou jovens, felizes ou infelizes,
Encontrando a sepultura
Entre os bramidos e os esguichos do sal, sem poeta
Para grafar na face móvel das águas
Um dístico em nosso nome,
Sem consolo ou mão amada.
Vai, manda dizer, Arquita,
Que estamos aqui
E ansiamos pela voz dos amigos.
* * *
Quem falou que esta entrada
Arranha por dentro a tua folia,
Aranha, que me conceda de tirar
A fotografia, não de ti –
De tua labuta de tramar entranhas,
Saídas, artimanhas
No ramo orvalhado da manhã.
Quem falou do teu têxtil toque,
Horas a fio,
Malhas que manhã alguma rompe
E sol solerte de rocio esvaza,
Há de saber pelo centrífugo
Atávico giro teu
que jamais penetrará.
O que o teu bálsamo maligno embalsamou
Por mor de se fazer notável em rudimento –
Malícia, silêncio, dispensamento –
Ninguém penetrará…
E quem notar-te o desvario
De sugar do vôo vadio da vítima
As intestinas líquidas partes,
Desprezando a muda carapaça,
Terá visto
Tua calada tarefa de cernir
Por um cerzir esteta
Do miolo morto do inseto
A tua continuação? – Não.
* * *
No fundo negro:
Petróleo, e o vestido vermelho;
E a luz num só foco
De uma vela oculta,
Atrás de uma mão segura,
Zela teus primeiros dias.
E quando tua jovem mãe
Acolhe no fecundo regaço
Teu grão de vida imensamente frágil,
Ela é amor infinito, e embaraço.
Pois teu corpo, ela sente, é algo de outro mundo.
O que fazer com ele
Que parece
Prestes a ganhar toda a vida
Ou perdê-la toda,
Esse Sèvres pequeno e quebradiço
Que ela apóia no ventre sem jeito,
Como se insciente daquilo que a natura
Para toda a criatura tornou evidente?
(Por isso soube o artista
Colocar-lhe ao lado
A sábia avó que lhe ensina,
Lábios pinçados, responsáveis,
A firmar nos braços imaturos
O precioso embrulho.)
* * *
Do alto do zênite, nas herdades
Altas, uma simples guinada, apena
Te daria de volta a gravidade
Tão ansiada – e perderias as penas.
Só isso, uma guinada à esquerda, à direita
E os olhos, sim, ébrios da luz solar,
Veriam aproximar-se o vasto mar,
Se abrindo ao belo corpo como um leito;
Mas com tal desvario de confiar
No teu engenho, pai, antes atraio
Para as frágeis asas de cera o raio
Fulgurante que o sol lança no ar,
Pra que funda com amor tua habilidade
Ao velho e rico dom da gravidade.
NOTURNO
(com lampejos de guerra)
A noite desce
E o cipreste
no céu
A névoa
obscurece
E na caserna
tu, que és só halo
Na lúgubre luzerna
bela égua de raça
Quando a garupa
abala
Adumbra-se
nos ombros
A tua lua-gala.
E enquanto
da colina
O alúvio
de tuas crinas
Galopando desce
a ventania cessa
E eu ponho todo empenho
em ouvir
O que crepita
Sob a penumbra espessa
de tuas vistas.
CORAÇÃO DE SALMÃO
Só no inconstante
os pés
No céu, o vento.
Na volúvel corrente da idade,
Tudo desce
com séria gravidade
Já rumo ao inevitável
concluimento.
Só o Salmão
acha em si
Um novo alento,
quando,
contra a potente
Correnteza,
Busca o vão donde veio,
na proeza
Que o levará enfim
à sua extinção
E depõe
num impulso
o fértil grão,
Queimado pelo ardor
Da singeleza.
Lawrence Flores Pereira é doutor, professor da Universidade Federal de Santa Maria, co-diretor do Núcleo Filosofia-Literatura-Arte (PPG-Filosofia da UFRGS), poeta, tradutor e ensaísta. Publicou vários livros sobre clássicos das literaturas inglesa, francesa e brasileira, além dos clássicos gregos. Os poemas selecionados fazem parte do livro Engano especular, ainda inédito.