Sogramigna

por Juó Bananére

Alma minha gentil que te partiste…

Sogramigna infernale chi murré

vintes quatro anno maise tardi che devia,

fique aí a vita intêra e maise un dia,

che io no tegno sodades di vucê.

Nu doce stante che vucê murrê

tive tamagno attaque de legria

che quasi, quasi, murri aquillo dia,

co allegró chi apagné di ti perdê.

I oggi cuntento come un boi di carro,

i mais libero d’un passarigno,

passo a vita pitáno o meu cigarro,

imaginando chi aóra inzatamente

tu stá interrada até o piscocigno

dentro d’un brutto taxo di agua quente.

Juó Bananère é o pseudônimo que Alexandre Marcondes Machado usou para publicar diversos escritos, todos numa imitação do patois particular dos imigrantes italianos de São Paulo – aquele idioma usado em novelas como Terra Nostra, incluindo a coletânea de poemas La divina increnca, de 1915. Sete anos antes da Semana de Arte Moderna, já se concretizava na mesma cidade um projeto de língua popular e pura esculhambação: poemas famosos da língua portuguesa supostamente revistos na linguagem de um pseudo-povo, o que obviamente só poderia ser obra de um letrado gozando de todos simultaneamente – ainda que com um certo carinho.

Entre os poetas de que trato nesta edição da Anatomia do poema, Juó Bananère foi o único que se dedicou exclusivamente ao humor, e aquele que melhor se presta a contestar quem julgue a poesia cômica um gênero menor: tente reproduzir tão evocativamente um modo de falar, pronúncia e entonação simultaneamente, preservando os ritmos originais do poema parodiado, para ver se é fácil. Em parte, é um exercício de tradução. Ah, talvez você diga que não se deve avaliar as obras de arte por isso; mas eu digo que nem só de inspiração vive o homem, e que a inspiração também costuma ser precedida de ambição e seguida de trabalho. Do contrário, seria psicografia.

Entretanto, não há como olhar a tentativa de escrita fonética e não pensar em outras tentativas. Hoje um registro escrito mais ou menos consagrado é o internetês, com o subdialeto do miguxês. Até que ponto seria legítimo usar uma dessas variantes num poema? Até o ponto em que esse uso cumprisse a função de evocar alguma coisa relacionada ao próprio poema de um modo que o registro padrão da língua não alcançasse por si. Mas cumpre notar que essas variações não indicam diferenças de pronúncia, exceto em alguns casos do miguxês, naturalmente mais infantilizado, e que por isso mesmo só pode levar ao efeito do ridículo. No site Coisinha pode-se encontrar um conversor para três variantes do miguxês. Se não há diferença de pronúncia, embora certamente haja de entonação, a versão da primeira estrofe do poema de Camões fica bem divertida quando esculhambada em neo-miguxês, indicado como “dialeto Orkut, Fotolog…”: aLMAh MInhAh geNtiU…Ki tI PaRtIStI/ TAUm CEdU DIstAh VidAh dIscOnTenti…/ RepoZAH laH NU CeU etERNaMeNTI…/ I vivAH EU kah nAH
terRaH sEMpRe TrIsti……

O humor do Miguxeitor, porém, traz um certo escárnio. Claro que o Miguxeitor é um software, mas antes disso ele é um princípio. O humor de Bananère tem mais arte e amor, e os poemas por ele produzidos valem também como homenagem aos poemas parodiados.

Não há tanto o que dizer sobre o conteúdo do poema, exceto que Juó Bananère aproveita para transformar o tema que Edgar Allan Poe chamou de “o mais sublime de todos” em sua Filosofia da composição, “a morte de uma bela mulher”, presente no poema parodiado (vamos imaginar que Camões não escreveu o poema para uma feia), num dos temas mais clichês do Brasil e provavelmente do mundo inteiro: a rejeição dos maridos às suas sogras.

Será, porém, que em pleno século XXI seria possível publicar um poema celebrando a morte da própria sogra, mesmo sendo um poema claramente humorístico, sem despertar a reprovação da neo-Nova Arcádia das letras de língua portuguesa? Será que apenas o quase século e o patois protegem Juó Bananère das imputações de mau gosto? Do que seria acusado alguém que gozasse da fala de um grupo defendido pelas “pessoas esclarecidas” e representado politicamente?

Um comentário em “Sogramigna

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