Um jantar de barões: invocação

Anônimo


Musa da sopa e do cozido, inspira-me!

Pândega musa, que sorris ao vate

em molho de açafrão, e de tomate,

um cego adorador… achaste em mim:

transforma o estro meu em lombo assado,

da minha inspiração faz um pudim.

Tu, filha dos barões, musa do unto,

nasceste na cozinha entre caçolas;

saudaram-te no berço alhos, cebolas,

do cominho tiveste uma ovação;

depois, trajando galas de toucinho,

eu vi-te nas bochechas de um barão.

Namorado de ti, fiz-te meiguices,

por detrás de um peru, e tu de lá

sorriste-me através da nédia pá

da vitela gentil, rica de arroz!

Ai! Era… e nem eu sei se foi mais linda

aquela gorda pata… que te pôs!

Tu fizeste de mim um novo Cláudio,

inspiraste-me a fé no rodovalho.

Traguei indigestões, arrotos d’alho,

Bernardas na barriga suportei.

Tomei chá de macela… E, em prêmio disto,

o teu auxílio, musa, não terei?!

É impossível, ou ao menos altamente não-recomendável, falar do humor na poesia de língua portuguesa sem mencionar o Cancioneiro alegre de poetas portugueses e brasileiros, coletânea de poemas engraçados publicada por Camilo Castelo Branco em 1887. Digo “engraçados” e não “humorísticos” porque se quisermos falar em tradição de poesia cômica, ou em poesia cômica como subgênero, teremos problemas para incluir diversos dos poemas ali contidos, que se destacam antes pelo humor… involuntário. Hoje, como dantes, não é difícil imaginar o leitor de poesia a percorrer de vez em quando as parcas prateleiras que lhe são dedicadas nas livrarias à procura simplesmente de algo ridículo que valha algumas gargalhadas e a sempiterna meditação: “Mas para publicar isso foi preciso que o editor lesse, e um revisor… Um livro publicado é culpa de muita gente”. Na verdade, o veio do humor involuntário talvez compreenda a maior parte dos livros de poesia publicados, e decidir se eles devem ou não entrar para o cânon humorístico ou formar um anti-cânon à parte é tarefa que decidi deixar para depois. Caso contrário, teria selecionado um dos involuntários de Camilo, ou um trecho do Guesa errante.

Não custa observar que a estrela da coletânea são os comentários do coletor. Camilo Castelo Branco ataca reputações de tal modo que, hoje, poderia ter de pagar mil indenizações. Reputações que ainda hoje se mantêm, e que devem explicar a relativa obscuridade do livro. Afinal, transgressor e desafiador é aquele que, já distante no tempo e no espaço, insurgiu-se contra quem não estaria do nosso lado; quem se insurge contra nós no aqui e agora é sempre um malcriado, um ressentido, um desrespeitador. Não se poderia pensar que um frasista com o talento de Camilo fosse um ressentido; basta o final do comentário que faz à invocação deste “Um jantar de barões”, poema que segue narrando a comilança da gente ilustre do Porto, destacando, ao final, a pomposa vacuidade de um discurso de brinde. Explicando como o poema causou vergonha a quem se sentiu retratado por ele, diz: “Desde essa época, em jantares, o meu lábio silente e amordaçado pela calúnia nunca mais se abriu em girassóis de retórica”.

O resto do poema tem o mérito de reproduzir a fala das pessoas, de tornar viva, no esplendor de seu ridículo, a imagem de quem come endoudecidamente. Mas esta invocação, além de ter um tamanho adequado para o nosso formato, serve para recordarmos outras invocações famosas. A poesia épica pede que primeiro a musa seja convocada, como Homero fez na Ilíada (“Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles”) ou como Camões nos Lusíadas (pedindo às musas do Tejo “uma fúria grande e sonorosa”), e também para recordarmos que nas modelares Ilíada e Odisséia não faltam banquetes. Além de lutas e viagens, a épica é marcada por comilanças, bebedeiras e discurseiras – e talvez por isso se use o adjetivo “épico” (e também “homérico”) para descrever as maneiras tremendas de satisfazer as necessidades. Um poema épico e satírico sobre um jantar ainda conta com essa ironia de tomar a parte pelo todo. Se ao menos os barões do Porto tivessem lutado… A única luta que aparece no poema é a “Bernarda”, mais conhecida como Revolta da Maria Bernarda, ocorrida em Braga em 1862 por causa do excesso de impostos. Difícil saber se o autor estava ciente de que o imperador romano Cláudio (verso 19) foi quem aboliu os impostos sobre os alimentos instituídos por Calígula – o que dá um contexto mais heróico às insurgências
barrigais.

Um comentário em “Um jantar de barões: invocação

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