A invenção perfeita

por Martim Vasques da Cunha

Nicholas Stankevitch chegou ao seu limite: em um único fluido a cicatriz expelia tamanha quantidade de pus que não lhe restava outra coisa exceto morrer, algo por que ele havia esperado silenciosamente durante toda a sua vida.

Foi quando viu a garota estatelada no chão, os braços e as pernas frenéticas, sangue por todos os orifícios, que a dor veio pela primeira vez. A dor dela, mais precisamente. Ouviu os comentários de pessoas que passavam pelo local, de que ela se jogara sem aviso, e de que sua queda teve o som de uma explosão que, inesperadamente, não despertou ninguém do torpor do caminhar de cada um pelas ruas assustadas da cidade. Não foi preciso tocá-la, nem chegar muito perto; um violento choque o atingiu de baixo para cima e ele teve de se segurar em um poste para não cair. Se deixasse, sua alma queimaria o corpo. Nem na hora do acidente sofrera tanto – para ser exato, ele não sofrera absolutamente nada; ficou no hospital por três meses, olhando a enorme ferida no braço, o carro a se chocar com um caminhão coberto de luzes festivas. Mesmo assim, nada de dor ou sofrimento, e agora, encostado como um animal no poste, alguém resolvia retribuir aquela falta em dobro. Mas soube, segundos depois, que não era a sua dor: curiosamente a moribunda o olhava, implorando-lhe para a aliviar daquilo. E ele acatou o apelo. Agüentou a agonia até o fim e, ao sentir que poderia lidar com isso, foi embora, cambaleante.

Aprendeu a se adaptar à situação. Com o tempo, passou a não se importar com a intensidade dos ataques e sim com os rostos doadores daquela angústia. Eram rostos que o observavam como se fosse um ser superior, um monarca. Todos aqueles rostos, repletos de rugas, fissuras na pele, dentes amarelados, narizes retorcidos, a dignidade de cada um a se despedir sem nenhum alento em camas de hospital, camas particulares, camas públicas, às vezes sem cama nenhuma, acompanhados somente por uma gratidão próxima da mendicância. Fazia-lhes um grande favor: drenava toda a dor deles. Não só nos momentos de morte ou sofrimento físico como também nos de mágoa, perda e vazio. Possuía toda a dor do mundo – e sua alma era nada mais nada menos do que um interminável rio desta substância viscosa, porém invisível. E, um dia, na frente do reflexo no espelho, enquanto se olhava detalhadamente, ciente de todo o seu poder e de todo o seu domínio, proclamou-se o rei daqueles servos pedintes de olhos enferrujados.

Uma vez, descobriu um pequeno detalhe que transformaria a sua vida: podia ter toda a dor do mundo na palma da mão – mas não possuía a sua própria dor. Isto o desconcertou: Se era privado desse sentimento, seria um ser humano? Seria ainda o rei? Não, não era: como poderia ser rei de algo que não tinha? Foi a cicatriz, último resquício do acidente, a causa da revelação; encontrou-a misteriosamente aberta pela manhã, uma crosta de sangue cristalizada nas bordas. Com um estilete abriu-a mais, cuidadosamente, o sangue a escorrer pelo braço, sem provocar cócegas. Estava irritado e um sentimento de impotência o invadiu. Tinha de reaver seu trono, sua coroa, a qualquer custo; para isso inventou um método que pretendia executar fase por fase, nervo por nervo.

Isolou-se em um quarto branco, a claridade nos olhos, sem comida, água, roupas ou cama; era obrigatório no corpo nu o frio do azulejo, apesar do calor indesejado que o aquecia sem motivo, do tato ainda humano das lajotas na palma da mão. Ficou estendido no solo, a luz diretamente na retina, no seu rosto impassível, a barba por fazer. Ainda possuía uma noção do tempo: já se haviam passado quatro dias. Pelas dobras do corpo rodeavam suas necessidades fisiológicas, as fezes amassadas nas costas, no peito, nas pernas, na virilha, a urina em estado de vaporização, inalada como o mais puro ar, os miasmas e os escarros formando um estranho composto. As paredes não se movimentavam, o chão não se partia ao meio, o teto não caía; nada de tonturas, rodopios ou alucinações. Nem sentia fome: o estômago parecia estar sempre satisfeito. Deitado, as lâmpadas brilhando na face, percebeu que a dor somente viria se ocorresse um milagre. Um milagre – era disso que ele precisava. Se a dor fosse um milagre tudo estaria melhor, especialmente se fosse a dor dele. Mas o fato é que não existia essa dor. Nada havia mudado. A saliva molhava a boca quando secava. Os sentidos estavam em ordem, a saúde também. A primeira fase falhara; agora restava a segunda. Controlou a fúria com uma força impressionante. Não gostaria que a invenção demorasse muito para ser realizada a contento; queria a sua dor, e o mais rápido possível. Uma situação paradoxal, pensou: não tinha a própria dor, e mesmo essa ausência não era exatamente sofrida.

À sua frente, três fotos, imaculadas e intactas, de três pessoas: uma mulher, um garoto e ele próprio, antes do acidente, da cicatriz. Pegou a do garoto com as mãos sujas, manchando com suavidade o papel. Tinha uns oito, dez anos de idade, físico muito delicado, talvez uma doença o tivesse marcado profundamente. Onde estaria? Com ela, a mulher da foto ao lado, ou sozinho, trancado em um quarto, gritando para paredes surdas? Sim, o garoto no quarto, o grito tão surdo quanto as paredes e ele no esforço de repensar se existia alguma característica peculiar, uma pinta, uma coloração diferente na pele ou até mesmo uma ferida incurável. Mas o esforço só complicou a situação. Procurou a mulher. Seria ela alguém importante na sua vida? Apesar de ter a foto dela diante dos olhos, perguntava como seriam a sua face, seus olhos, sua pele. Por ser irmã da dor, a memória deveria ajudá-lo – mas na verdade encenava uma traição: diminuía as coisas, fragmentando-as, tornando-as pretensamente afiadas como facas. Relembrar era doer e ele nem sequer conseguia isso: relembrar não era tentar e ele apenas tentava relembrar. Quando a memória explodia alguma lasca pontuda, desintegrava-se no percurso e a foto não passava de um mero papel com uma pessoa qualquer nele. Olhou para ele próprio e não reconheceu quem era aquele homem. Não se lembrava de um mínimo detalhe seu. Quem seria? Seria ele? Não, outra pessoa, outra pessoa. Certeza absoluta. Deus, um absurdo. Não, Deus nada tinha a ver com isso. Ou tinha? Será que Deus possuía toda a dor do mundo – e, vendo nele um obstáculo, resolveu tirar-lhe o poder? Afinal, quem tolera alguém em seu caminho? Não seria uma tarefa tão complicada encará-Lo como um obstáculo – um obstáculo necessário para a perfeita realização do invento –, mas o fato é que a tolerância diminuía a cada alívio que enfrentava. Vinde, dizia para si mesmo. O que pode ser desviado? O que pode ser encarado, confrontado? Desviar para quê? Para quem? O que desejo, faço. E o que faço, foi desejado há muito tempo, antes de qualquer obstáculo, antes de qualquer profecia ou diagnóstico conseguir me impedir de executar o intento. Pois nada me é um obstáculo, nada me detém neste caminho de ferro traçado a partir do que desejo. E que venham as sombras, mesmo que elas não se levantassem para louvá-lo, e se havia alguma fidelidade em crer neste lugar perdido onde a dor tentava habitar – o que continuava a falhar nas suas maravilhas? Agachou-se no chão e contemplou o vazio negro. Soprava, dentro do seu corpo, um inofensivo vento gelado. No buraco que era a sua memória, não havia sequer uma imagem para socorrê-lo. Então percebeu que só poderia concretizar sua invenção indo para a terceira e última fase, relacionada com as anteriores e que existiria somente com a ajuda de uma rachadura, de uma ferida mal-cuidada, de uma cicatriz. A cicatriz. Tudo vinha dela. A terceira fase seria a eliminação da cicatriz, da carne, do sangue, do corpo. Nem pensou duas vezes ao pegar uma navalha para cortar o nervo derradeiro do seu projeto.

Estendeu o braço alvo, as ramificadas veias roxas, o vermelho cristalizado da crosta, o líquido amarelo no desejo de sair a qualquer custo. A luz da navalha nos olhos, na mente, na alma. A ponta afiada foi direto para o pulso, ferindo com cuidado a pele. Lentamente começou o trabalho: a cortar e a descer, a cicatriz dividida ao meio, o sangue escorrendo pelo braço, pelo corpo rígido, pelo chão imundo. O líquido amarelo viscoso, o pus, o veneno em um fluido só. E veio o que ele imaginou ser um alívio, o alívio de ver todo aquele mal a sumir, pingando como um moribundo, o contorcer dos vasos sanguíneos, os nervos e os músculos ocultos, o sangue e o pus e o veneno; sentiu que a sua querida dor chegaria em instantes. Por isso o alívio, o alívio, o alívio que nunca foi alívio e sim a agonia que seria a morte. O veneno que estava a ir embora, que o impedia de viver, de concluir a sua busca, era, na verdade, a sua vida. Mas a agonia não o incomodava, era até agradável demais. Seria a sua esperada dor assim tão deliciosa? Caindo lentamente, a raspar as costas pela parede branca, fria e suja, seus olhos latejavam na mesma intensidade do braço repartido, a água impura indo para o piso, as gotas ralas criando uma considerável poça. Esboçou um sorriso no canto esquerdo da boca, em tom irônico, talvez por sequer imaginar que a procura terminaria de modo tão pouco chocante e vitorioso. Através de uma luz dourada, resplandecia um trono com uma coroa de movimento pendular, prestes a cair. Tinha de reavê-los, era obrigatório possuí-los para voltar a ser um rei. A forte luminosidade cegava qualquer ângulo de visão. Cravou os dedos no chão, as unhas a lascar o azulejo, as cutículas a se desfiar, o sangue nas bordas dos ossos. Retorceu os músculos, os braços, os ombros, o torso. Conseguiu arrastar-se como um besouro sem a carapaça e ficou no meio do halo, perto do trono, centímetros da coroa. No instante em que iria tocá-la, percebeu somente uma branca lâmpada oscilando sobre sua cabeça. A luz do sol encharcava a superfície áspera das pedras que lhe machucavam a sola dos pés enquanto o tio o guiava pelas encostas das montanhas, seus olhos de criança pouco acostumados com o brilho da terra que, dentro em breve, seria tragada pela noite, pela escuridão que sempre acompanha a inércia e o sono; seu tio era um homem oriundo de um lugar muito distante – a família o chamava simplesmente de guerra – e, naquele dia, ele decidira levá-lo para uma caminhada por aquelas montanhas para mostrar uma certa invenção; e foram juntos pela superfície áspera das pedras encharcadas de sol, a noite a se aproximar, ele a observar o tio a caminhar à sua frente sem nenhuma hesitação, sabendo exatamente onde se devia pisar na trilha, até o momento em que o tio parou de súbito e perguntou-lhe se podia ver o que via; e ele respondeu que não, não podia ver o que o tio alegava ver, e o tio passou a descrever, era uma roda de fogo a brilhar no crepúsculo, uma roda a se abrir e a mostrar-lhe as entranhas do mundo, já tinha visto essa mesma roda com o seu irmão, o próprio pai da criança que o acompanhava, e este também não entendera o que estava à sua frente, era esta a invenção de que ele tanto falava?; era sim, era essa a invenção, mas o tio voltou a perguntar-lhe se podia vê-la e ele repetiu a negativa; e o tio resolveu pegar uma pedra e cortou os dois pulsos na sua frente e o sangue também encharcou o chão em conluio com o sol, ninguém soube escutar as suas últimas palavras, apesar de uma delas ter sido a seguinte frase: fiz como meu irmão faria; e a criança não sentiu nada pelo tio naquele momento, somente muito tempo depois, quando, no velório, alguém disse – uma voz que ainda ecoava no fundo de seus pensamentos – que era assim que morriam aqueles que não tinham ninguém para compartilhar o passado e a dor, exceto o silêncio da própria alma. Quis gritar agora, mas, ao tentar isso, veio novamente o silêncio, o silêncio, sozinho, à espera por algo que nunca chegaria, o silêncio a possuir tudo, a possuir a alma, o sangue, o silêncio a possuir o próprio silêncio, indo, indo, em vôo ligeiro, o veneno, o silêncio e o crepúsculo formavam um todo que se despedia dele, o objeto de sua invenção perfeita. Olhou para o braço mutilado, a cicatriz desaparecida na polpa de sangue coagulado e veias desfibradas. Não mirou para o alto, não se importou em recitar uma prece em homenagem ao fim de sua existência, de sua maldita e faminta existência, ávida por um limite desejado há muito tempo e, provavelmente, inalcançável – mas que finalmente apareceu, levando-o a concluir que um ponto final seria colocado na situação, pois nada mais se podia fazer, talvez um agradecimento às sombras que se levantavam para louvá-lo, fiéis em sua servidão, sem saberem em que apenas o guardavam não só de si mesmo, mas também da luz sugerida em cada recusa enraizada em seu coração, em sua mente, em sua alma. O silêncio observou Nicholas Stankevitch com uma delicadeza impressionante e, vendo que ele, com os olhos enferrujados, pedia a alguém que lhe desse alguma espécie de dor, de humanidade ou de vida, mesmo que fosse no fim, decidiu dar-lhe isso, por um breve e inesquecível segundo, e ele agradeceu também com um outro silêncio, a sua própria morte, a mais perfeita de todas as invenções, sem dúvida digna daqueles que – e a voz ainda ecoava no fundo de seus pensamentos – não têm ninguém para compartilhar as entranhas do mundo, expostas aos olhos da criança que não existe mais.

12 de março – 8 de julho de 1997 (1a versão)
27 de outubro – 8 de novembro de 2005 (2a versão)
Julho 2009 (3a versão)

M.V.C.
S.D.G.

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista, mestre em filosofia da religião pela PUC-SP e coordenador do Departamento de Humanidades do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS). Este conto faz parte do livro O Invisível e outras histórias, ainda inédito.

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