por Ivo Barroso
Christian Johann Heinrich Heine (1797-1856) e Rainer Maria Rilke (1875-1926), poetas de expressão alemã, passaram boa parte de suas vidas na França, onde o primeiro se exilou e o segundo atuou como secretário do escultor Auguste Rodin, de quem intentava escrever a biografia. Compuseram e publicaram poemas escritos em francês (Rilke mais de 400) e, conquanto a obra de ambos seja consagrada como de alta relevância nas respectivas literaturas, suas incursões pelo idioma francês não passam hoje de curiosidades lingüísticas, nada acrescentado à representatividade poética de seus autores. Na época do simbolismo, houve escritores brasileiros, como Jacques d’Avray – pseudônimo de José de Freitas Vale (1870-1958) – que só poetavam em francês e que acabaram merecidamente esquecidos em ambas as línguas.
Já no caso, por exemplo, de um Guillaume Apollinaire (1880-1918) e de um Oscar Vladislas de Lubicz-Milosz (1877-1939), a opção se passa de forma diferente: o primeiro, nascido em Roma, logo incursiona pela Côte d’Azur (Mônaco, Cannes e Nice), para se fixar definitivamente em Paris aos 18 anos; e Milosz, checo, proveniente de família de nobres lituanos, vem fazer seus estudos em Paris em 1889 (aos 22 anos) e aí permanece para sempre. Ambos se tornam franceses naturalizados, Apollinaire chegou a lutar na Primeira Grande Guerra nos exércitos franceses, e Milosz, embora tenha se tornado diplomata lituano com a independência de seu país em 1918, sempre permaneceu na França e escreveu sua obra mais significativa em francês. São poetas importantes, integrados na literatura daquele país. Também é o caso de Blaise Cendrars (1887-1961), nascido na Suíça, mas radicando em Paris desde os 23 anos.
Contudo, há grandes nomes literários que, sem abdicarem de sua nacionalidade, além de se distinguirem como poetas de seus países francófonos, contribuíram ao mesmo tempo para enriquecer a literatura da França. São os “poetas de expressão francesa”, radicados nas seguintes áreas geográficas: a Suíça romanda, a Bélgica, o Canadá (Quebec), o Magreb, a África negra, as Antilhas, o Oceano Índico e o Oriente Próximo.
Poetas suíço-romandos
Entre os poetas suíço-romandos são notáveis os nomes de Charles-Ferdinand Ramuz e Philippe Jaccottet. Ramuz freqüentou os círculos literários parisienses onde foi amigo de Paul Valéry e André Gide e colaborador (libretista) de Igor Stravinski na ópera-balé A história do soldado. Sua poesia reflete uma visão pessimista do mundo e da condição humana. Philippe Jaccottet, hoje com 84 anos, continua sua incansável atividade de poeta e tradutor, tendo publicado este ano pela Fata Morgana o livro infantil Couleur de la terre. Sua obra de tradutor é das mais importantes da língua francesa: Goethe, Holderlin, Leopardi, Musil, Rilke, Thomas Mann, Ungaretti, além da Odisséia de Homero.
Charles-Ferdinand Ramuz
(1878-1947)
L’enterrement
Il y a six hommes pour porter la bière:
un mort, c’est plus lourd qu’un vivant;
le cortège va lentement
sur le chemin du cimetière.
Lorsque le pasteur a fini la prière,
le mort était sorti, les femmes étaient sorties aussi,
les femmes s’étaient mises à pleurer.
On avait voulu les consoler,
mais elles n’en pleuraient que plus fort
à cause du mort
dans les escaliers.
Il y a six hommes pour porter la bière;
un mort, c’est plus lourd qu’un vivant;
le cortège va lentement
sur le chemin du cimetière.
C’est un vieux. N’est-ce pas? les vieux
qui passent leur temps au coin de leur feu,
ça doit s’attendre à s’en aller,
mais c’est dur quand même, et c’est dur pour eux
et puis pour la femme.
A présent il pleut, il fait de la boue,
on est arrivé le trou est creusé,
le fossoyeur est à cóté,
les gens se sont decouverts,
on met le cercueil sur la fosse,
le cercueil descend, les cordes grincent,
la terre en tombant sonne creux,
et les gens s’en vont se mouchant
avec leur mouchoir sur les yeux,
parce que, de voir ça, ça remue.
O enterro
Seis homens levam o caixão funéreo,
um morto é mais pesado do que um vivo,
segue o cortejo compassivo
pelos portões do cemitério.
Mal o pastor termina a prece,
o morto sai, saem as mulheres.
Elas começam a chorar,
bem que as queria consolar,
mas elas chorariam ainda mais forte
por essa morte
nas escadarias.
Seis homens levam o caixão funéreo,
Um morto é mais pesado do que um vivo,
Segue o cortejo compassivo
Pelos portões do cemitério.
É um velho. Não é? Estou a ver.
Dos que passam o tempo todo a se aquecer.
É de esperar que eles se vão,
mas mesmo assim é duro, não?
Duro pra ele e pra a mulher.
Agora chove, lama pra todo lado,
chegamos, o buraco está cavado,
e o coveiro ali à frente.
Todos tiraram o chapéu,
põem o caixão por sobre a fossa,
desce o caixão. As cordas roçam,
a terra cai a soar ocamente,
As pessoas vão saindo se assoando,
Tapando os olhos com os lenços
Porque, vendo isto, se comovem.
Philippe Jaccottet
(*1925)
L’ignorant
Plus je vieillis et plus je croîs en ignorance,
plus j’ai vécu, moins je possède et moins je règne.
Tout ce que j’ai, c’est un espace tour à tour
enneigé ou brillant, mais jamais habité.
Où est le donateur, le guide, le gardien?
Je me tiens dans ma chambre et d’abord je me tais
(le silence entre en serviteur mettre un peu d’ordre),
et j’attends qu’un à un les mensonges s’écartent:
Que reste-t-il? que reste-t-il à ce mourant
qui l’empêche si bien de mourir? Quelle force
le fait encor parler entre ses quatre murs?
Pourrais-je le savoir, moi l’ignare et l’inquiet?
Mais je l’entends vraiment qui parle, et sa parole
pénètre avec le jour, encore que bien vague:
“Comme le feu, l’amour n’établit sa clarté
que sur la faute et la beauté des bois en cendres…”
O ignorante
Quanto mais envelheço, mais cresço em ignorância,
quanto mais tenho vivido, menos possuo e menos domino.
Tudo o que tenho é um espaço que se alterna ora
com neve ora brilhante, mas sempre desabitado.
Onde está o donatário, o guia, o guardador?
Fico em meu quarto e permaneço ali calado
(o silêncio entra como servo para ordená-lo um pouco),
e espero que, uma a uma, as mentiras se retirem:
Que resta, pois, que resta a este moribundo
que o impede de morrer? Que força
o leva ainda a falar entre quatro paredes?
Quem me dera saber, eu o ignaro, eu o inquieto?
Mas é certo que o ouço dizer, e sua fala
me penetra com o dia, ainda que um tanto vaga:
“Como o fogo, o amor não estabelece a sua claridade
Senão sobre o erro e a beleza das cinzas nos tições…”
Poesia da Bélgica francófila
Sendo um país perfeitamente bilíngüe (francês-flamengo), torna-se difícil falar de uma poesia “belga”. A poesia escrita ou publicada em território da Bélgica independente, ou seja, a partir de 1830, pelos poetas francófilos foi inicialmente designada por “poesia belga de língua francesa”, depois por “poesia francesa da Bélgica”, para se chegar à fórmula atual que parece mais precisa: “poesia francófila da Bélgica”.
Tal poesia produziu dois nomes mundialmente conhecidos: Émile Verhaeren (1855-1916) e Maurice Maeterlinck (1862-1949). O primeiro, bastante traduzido pelos nossos poetas românticos, viu-se abandonado após o modernismo, retornando agora com a tradução de Cidades tentaculares, um de seus mais “atuantes” livros de poesia, feita por José Jeronymo Rivera (Ed. Thesaurus, Brasília, 1999). Maeterlinck, prêmio Nobel de Literatura de 1911, correu mundo com seu O Pássaro Azul, adaptado para o cinema por Walter Lang em 1940. No Brasil foi traduzido por ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade (Editora Delta, 1962). Em tempos mais próximos, Paul Nougé foi o mais importante dos surrealistas belgas, influenciado por Magritte; sua ambição era a de criar “objetos desconcertantes”, valendo-se para tanto de imagens desconexas, embora recusasse o automatismo.
Paul Nougé
(1895-1967)
Passage de midi
Le parfum de ce corps écartait les vêtements trop faibles et la clarté oblique de la chair achevait de dénuder la femme blanche mollement étendue.
Les cloisons de la chambre ne résistaient pas davantage et bien que l’on fût à l’instant de midi, les fenêtres s’emplirent soudain d’une épaisse nuit sucrée.
Les mains parlaient à la blancheur abandonnée que l’on savait délicieusement tendue de sang et les ventouses des yeux en gorgeaient la tête avide.
Enfin, la forte roue de l’ivresse entraîna cet univers nouveau qui
Retrouvait ainsi la marche liquide des premiers instants du monde.
A passagem do dia
O perfume de seu corpo desfazia as vestes por demais ligeiras e a claridade
oblíqua da carne acabava por desnudar a brancura da mulher levemente
reclinada.
As vedações do quarto também não resistiam e embora
fosse então em pleno meio-dia, as janelas se encheram de repente
de uma espessa noite açucarada.
As mãos falavam à brancura abandonada que se sabia
deliciosamente tensa de sangue e as ventosas dos olhos engoliam
a ávida cabeça.
Por fim, a forte roda da embriaguez arrastou esse universo novo
para retomar o curso líquido dos primeiros instantes do mundo.
A poesia do Canadá francês (Québec)
A poesia do Canadá francófilo (Québec) até os fins dos anos ’50 se manteve presa aos modelos franceses, principalmente aos simbolistas. A grande revelação começa com Claude Gauvreau (1925-1971), de linguagem revolucionária, que usa às vezes recursos semelhantes aos de E.E. Cummings. No fim da década, surge a revista Liberté, que porá em discussão os grandes temas do futuro quebequense: “Como repelir os ingleses sem se tornarem norte-americanos, à maneira dos Estados Unidos e sem, ao mesmo tempo, se tornarem franceses obedientes às regras psíquicas de uma França que já não seria necessário imitar?”. O movimento enseja a aparição de poetas com acentos “patrióticos” e inspirados nas belezas naturais do país, como é o caso de Paul-Marie Lapointe (*1929). Após um quarto de século, a poesia do Canadá francês “tem algo de importante a dizer, em sua busca de uma visão coerente do futuro”. Amostra dessa poesia: Paul Chamberland, que militou ativamente em prol da “libération du Québec”, nas página das revista Parti pris (1963-1968), e tendo presenciado os acontecimentos de maio de ‘68 em Paris, trouxe incorporadas as experiências dessa “nova cultura”.
Paul Chamberland
(*1939)
Terre Québec
Entre nous le Pays
les printemps étaient doux oui
doux saumâtres les printemps de mon pays
un lent malaise de charbon passait entre nos deux corps oui je t’aimais je souffrais les soleils étaient en prison un lent malaise de charbon gâchait l’aurore mire nos dents
tu te souviens
j’allais à tes lèvres comme on retourne à la source et toujours sur la piste muette s’abattait l’ombre blessé à mort
du seul passage de notre amour
ô toi et moi rives toujours désassemblées sur le deuil infini des docks
et l’exil au long cri d’oiseau noyé dans la flaque du petit matin
Terra de Québec
Entre nós o país
as primaveras eram suaves sim
suaves salobras primaveras de minha terra
uma lenta penúria de carvão passava entre os nossos corpos sim eu te amava eu sofria os sóis estavam presos uma lenta penúria de carvão diluía a aurora entre os nossos dentes
tu te lembras
eu ia aos teus lábios como quem volta à fonte e sempre sobre o rastro mudo caía a sombra
mortalmente ferida
da única passagem de nosso amor
ó tu e eu rios sempre divergentes sobre o luto infinito das docas
e o exílio dos longos gritos do pássaro afogado na poça da alvorada.
A África negra (a Négritude). Senegal
O movimento social denominado “Négritude” teve como principais representantes o senegalês Léopold Sédar Senghor, o martiniquense Aimé Césaire (1913-2008) e o guiano Léon-Gontran Damas (1912-1978), que reivindicavam, através da revista L’Étudiant noir uma identidade negra em oposição à assimilação cultural imposta pelo colonialismo francês. Criticado mais tarde como um “racismo anti-racista”, teve o respaldo intelectual e político de Jean-Paul Sartre (1905-1980), e sua base ideológica estimulou os movimentos de independência dos países africanos.
No prefácio que escreveu para a Antologia da nova poesia negra e malgaxe, organizada em 1948 por Senghor e na qual se reuniam poetas negros de expressão francesa, Sartre endossava-lhes a legitimidade internacional e acentuava as qualidades literárias, sociais e políticas de suas reivindicações. Senghor, além de poeta, distinguiu-se como político, exercendo vários cargos públicos, inclusive a presidência de seu país com reeleições sucessivas por vinte anos (1960-1980), e retirando-se do poder por vontade própria. Sua poesia é das mais expressivas como intérprete dos ideiais da negritude, mas contempla igualmente a meditação sobre o tempo, o amor e a alegria de ver realizadas as ambições de acesso ao universal. Conhecido em todo o mundo, teve no Brasil uma coletânea de seus poemas traduzidos por Gastão Jacinto Gomes (ed. Grifo, 1989).
Léopold Sédar Senghor
(1906-1991)
Prière aux masques
Masques! O Masques!
Masque noir masque rouge, vous masques blanc-et-noir
Masques aux quatre points d’où souffle l’Esprit
Je vous salue dans le silence,
Et pas toi le dernier, Ancêtre à tête de lion.
Vous gardez ce lieu forclos à tout rire de femme, à tout sourire qui se fane
Vous distillez cet air d’éternité où je respire l’air de mes Pères.
Masques aux visages sans masque, dépouillés de toute fossette comme de toute ride
Qui avez composé ce portrait, ce visage mien penché sur l’autel de papier blanc
À votre image, écoutez-moi!
Voici que meurt l’Afrique des empires – c’est l’agonie d’une princesse pitoyable
Et aussi l’Europe à qui nous sommes liés par le nombril.
Fixez vos yeux immuables sur vos enfants que l’on commande
Qui donnent leur vie comme le pauvre son dernier vêtement.
Que nous répondions présents à la renaissance du Monde
Ainsi le levain qui est nécessaire à la farine blanche.
Car qui apprendrait le rythme au monde défunt des machines et des canons?
Qui pouserait le cri de joie pour réveiller morts et orphelins à l’aurore?
Dites, qui rendrait la mémoire de vie à l’homme aux espoirs éventrés
Ils nous disent les hommes du coton du café de l’huile
Ils nous disent les hommes de la mort.
Nous sommes les hommes de la danse, dont les pieds reprennent vigueur en frappant le sol dur.
Oração às máscaras
Máscaras! Ó máscaras!
Máscara negra máscara vermelha, ó máscaras preto-e-branco
Máscaras nos quatro pontos de onde sopra o Espírito
Eu vos saúdo no silêncio,
E não a ti por último, Ancestral de cabeça de leão.
Vós guardais este lugar excluído a todo riso de mulher, a todo sorriso que se fana.
Destilais este ar de eternidade em que respiro o ar de meus Pais.
Máscaras de faces sem máscaras, despidas de quaisquer sinais bem como de quaisquer rugas.
Que compusestes este retrato, esta minha face pendida sobre o altar de papel branco
À vossa imagem! Ouvi-me!
Eis que morre a África dos impérios – agonia de uma princesa lamentável
E bem assim a Europa a que estamos ligados pelo umbigo.
Fixai os olhos imóveis sobre os vossos filhos a quem mandam
Que dêem suas vidas como os pobres suas últimas vestes.
Que respondamos presentes ao renascimento do Mundo,
Tal como o levedo que é necessário à farinha branca.
Pois quem aprenderia o ritmo do mundo defunto das máquinas e canhões?
Quem soltaria o brado de alegria para despertar os mortos e os órfãos à aurora?
Dizei, quem restituiria a memória de vida ao homem de esperanças destroçadas?
Dizem-nos os homens do algodão do café do azeite
Dizem-nos os homens da morte.
Nós somos os homens da dança, cujos pés readquirem vigor ao bater na terra dura.
Oriente Próximo. Egito
O Egito produziu um grande poeta de expressão francesa: Edmond Jabès. Nascido no Cairo em 1912, teve de deixar seu país no início da II Guerra, por causa de suas origens judaicas. Com a crise do Suez em 1956, radicou-se na França no ano seguinte e em 1967 tornou-se cidadão francês. Faleceu em Paris em 1991. Em torno de sua poesia criou-se um verdadeiro cult: é hoje considerado um dos grandes poetas da língua francesa. Sua obra foi toda traduzida para o inglês por Rosmarie Waldrop e a maior parte é encontrada em espanhol e italiano. Tem um livro editado em Portugal. No Brasil, há traduções esparsas incluídas por Mário Laranjeira em Poetas da França Hoje (1945-1995), editado pela EDUSP. Outro de seus cultores brasileiros é Caio Meira, que o divulga na Internet. Jabès seria um caso semelhante ao de Apollinaire, Milosz e Cendrars não fosse o fato de sua poesia manter seus vínculos com sua terra natal: o deserto é seu tema recorrente, ao qual compara o homem em busca de si mesmo.
Edmond Jabès
(1912-1991)
L’eau
Avant, il y a l’eau.
Après, il y a l’eau;
durant, toujours durant.
– L’eau du lac?
– L’eau de la rivière?
– L’eau de la mer?
Jamais l’eau sur l’eau.
Jamais l’eau pour l’eau;
mais l’eau où il n’y a plus d’eau;
mais l’eau dans la mémoire morte de l’eau.
Vivre dans la mort vive
entre le souvenir et l’oubli de l’eau,
entre
la soif et la soif.
L’eau entre
Cérémonie.
L’eau s’installe
et coule:
Fertilité.
Toujours l’eau pour l’eau.
Toujours l’eau sur l’eau.
Abondance.
– Le désert fut ma terre.
Le désert est mon voyage, mon errance.
Toujours entre deux horizons;
entre horizon et
appels d’horizons.
Outre-frontière.
Le sable brille comme l’eau
dans la soif inextinguible.
Tourment que la nuit endort.
Nos pas font gicler la soif.
Absence.
– L’eau du lac?
– L’eau de la rivière?
– L’eau de la mer?
Viendra, bientôt, la pluie
pour laver l’âme des morts.
Laissez passer les ombres brûlées,
les matins aux arbres sacrifiés.
Fumée. Fumée.
A água
Antes, a água.
Depois, a água;
durante, sempre durante.
– Água do lago?
– Água do rio?
– Água do mar?
Nunca água sobre água.
Jamais água pela água;
mas água onde não há mais água;
mas água na memória morta da água.
Viver na morte viva
Entre a lembrança e o esquecimento da água,
Entre
A sede e a sede.
Água entre
Cerimônias.
A água se instala
e corre:
Fertilidade.
Sempre a água pela água.
Sempre água sobre água.
Abundância.
– O deserto foi minha terra.
O deserto é minha viagem, minha errância.
Sempre entre dois horizontes;
entre o horizonte e
os apelos de horizontes.
Além-fronteiras.
A areia brilha como água
Na sede inextinguível.
Tormento que a noite adormece.
Nossos passos fazem esguichar a sede.
Ausência.
– Água do lago?
– Água do rio?
– Água do mar?
Em breve há de vir a chuva
para lavar a alma dos mortos.
Deixai passar as sombras queimadas,
as manhãs das árvores sacrificadas.
Fumaça. Fumaça.
* * *
Chanson de l’étranger
Je suis à la recherche d’un homme que je ne connais pas,
qui jamais ne fut tant moi-même
que depuis que je le cherche. A-t-il mes yeux, mes mains
et toutes ces pensées pareilles
aux épaves de ce temps?
Saison des mille naufrages,
la mer cesse d’être la mer,
devenue l’eau glacée des tombes.
Mais, plus loin, qui sait plus loin?
Une fillette chante à reculons et règne la nuit sur les arbres,
bergère au milieu des moutons.
Arrachez la soif au grain de sel
qu’aucune boisson ne désaltère.
Avec les pierres, un monde se ronge
d’être, comme moi, de nulle part.
Canção do estrangeiro
Estou à procura de um homem que não conheço,
que nunca foi tão eu-mesmo
quanto depois que o procuro. Tem meus olhos, minhas mãos
e todos os pensamentos iguais
aos destroços do tempo?
Época de mil naufrágios,
o mar deixa de ser mar,
torna-se a água gelada dos túmulos.
Mas, mais tarde, quem sabe mais tarde?
Uma menina canta recuando e a noite reina sobre as árvores,
pastora em meio das ovelhas.
Arrancai ao grão de sal a sede
que bebida alguma satisfaz.
Com as pedras, um mundo se desgasta
de ser, como eu, de parte alguma.
Chansons pour le repas de l’ogre (1943-1945)
* * *
Aucune clôture n’a de sens dans le désert, dans le vide aucune
pensée, aucun livre qui est clôture de toute pensé.
Parler du livre du désert est aussi ridicule que de parler du livre
du rien. Et pourtant, c’est sur ce rien que j’ai édifié mes livres.
Du sable, du sable, du sable à l’infini!
S’il y a un livre de la mort, il ne peut s’agir que de la mort mise
en mots – comme on met à sac, ô deux fois sacrifiée du livre.
C’est à ces limites infixées de l’esprit, à cette frontière dévastée,
mais infranchissable; que la ressemblance voit sa puissance dénoncée.
Nenhuma vedação faz sentido no deserto, no vácuo pensamento
algum, nenhum livro que seja a vedação do pensamento.
Falar do livro do deserto é tão ridículo como falar do livro
do nada. Contudo, é sobre esse nada que edifiquei meus livros.
Areia, areia, areia ao infinito!
Se houver um livro da morte, só pode ser da morte posta
em palavras – como se saqueia – ó duplo sacrifício do livro.
É nestes limites não fixados do espírito, nessa fronteira devastada,
mas intransponível, que a semelhança vê seu poder denunciado.
Aqui se extingue a linguagem.
(Le livre des Ressemblances)
* * *
Chanson du dernier enfant juif
Mon père est pendu à l’étoile,
ma mère glisse avec le fleuve,
ma mère luit,
mon père est sourd,
dans la nuit qui me renie,
dans le jour qui me détruit.
La pierre est légère.
Le pain ressemble à l’oiseau
et je le regarde voler.
Le sang est sur mes joues.
Mes dents cherchent une bouche moins vide
dans la terre ou dans l’eau,
dans le feu.
Le monde est rouge.
Toutes les grilles sont des lances.
Les cavaliers morts galopent toujours
dans mon sommeil et dans mes yeux.
Sur le corps ravagé du jardin perdu
fleurit une rose, fleurit une main
de rose que je ne serrerai plus.
Les cavaliers de la mort m’emportent.
Je suis né pour les aimer.
Canção do último menino judeu
Meu pai se enforcou na estrela,
minha mãe escorre com o rio,
minha mãe brilha,
meu pai é surdo,
na noite que me nega,
no dia que me destrói.
A pedra é leve.
O pão se assemelha ao pássaro
e eu o espreito a voar.
O sangue me cora nas faces.
Meus dentes buscam uma boca menos vazia
na terra ou na água,
no fogo.
O mundo é vermelho.
Todas as grades são lanças.
Os cavaleiros mortos galopam sempre
no meu sono e nos meus olhos.
No corpo destroçado do jardim perdido
uma rosa floriu, floriu a mão
da rosa que nunca apertarei.
Os cavaleiros da morte me levam.
Nasci para os amar.
Ivo Barroso é poeta, ensaísta e tradutor. Traduziu mais de quarenta livros, entre eles vários de poesia, como os Sonetos, de Shakespeare, Os Gatos de T. S. Eliot, o Diário Póstumo de Eugenio Montale e Hipóteses de Amor de Annalisa Cima.