Anatomia do poema

por Pedro Sette Câmara

Salmo 38 (Heb. 39)

Trad. pe. Matos Soares (3a ed. Edições Paulinas)

2 Eu disse: Velarei sobre o meu proceder,

para não pecar com a minha língua.

Pus guarda à minha boca,

quando o pecador se apresentava contra mim.

3 Emudeci e humilhei-me, e nem mesmo falei de coisas boas,

e (com isto) a minha dor renovou-se.

4 O meu coração inflamou-se em mim;

e na minha meditação acendiam-se chamas de fogo.

5 Falei com a minha língua:

Faze-me conhecer, Senhor, o meu fim,

e qual é o número dos meus dias,

para que eu saiba o que me resta.

6 Eis que puseste meus dias em medida,

e o meu ser é como nada diante de ti.

Ah! sim, e é pura vaidade todo o homem que vive.

7 Sim, o homem passa como uma sombra,

é em vão que se afadiga.

Entesoura, e não sabe por quem junta aquelas coisas.

8 E agora, qual é a minha esperança?

Porventura não é o Senhor?

Em ti estão todos os meus bens.

9 Livra-me de todas as minhas iniqüidades;

tu me fizeste um objeto de opróbrio para o insensato.

10 Emudeci e não abri a minha boca,

porque tu o fizeste.

11 Afasta de mim os teus flagelos.

12 Sob a força da tua mão eu desfaleci, quando me repreendeste;

tu, por causa da iniqüidade, castigaste o homem,

e fizeste que a sua vida se consumisse como aranha.

Sim, é em vão que todo homem se inquieta.

13 Ouve, Senhor, minha oração e minha súplica,

atende às minhas lágrimas.

Não te cales, porque eu sou diante de ti um adventício,

e um peregrino como todos os meus pais.

14 Deixa que tome algum alento,

antes que parta e deixe de existir.

No poema “Under Which Lyre”, W.H. Auden fazia muito bem em advertir contra aqueles que liam a Bíblia meramente para apreciar-lhe o estilo, mas ele certamente se referia a todos aqueles que reduzem o valor de qualquer texto literário a seu aspecto formal. No entanto, Auden não discordaria de que há um valor formal em certas traduções da Bíblia, e ninguém ousaria dizer que o trabalho de um Myles Coverdale, preservado no Book of Common Prayeranglicano, e muito menos a tradução King James da Bíblia, não faz parte do cânon da língua inglesa. Não digo que os textos sacros estejam ausentes do cânon da língua portuguesa por mero sentimento anti-religioso; na verdade, parece que ainda é preciso estender o cânon a todas as grandes traduções de quaisquer textos.

A versão do Salmo 38 feita pelo pe. Matos Soares foi publicada em 1933, entre os dois primeiros livros de Drummond. Não há como saber se o pe. Matos se interessava por discussões a respeito de verso livre ou polimétrico, mas o fato é que, naquela época, e ainda mais considerando a lentidão de tudo no Brasil, o verso livre ainda era coisa de poetas intelectuais. Ele pode estar mais identificado com a idéia mesma de poesia no imaginário comum de hoje, mas nos anos 1930 ainda havia muitas trovinhas e formas populares de verso. Ainda assim, essa tradução do pe. Matos pode nos ensinar muita coisa sobre o “verso livre”, sempre com a ressalva feita por T.S. Eliot: “não existe ‘verso livre’ para quem quer fazer um bom trabalho”. E, antes que me acusem de originalidade, recordo que Walt Whitman (bom para quem gosta) já dizia basear seu verso livre na Bíblia.

“Eu disse: Velarei sobre o meu proceder, / para não pecar com a minha língua”. Nada mais adequado a quem pretende se dedicar a atividades literárias em geral. Cristo ainda disse que prestaremos conta de cada palavra. Pode um poema justificar-se no Dia do Juízo? Ou será ele obrigatoriamente “vaidade”, para repetir a palavra que sempre reaparece na Bíblia? Podemos crer, porém, que os Salmos já passaram por essa prova, e a nós cabe absorvê-los em forma e conteúdo. Se o conteúdo aqui nos recorda essa exigência temível, a forma, por sua vez, não apresenta nada tão fora do padrão: não fosse a sílaba forte na segunda posição do segundo verso (“eu DISse”) e teríamos um alexandrino castiço. Mas o terceiro é um decassílabo com cesura na quinta sílaba, logo seguido de um monossílabo fraco, a preposição “com”, e o verso fica patinando até a próxima sílaba mais forte. Por que não se dividiu o verso, então? Para preservar a forte modalização de “com a minha língua”, a fim de não repetir uma mensagem que, ainda que seja verdadeira – “não pecar” –, é, no contexto bíblico, trivial. Essa ênfase é confirmada ainda pelo fato de que “os meus caminhos” é uma forma mais genérica do que “a minha língua”.

Todo esse cuidado não impede o salmista de ir adiante, nem o impede de pedir que Deus preste atenção em suas palavras e as receba bem: “Ouve, Senhor, minha oração e minha súplica, / atende às minhas lágrimas”. São dois versos, de doze e de seis sílabas, para dizer praticamente a mesma coisa, os dois terminados em proparoxítonas, que parecem braços que se estendem. Mas o mais interessante é o pedido seguinte, “não te cales”. Os dois versos do versículo 10 mostram que o salmista imitou Deus quando Ele se calou. Agora, o salmista espera, com suas palavras, ouvir palavras de Deus, porque, pedindo “alento”, também espera que não seja mera vaidade aquilo que diz.

***

Provérbios 1, 8-19,

João Ferreira de Almeida

8 Filho meu, ouve a instrução de teu pai, e não deixes o ensino de tua mãe.

9 Porque eles serão uma grinalda de graça para a tua cabeça, e colares para o teu pescoço.

10 Filho meu, se os pecadores te quiserem seduzir, não consintas.

11 Se disserem: Vem conosco; embosquemo-nos para derramar sangue; espreitemos sem razão o inocente;

12 traguemo-los vivos, como o Seol, e inteiros como os que descem à cova;

13 acharemos toda sorte de bens preciosos; encheremos as nossas casas de despojos;

14 lançarás a tua sorte entre nós; teremos todos uma só bolsa;

15 filho meu, não andes no caminho com eles; guarda da sua vereda o teu pé,

16 porque os seus pés correm para o mal, e eles se apressam a derramar sangue.

17 Pois debalde se estende a rede à vista de qualquer ave.

18 Mas estes se põem em emboscadas contra o seu próprio sangue, e as suas próprias vidas espreitam.

19 Tais são as veredas de todo aquele que se entrega à cobiça; ela tira a vida dos que a possuem.

Ezra Pound dizia que escrever em verso livre era escrever seguindo a frase musical, e não um metrônomo; Otto Maria Carpeaux disse que os sonetos de Rilke eram na verdade verso livre. Certo é que a opção pelo verso livre tem o potencial de enfatizar aquilo que se diz mais do que as formas fixas: mesmo nas melhores partes dos Lusíadas não é difícil ser hipnotizado pelo ritmo e avançar algumas páginas por puro automatismo. Por isso é difícil crer que um tradutor da Bíblia pudesse desejar esse efeito no leitor. Auden, já citado, também dizia que o centro da obra de arte era “assunto, assunto, assunto”. Se isso vale para um poema “profano”, por que não para um poema bíblico?

A escolha do verso livre por João Ferreira de Almeida certamente reflete essa preocupação. Sua estratégia foi converter cada versículo em um longo verso, e aqui não há verso que não termine sem um sinal de pontuação. Usando a diferença entre esses sinais, Almeida consegue estabelecer duas vozes distintas: a do pai que exorta o filho diretamente, e a voz que o pai atribui aos assassinos cobiçosos. Quando o pai se dirige diretamente ao filho, os versos terminam em ponto final. Um deles, porém, termina numa vírgula simples. O ponto final mostra a pausa e a reflexão na voz e, como se poderia esperar, a força da exortação; cada ponto final vale por um reforço, um “não faça isso mesmo”. A vírgula simples, por sua vez, explicita o encadeamento e a proximidade. Mesmo no meio dos versos, a opção pela cesura via vírgula simples enfatiza a identidade entre as exortações. No versículo 8, se “a instrução de teu pai” e “o ensino de tua mãe” estivessem separados por ponto e vírgula, teríamos a impressão de que essas eram coisas muito distintas, ou que eram conselhos de natureza distinta. Mas é essa vírgula, sozinha, que nos faz entender que as exortações que se seguirão vêm tanto do pai quanto da mãe.

Apenas o discurso que o pai atribui aos malfeitores é quase integralmente dividido por ponto e vírgula. A pausa mais forte no meio do discurso explicita aspectos distintos simultaneamente. Primeiro, apesar de os malfeitores serem vários, não necessariamente falam em uníssono. Um diz: “vem conosco”. Outro completa: “embosquemo-nos para derramar sangue”. Ainda que falem como turba, as vozes podem estar individualizadas, dando a impressão de que são vozes diferentes. É razoável supor que o pai saiba que esses convites não vêm necessariamente todos de uma vez, como se o filho fosse encontrar fisicamente essa turba. Ferreira poderia, é verdade, ter usado o ponto final para distinguir as vozes, mas o importante é deixar claro que essa distinção é mais aparente do que qualquer coisa. Segundo, o ponto-e-vírgula enfatiza a vertigem assassina desse discurso. Enquanto o pai fala pausadamente, as vozes na turba vão-se atropelando umas às outras, como num transe coletivo. O distanciamento que existe necessariamente na representação que o pai faz desses convites é que permite enxergar neles essa unidade.

Contudo, há no texto uma profunda ironia. Será realmente necessário que um pai exorte seu filho tão diretamente a não tomar parte numa gangue de assassinos e ladrões? Fora de contexto, a recomendação parece tão óbvia que se torna inócua. Recuperando o contexto, entendemos que o pai exorta o filho a não aderir às religiões pagãs, em que inocentes são sacrificados como bodes expiatórios: em vez de cada um assumir as próprias culpas, e dizer “sou ladrão e assassino”, e o roubo e o assassinato são a própria lei.

***

Isaías 29, 1-7,

Bíblia da Ave-Maria

1 Ai de Ariel, ai de Ariel,

a cidade em que Davi acampou!

Ajuntai um ano a outro;

que se complete um ciclo de festas,

2 e cercarei Ariel,

e haverá prantos e gemidos;

e tu te tornarás para mim como um ariel.

3 Acamparei contra ti como Davi,

cercar-te-ei de acampamentos

e levantarei trincheiras contra ti.

4 Falarás baixinho, da terra;

tua voz sufocada subirá da poeira

(tua voz sairá da terra como a de um espectro,

tua palavra se elevará da poeira como um ganido).

5 A multidão de teus inimigos será como a poeira fina;

a multidão de teus soldados será como a palha, que voa,

pois, de repente, 6 serás visitada pelo Senhor dos exércitos

com forte trovão, tremor de terra e estrondos,

tempestade, furacão e chamas de fogo devorador.

7 Como se dissipa um sonho, uma visão noturna,

assim se desvanecerá a multidão das nações que atacam Ariel,

os acampamentos e as trincheiras daqueles que a sitiam.

O tradutor da Bíblia da Ave-Maria achou o ritmo desta profecia para Ariel (um dos nomes de Jerusalém; mas “Ariel” também significa “leão de Deus”, e esse é o sentido da ocorrência em minúscula) tão precioso que, ao contrário dos demais tradutores, não viu problema em um versículo (6) começar bem no meio de um dos versos. Não é para menos. O anônimo tradutor merece crédito por ter recriado o texto de Isaías de forma a apresentar-nos uma verdadeira irrupção de palavras; o som e o significado se unem para capturar nossa atenção.

É verdade que o ditongo decrescente em Ariel (afinal, falamos como se fosse “ariéu”) contribui para a sensação de vertigem. Mas também é verdade que o tradutor optou por deixar a palavra “Ariel” terminando todos os quatro versos em que ela aparece. Se na sintaxe o que aparece no início é o que tem mais destaque, na sonoridade do poema é a última sílaba tônica de cada verso que mais contribui para defini-lo, o que, por sua vez, dá um peso especial à palavra que a contém (e aqui podemos ter esbarrado em mais uma das diferenças entre poesia e prosa). Nosso tradutor anônimo, bem ciente disso, provavelmente usou esse critério para cortar os versos: basta ver que, no trecho, há um evidente esforço para que ao menos as vogais ou o ditongo dessas tônicas finais rimem, como em acampOU / OUtro, DaVI / TI. A rima também pode ser de vogal oral com nasal, como gaNIdo / FIna, em que há um interessante contraste: o “i” que segue a consoante nasal não se sonoriza, enquanto que o “i” que é seguido pela mesma consoante fica sonorizado. Uns podem achar que isto é acaso; outros podem pensar em João Cabral de Melo Neto.

Há ainda o uso da rima interna para reforçar imagens nos excelentes “A multidão de teus inimigos será como a poeira fina; / a multidão de teus soldados será como a palha, que voa”. No primeiro, os is dos “inimigos” são ecoados pela sílaba final do verso, “fi”. No segundo, o a da sílaba tônica de “soldados” é ecoado pelo a da sílaba tônica de “palha”. (É irresistível observar que um poeta contemporâneo barato, com seu amor incansável pelo trocadilho, sentiria ganas de emendar o trecho para “palha, que se espalha”, sem perceber que essa sugestão seria digna de um pentelho no espelho). A “poeira fina”, encerrando o verso, é insidiosa, penetra por toda parte. A “palha” não termina o verso, abrindo espaço para uma pequena oração explicativa: “que voa”, fazendo com que o a forte e aberto de “palha” seja diluído pelo hiato de vogais fechadas do verbo final.

Estratégias semelhantes já tinham sido usadas nos versos anteriores. Em “tua voz sufocada subirá da poeira”, as vogais tônicas abertas são literalmente sufocadas pelo fechamento da vogal tônica final (lembrando que falamos aquele “eira” como “êra”, assim como falamos “bêjo” no lugar de “beijo”), e o recurso sonoro acaba por enfatizar mais o sufocamento da voz mais do que o fato de ela subir. Também em “tua palavra se elevará da poeira como um ganido”, a vogal final é mais alta do que as anteriores, marcando tanto a elevação quanto o aspecto de ganido.

Outro aspecto digno de ser mencionado, pois contribui muito para o alto tom de voz com que o poema é dito, é a quantidade de ditongos. Uns de Ariel; outros de verbos (“ajuntai”, “cercarei”), outros de nomes (“poeira”), isso para não falar dos dois “ai”(s) logo no primeiro verso. Logo imaginamos alguém como que estufando o peito para liberar o ar desses longos encontros vocálicos – talvez com a voz daquele que clama no deserto…

***

Jó 38, 2-18

Bíblia de Jerusalém

2 Quem é esse que obscurece meus desígnios

com palavras sem sentido?

3 Cinge-te os rins, como um herói,

vou interrogar-te e tu me responderás.

4 Onde estavas, quando lancei os fundamentos da terra?

Dize-me, se é que sabes tanto.

5 Quem lhe fixou as dimensões? – se o sabes – ,

ou quem estendeu sobre ela a régua?

6 Onde se encaixam suas bases

ou quem assentou sua pedra angular

7 entre as aclamações dos astros da manhã

e o aplauso de todos os filhos de Deus?

8 Quem fechou com portas o mar,

quando irrompeu jorrando do seio materno;

9 quando lhe dei nuvens como vestidos

e espessas névoas como cueiros;

10 quando lhe impus os limites

e lhe firmei porta e ferrolho,

11 e disse: “Até aqui chegarás e não passarás:

aqui se quebrará a soberba de tuas vagas”?

12 Alguma vez deste ordens à manhã,

ou indicaste à aurora um lugar,

13 para agarrar as bordas da terra

e sacudir dela os ímpios?

14 Transforma-se como argila debaixo do sinete,

e tinge-se como um vestido.

15 Ele retira a luz aos ímpios

e quebra o braço rebelde.

16 Entraste pelas fontes do mar,

ou passeaste pelo fundo do abismo?

17 Foram-te indicadas as portas da Morte,

ou viste os porteiros da terra da Sombra?

18 Examinaste a extensão da terra?

Conta-me, se sabes tudo isso.

Se Walt Whitman tirou mesmo seu verso livre da tradução King James da Bíblia, é muito irônico pensar que todos os praticantes contemporâneos do verso livre, que fustigam contra a “tradição” e o “conservadorismo” em nome de uma suposta “liberdade” da poesia, devem ao menos em parte sua existência àquilo que existe de mais tradicional na cultura inglesa. A hybris a serviço do establishment é mais uma demonstração de que ao menos esse diabo é, sob um certo aspecto, o servo de Deus. E esse certo aspecto é, obviamente, que o contraste entre um verso “livre” e um verso tradicional nos levam a questionar a ambos e a voltar à origem das coisas. Quando digo “nos levam”, penso, é claro, naqueles que entendem que uma transgressão é apenas o passo inicial de um ciclo, não podendo ser tomada pelo ciclo inteiro. A transgressão é a ilusão de um novo começo absoluto, de que um velho mundo será jogado fora, e um novo mundo será instaurado. O golpe do fracasso do novo mundo, a percepção de sua natureza ilusória e o conseqüente reajuste do indivíduo ao mundo estabelecido, iniciando a famosa “maturidade”, correspondem a uma visão mais completa do ciclo que permanece como parâmetro tácito da biografia do pecador.

Essa introdução a respeito do verso livre e da transgressão tem um paralelo com o conteúdo do poema. Também há uma ironia em dizer isso como comentário a um trecho em que Deus se dirige a Jó, um inocente. Mas Jó ainda é humano, e por isso é que Deus vai lembrá-lo: você não é um começo de tudo. Você não criou o mundo. Igualmente, o trecho pode dizer aos cultores da hybris e do verso livre de hoje em dia: vocês acham que inventaram isso, mas isso já estava nas traduções da Bíblia há séculos, e feito com verdadeira arte, areté (do grego: excelência, virtude, a mesma raiz da palavra “aristocrático”) mesmo, coisa que vocês confundem com sua hybris.

Pois qual seria o propósito do verso livre, senão enfatizar ainda mais a melodia das palavras e o significado daquilo que se diz? Até mesmo essa atividade requer controle e destreza.

Aqui, as falas de Deus podem ser lidas com respeito absoluto à pontuação e à quebra dos versos. Na verdade, lê-las de qualquer outro modo faria com que a veemência da invectiva se perdesse. Veemência que é obviamente irônica, seguindo a definição dada por Roger Scruton em seu ensaio “Forgiveness and Irony”: uma capacidade de falar de si mesmo na terceira pessoa. Não só Deus fala assim de Si próprio, como ainda convida Jó à mesma ironia. “Foi você quem fez isso? Ah, não? Pois é”. Igualmente, os que vêem no verso livre a origem de uma nova poesia precisam ser recordados de que a Bíblia King James e até a tradução do pe. Antonio Pereira de Figueiredo já a praticavam… E que é difícil encontrar uma expressão sua contemporânea com mais qualidade do que a de trechos como esse da Bíblia de Jerusalém. Podemos imaginar os mesmos tradutores de antigamente levantando-se contra os sempiternos transgressores emperrados em sua transgressão para perguntar: “Quem é esse que obscurece meus desígnios / com palavras sem sentido?”

O que falta ao verso livre contemporâneo, para que recupere o vigor da fonte original, que está nas coisas mesmas e não no anseio de transgredir, é que “passeie pelo fundo do abismo” e que lhe sejam “indicadas as portas da Morte”. Essas portas farão as acusações contra o suposto tradicionalismo voltarem-se contra a hybris que as anima. Devidamente morto, esse verso experimentará o milagre da ressurreição.

***

Das profundezas eu clamo

Oração das Horas. Vozes, Paulinas, Paulos, Ave-Maria, 2004

Das profundezas eu clamo a vós, Senhor,

escutai a minha voz!

Vossos ouvidos estejam bem atentos

ao clamor da minha prece!

Se levardes em conta nossas faltas,

quem haverá de subsistir?

Mas em vós se encontra o perdão,

eu vos temo e em vós espero.

No Senhor ponho a minha esperança,

espero em sua palavra.

A minh’alma espera no Senhor

mais que o vigia pela aurora.

Espere Israel pelo Senhor

mais que o vigia pela aurora!

Pois no Senhor se encontra toda graça

e copiosa redenção.

Ele vem libertar a Israel

de toda a sua culpa.

Desde a aurora até a noite

no Senhor ponho a esperança.

Ao nome de Jesus nosso Senhor

se dobre reverente todo joelho

seja nos céus, seja na terra ou nos abismos.

No mundo anglófono, aqui e ali (como no poema LV de The Triumph of Love, de Geoffrey Hill), a expressão “eloqüência simples” (plain eloquence) aparece para designar um ideal de linguagem religiosa. De fato, tanto lá como cá a melhor linguagem religiosa tem essa virtude. Sua simplicidade obriga o leitor ou ouvinte a mudar a si mesmo para absorvê-la. Como diz Rilke (na versão de Manuel Bandeira) ao fim do “Torso arcaico de Apolo”, “força é mudares de vida”. É fácil descartar essa simplicidade; tão fácil quanto é grande o nosso amor por sutilezas que, sentimos, são mais adequadas à nossa fulgurante inteligência. As adaptações dos Salmos que fazem parte da Oração das horas primam por essa simplicidade. Elas representam uma negociação entre o texto original, as necessidades práticas do contexto em que se fará a oração, e algo que pode ser chamado de “o espírito da língua de chegada”. O resultado é algo por que podemos passar em branco – não sem denunciar a nossa superficialidade, ou a dureza de nossos corações, insensíveis à eloqüência simples.

O centro do poema, ou sua premissa, parece estar no primeiro de seus três versos decassílabos, este logo seguido por um octossílabo: “Se levardes em conta nossas faltas, / quem haverá de subsistir?” Na missa, ouvimos esses versos ecoados em ne respicias peccata nostra, sed fidem Ecclesiae tuae: “não olheis os nossos pecados, mas a fé da tua Igreja”, e também quando Hamlet pergunta: Use every man after his desert, and who shall ’scape whipping?, “Considere cada um por seus méritos, e quem escapa do chicote?”. A partir daí nascem as súplicas seguintes. A hybrisdenunciada por Deus no Livro de Jó me levou ao abismo; não posso sair de lá sozinho. “A minh’alma espera no Senhor / mais que o vigia pela aurora”. Este último verso chega a ser repetido; a anáfora, um dos recursos mais antigos da poesia, vem para ressaltar essa que é também a posição de miséria em que o homem se encontra desde o pecado original.

A “eloqüência simples” também é ressaltada pelas frases curtas. Podemos entender que Deus queira se valer de longos períodos para colocar Jó em seu lugar. Mas o fiel não deve se dirigir ao Deus onisciente com um vasto palavrório. O autor dos Relatos de um peregrino russo explica que Deus não gosta que se aproximem dele nem “como escravos”, abdicando das responsabilidades próprias, nem “como mercadores”, como se fosse possível fazer uma troca com quem dá tudo de graça. Deus quer que se aproximem dele como filhos. Ao fiel que recita o poema pedindo perdão e socorro cabe, portanto, uma linguagem singela e humilde, mas também articulada e vívida. Como se pediria ajuda a um pai? Um modelo para este sentimento está nas palavras do filho pródigo, que aceita a responsabilidade por ter-se colocado nas “profundezas”, e delas clama por perdão.

Além da brevidade, a simplicidade é marcada pelas fórmulas diretas e, para voltar a Pound, “carregadas de significado”. Haveria várias maneiras de dizer que “Ele vem libertar a Israel / de toda a sua culpa”, talvez mais adequadas a inteligências afeitas à complexidade. A afirmação direta, não-oblíqua, obriga a inteligência a humilhar-se; em vez de expandir-se para preencher os vazios, ela precisa recolher-se e concentrar-se. Quem é Ele? O que é libertar? Quem é Israel? Que culpa é essa? Perceber tudo isso diretamente é como contemplar a aurora pela qual o fiel espera. Ela pode ser percebida aos poucos. Porém, quando chega, é plena e revigorante como o perdão pelo qual se esperava.

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