Antropologia rodrigueana

por Maurício D. Perez

O escritor e jornalista Nelson Rodrigues entrou nos anos 1960 com 48 anos. Segundo ele mesmo dizia, tinha superado o defeito exclusivo dos jovens: a imaturidade.

E talvez por isso teve a lucidez de compreender que o Brasil caminhava pelos caminhos do Taiguara, que cantava então a plenos pulmões: “nós estamos inventando a vida, / como se antes nada existisse, / porque nascemos hoje do nada, / porque nascemos hoje para o amor”. E teve também a possibilidade de estampar a fina flor da crítica a essa visão de mundo nas suas colunas dos jornais cariocas Correio da Manhã e O Globo. Escreveu sobre tudo e sobre todos, sem nenhum pudor: arte, política, ideologia, Brasil, futebol, Igreja, mulher, elites, amenidades… Tinha a seu serviço um estilo peculiar, contundente, sarcástico, trágico e bem humorado. Abominava a literatice e tinha o raro dom de elucidar aspectos bastante complexos da vida humana com um vocabulário de padaria.

Para os que gostam de pressupostos metodológicos, Nelson usava e abusava do método tradicional da publicidade que é a repetição. “Sou o colunista que se repete com um límpido impudor. Não tenho o menor escrúpulo em usar duzentas, trezentas vezes a mesma metáfora. Eis o que me pergunto: – por que não insistir na imagem bem sucedida?” Estava convencido da eficácia desse método para transmitir suas idéias e, de fato, expressões como “óbvio ululante”, “sol de derreter catedrais”, “toda a unanimidade é burra”, entre outras, ficaram marcadas na memória popular. Contudo, talvez não se tenha percebido que, se os anéis ficaram, os dedos se foram: a mensagem por trás desses bordões caiu em pleno ostracismo.

A maior parte dos trabalhos sobre Nelson gira em torno das suas peças para teatro. Com o auxílio do cinema nacional, ele se tornou para o brasileiro médio sinônimo de taras sexuais. No campo da academia e das artes, há um verdadeiro gozo por ele ter retratado “as contradições e hipocrisias da burguesia nacional”. Afinal, o objetivo máximo da arte e da cultura no nosso país passou a ser esse: desmascarar a burguesia, desnudar os podres da vida familiar, dos costumes e do pensamento conservador. Assim pensa, por exemplo, José Celso Martinez: é preciso instalar a esculhambação, destruir o que está aí, para reconstruir tudo do zero. A esculhambação, fazem-na há quarenta anos, mas ainda não há vestígios do que será nem de como será a tal reconstrução.

Para um público medianamente instruído, Nelson também é o poeta do futebol. Suas crônicas geniais sobre o esporte divertem, descansam e são um ponto fora da curva no jornalismo esportivo. Porém, mesmo com as sucessivas reedições de suas crônicas, o pensamento anti-establishment rodrigueano continua ignorado. Isto ocorre não apenas, nem principalmente, por ele ter sido anti-comunista, ter feito troça da esquerda festiva brasileira, apoiado o regime militar (“os militares salvaram o Brasil”) e se autoproclamado o último reacionário, mas principalmente pela sua antropologia.

Como quer que seja, é preciso admitir que é algo mais do que divertido poder falar de uma “antropologia rodrigueana” e poder citar as posições de Nelson sobre o comportamento humano. Pois, neste caso, trata-se de um autor insuspeito, à prova de qualquer moralismo barato.

Espanto e indignação

O ponto de partida de Nelson é o mesmo de todo o pensamento filosófico: a admiração, o espanto, o assombro, o sobressalto. “Nós vivemos numa época cínica. Ninguém se espanta. E, no entanto, o espanto é um dom, uma graça. Como se pode ter vida moral sem muitíssimos espantos?” De fato, o espanto exige conteúdo interno. Exige uma membrana não totalmente permeável, que permita filtrar tudo o que é vaporizado no ambiente. E exige sinceridade, e depois firmeza, para agir de modo conseqüente. “É preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem uma face linda e outra hedionda. O ser humano só se salvará se, ao passar a mão no rosto, reconhecer a própria hediondez”.

Partindo do espanto, Nelson se entristece ao se deparar com a degradação a que o ser humano é submetido quando compra soluções fáceis de ideologias zero gordura trans. Uma degradação que não é meramente externa e acidental, mas constitutiva, entranhada, moral. “O ser humano é o único que se falsifica. Um tigre há de ser tigre eternamente. Nunca vi um marreco que virasse outra coisa. Mas o ser humano pode, sim, desumanizar-se. Ele se falsifica e, ao mesmo tempo, falsifica o mundo”. E isso, para ele, manifesta-se essencialmente na capacidade de esquecer, de não sofrer e de não saber amar.

Um dos pontos também instigantes da antropologia rodrigueana é a ascensão do idiota:

“[Até o século XIX,] o idiota era apenas o idiota e como tal se comportava. E o primeiro a saber-se idiota era o próprio idiota. Não tinha ilusões. Julgando-se um inepto nato e hereditário, jamais se atreveu a mover uma palha, ou tirar uma cadeira do lugar. Em 50, 100 ou 200 mil anos, nunca um idiota ousou questionar os valores da vida. Simplesmente, não pensava. Os ‘melhores’ pensavam por ele, sentiam por ele, decidiam por ele. Deve-se a Marx o formidável despertar dos idiotas. Estes descobriram que são em maior número e sentiram a embriaguez da onipotência numérica. E, então, aquele sujeito que, há 500 mil anos, limitava-se a babar na gravata, passou a existir socialmente, economicamente, politicamente, culturalmente etc. Houve, em toda parte, a explosão triunfal dos idiotas” (O reacionário [1], pág. 456).

Há aqui uma fina sintonia com os ensaios sobre a Rebelião das massas de Ortega y Gasset e A idéia de universidade e as idéias das classes médias de Otto Maria Carpeaux. Todos os três enxergaram a pasteurização da sociedade e todos os três reconheceram que, onde esta pasteurização é mais acentuada, é precisamente entre os intelectuais. Seja por pura vaidade, por subserviência, por mimetismo ou por falta de personalidade, o intelectual se dopa com as ideologias da moda:

“Os intelectuais? Estes desempenham um apagado e vil papel. Servem os moços com a mais deslavada subserviência. Se existissem carruagens, um cabeludo da PUC, na hora de sair, diria: Mande atrelar um arquiteto, um sociólogo, um romancista, um poeta, um ensaísta e um cineasta” (O reacionário, pág. 236).

“O que mais espanta em tudo isso é o papel da inteligência. Sim, como age, como reage a inteligência. O homem comum pensa que o intelectual pensa. Ilusão. A inteligência não pensa mais. Vive a lamber as botas dos idiotas como uma cadelinha amestrada. Isso aqui, como lá fora” (Id., pág. 413).

Todos os três – Nelson, Ortega e Carpeaux – percebiam também, até fisicamente, que onde há mais gente, há menos pessoas. Que a massificação é na verdade o grande retrato da “sociedade dos eventos”:

“Era um jogo do Botafogo com o Vasco. Exatamente, a decisão do título. E lá fui eu me meter nas arquibancadas. Era uma das quase duzentas mil pessoas presentes. Aconteceu então que, imediatamente, perdi qualquer sentimento de minha própria identidade. Ali, tornei-me também multidão. Esqueci a minha cara, senti a volúpia de ser ‘ninguém’. Se, de repente, o povo começasse a virar cambalhotas, e a equilibrar laranjas, e a ventar fogo, eu faria exatamente como os demais. E, então, senti que a multidão não só é desumana, como desumaniza” (em O anjo pornográfico [2], pág. 379).

A solução parece estar na recuperação da individualidade, melhor, na compreensão (que remonta a Aristóteles) do ser humano virtuoso. “O homem começa a ser homem depois dos instintos e contra os instintos”. Pensando nesse homem que pensa e vive como homem e não como um marreco, não como o “Boogie Woogie, um cachorro da vizinhança”, Nelson concorda com Chesterton em apontar o profundo equívoco do Estado quando impõe ao indivíduo políticas públicas massificadas e antinaturais.

Chesterton defendia os cabelos da menina pobre que os políticos ingleses queriam raspar para combater os piolhos. O Estado deveria antes ocupar-se em garantir que ela tivesse os cabelos limpos num lar limpo. Segundo o escritor inglês, essa menina “é a imagem humana e sagrada. Ao seu redor a sociedade deve cambalear e cair, os pilares da civilização devem vacilar e ruir, mas não se deve tocar em um único fio de cabelo dessa menina”. E Nelson, com seu estilo peculiar, traz a mesma consideração para os nossos dias:

“Sou contra a pílula, e ainda mais contra a ciência que a inventou; a saúde pública que a permite; e o amor que a toma. A pílula não é só crime, é burrice, porque está assassinando o formidável patrimônio do Brasil, que é o seu povo – povo imaculado de ódio, marcado pelo amor” (O reacionário, pág. 96).

A libertação

Talvez um dos pontos em que ele se distancie mais do pensamento predominante das ciências sociais a partir dos anos 1960 seja o conceito de natureza. Começa por rechaçar o materialismo que, ao excluir a imortalidade, se afasta das questões fundamentais, e exige de Marx que lhe devolva a alma imortal. Depois, não acredita que a chave de interpretação da realidade seja a sociedade do consumo (“A mulher é mulher – afirma a sra. Friedman – porque a ‘sociedade de consumo’ assim o quis. Entendem? Não Deus ou a natureza, mas a ‘sociedade de consumo’”), a cultura, as estruturas, ou qualquer outra coisa que não a realidade de um ser humano dotado de uma natureza humana, livre e responsável. E é precisamente a certeza de termos uma natureza humana que leva Nelson a não aceitar qualquer modismo intelectual ou comportamental, justamente na época em que isso se deu da forma mais acintosa.

Em torno das inúmeras análises recentemente publicadas nos principais periódicos relembrando os quarenta anos das manifestações de maio de 1968, percebe-se que, ao mesmo tempo em que há análises muito díspares, encontra-se sempre um ponto comum, uma unanimidade: a libertação dos costumes como uma conquista social. Pois é precisamente em cima desse ponto que brota todo o pensamento crítico de Nelson, a partir do que ele considera uma interpretação equívoca dos anseios profundos que há, sempre houve e sempre haverá, no coração de cada homem.

Naqueles anos ainda não se falava em “gênero”, mas já se incorporava o novo dogma da igualdade radical – não só de direitos – entre homem e mulher. E ele não tem o menor reparo em recordar e defender aquelas clássicas idéias, que não são fruto de ideologias, mas da observação simples e sensata. Basta andar na rua para tropeçar nelas em cada esquina.

“Como é espantosamente falso esse movimento de libertação para as mulheres. Ninguém vê o óbvio ululante, ou seja: que a mulher precisa depender do homem. Todo o seu equilíbrio interior repousa nessa dependência. E a liberdade? – perguntarão vocês. Bem –
nada frustra mais a mulher do que a liberdade que ela não pediu, que não quer e que não a realiza”.

Os costumes começaram a ser atacados e apedrejados porque foram interpretados como posturas criadas arbitrariamente no passado, muitas vezes como verdadeiras máscaras da hipocrisia burguesa e que tolhiam o desenvolvimento das potencialidades humanas. Tanto é assim que usar a expressão “moral e bons costumes” tornou-se emblema da mais pura caretice. A ninguém ocorreu que esses costumes podem ser resultantes de uma experiência milenar cujo impacto no indivíduo e no ambiente é, ao longo do tempo, muito marcante:

“‘Cada qual se veste como quer’. Aí que a senhora se engana. Ninguém se veste como quer. Um índio tem que moralizar sua nudez enrolando um barbante acima do umbigo. Com o barbante, ele se sente de sobrecasaca e Legião de Honra. Afinal de contas, o barbante do selvagem, ou o nosso sapato, a nossa gravata, o nosso paletó – são sinais exteriores de uma dignidade que não podemos perder” (O reacionário, pág. 490).

Recorramos a um exemplo trivial. No metrô carioca há um conjunto de regras que são efetivamente observadas (não se entra sem camisa ou traje de banho, não se viaja com a porta aberta, não se joga papel no chão, etc.). Os que comungam do ideário da sra. Betty Friedman dirão que tudo isso é puro formalismo, bobagem. Recomenda-se a eles que andem de ônibus no Rio. Ali essas bobagens não são aplicadas. Vale tudo. No entanto, apesar de ambos os meios de transporte estarem inseridos no mesmo espaço urbano público e de serem freqüentados pelos mesmos cidadãos – como é caso da Estação da Central –, qualquer um pode notar a diferença. Enquanto no metrô a viagem decorre num ambiente de convivência familiar e pacífica, calma e sossegada, os ônibus costumam reservar um espetáculo de espantar hunos e ostrogodos.

Amor e sexualidade

Tema constante das suas peças teatrais, Nelson desenvolveu em suas crônicas de forma muito mais clara e direta o seu tratado da educação sentimental. Primeiramente, parte da mais genuína tradição antropológica aristotélica, segundo a qual as potências superiores – entendimento e vontade – exercem um “domínio político” sobre as paixões. E essas últimas, as “potências inferiores”, nem por um momento devem ser identificadas com a expressão da liberdade ou orientar o agir moral. A quem queira conferir as conseqüências de infringir esses axiomas tão simples, basta ler qualquer uma das tragédias de Shakespeare.

“Sou uma das raras pessoas das minhas relações que acreditam no amor eterno. Já escrevi mil vezes: todo amor é eterno e, se acaba, não era amor. O amor não morre – vivo eu dizendo. Morre o sentimento que é apenas uma imitação do amor, muitas vezes uma maravilhosa imitação do amor”.

Mas a tentação de subverter a ordem do amor encontrou a chave que abriu a caixa de Pandora: a pílula anticoncepcional. Não, não estamos glosando a encíclica Humanae vitae. Foi um jornalista e teatrólogo com fama de pervertido, não um bispo ou um padre que, das colunas de um jornal, atacou publicamente a pílula, símbolo da libertação da contracultura:

“O amor sempre sofreu as mais cruéis restrições, repressões, maldições […]. Mas continuava como um íntimo tesouro. Não se tinha como destruir o sentimento. Pela primeira vez, com a pílula, descobriu-se um meio de chegar lá”.

Não é preciso ser muito perspicaz para compreender que pregou no deserto. A partir da pílula começaram os debates – e a prática – sobre o amor livre e a “educação sexual”; apareceu o biquíni, o erotismo em Hollywood e o divórcio. Como uma espécie de Quixote brasileiro, vestindo a armadura de “Último reacionário”, indiferente à opinião pública e às pessoas ao seu redor, estocava com sua lança ferina, debochada, cada uma das propostas da nova cultura sexual. Na sua visão, todas essas novidades decorriam do mesmo fenômeno:

“Acredito que a maior tragédia do homem ocorreu quando separou o sexo do amor. A partir de então, o ser humano passou a fazer muito sexo e nenhum amor. Não passamos do desejo, eis a verdade. Todo desejo, como tal, se frustra com a posse. A única coisa que dura para além da vida e da morte é o amor” (O anjo pornográfico, pág. 413).

A diferença dele para outros, que também criticavam a nova cultura sexual, era de não partir de uma defesa da tradição pela tradição, mas de perceber, com muita agudeza, que o sexo não é uma espécie de jogo de futebol de botão em que cada rua tem a sua regra e todos são felizes assim, mas algo tão profundo que, se não se joga direito, deixa marcas indeléveis na própria pessoa e na sociedade.

Quando, na cobertura do carnaval de 1968, a televisão exibiu ao longo dos quatro dias um verdadeiro desfile de “umbigos” e surgiram aqui e ali alguns protestos e várias reportagens, ele escreveu:

“De onde pensam que saíram os umbigos, as cicatrizes, os quadris, os nus que a TV mostrou no carnaval? Eram extras da TV, pagas a tanto por cabeça? Seriam escravas brancas? Vamos reconhecer que 80% desses nus saíam, precisamente, dos lares, sim, dos lares. E não saem dos lares o umbigo, o seio, a cicatriz do biquíni? Vamos dizer a casta e singela verdade – os nus saíram dos lares.

“Mas o nu é sempre belo, dirão alguns. Nem isso. É feio, e repito: sem amor, é feiíssimo. Na quarta-feira de cinzas o brasileiro acordou com esse sentimento inexorável: como é feia, triste, humilhada, ofendida, a nudez sem amor” (O óbvio ululante [3], pág. 226).

A nova cultura já não era meramente uma proposta. Já fora acolhida, deglutida e incorporada pela classe média brasileira. Já não existia mais uma certa classe média unida em torno de valores morais ou políticos. Já não fazia mais sentido o político de classe média, o típico udenista, com discurso anticomunista e defensor da “moralidade pública”.

E quando o biquíni começa a encolher de tamanho, Nelson repara em algo muito mais profundo do que a questão de uns centímetros a mais ou a menos. Também não se tratava de simples exaltação da sensualidade brasileira:

“Aí está o biquíni que é a forma mais desesperadora de nudez. Como é triste o nu que ninguém pediu, que ninguém quer ver, que não espanta ninguém. O biquíni vai comprar grapete e o crioulo da carrocinha tem o maior tédio visual pela plástica nada misteriosa. E aí começa a expiação da nudez sem amor: a inconsolável solidão da mulher” (O Globo, 28.03.68, pág. 2).

Ali estava a perda do mistério, um elemento essencial do amor. A nudez é parte da abertura recíproca da intimidade daqueles que se amam. Tornada pública, ordinária, a nudez perde o seu sentido, vulgariza-se. A exposição banal dos corpos leva por sua vez à banalização dos relacionamentos pessoais.

A educação sexual, que se tornará tema onipresente algumas décadas mais à frente, começa a ser discutida naqueles anos. Era inevitável que fossem buscar a opinião de Nelson, e ele não se fez de rogado:

“Queria resumir minhas objeções contra a educação sexual. Antes de mais nada ela desumaniza o homem e desumaniza o sexo. No dia em que o sujeito perder a infinita complexidade do amor, cairá automaticamente de quatro, para sempre. Sexo como tal, e estritamente sexo, vale para os gatos de telhado e os vira-latas de portão. […] Devia ser, não educação sexual, mas educação para o amor, simplesmente para o amor. E o homem talvez aprendesse a amar eternamente” (O reacionário, pág. 370).

E, finalmente, o tema do divórcio, que entrou na agenda daqueles anos até ser aprovado pelo Congresso Nacional em 1977. Muito antes, Nelson havia deixado sua esposa Elza e se unira a uma mulher da alta sociedade muito mais jovem, Lúcia Cruz e Lima, com quem tivera uma filha. Ainda não havia se separado também de Lúcia quando escreveu sua opinião sobre o tema:

“O casamento já é indissolúvel na véspera. […] O divórcio não resolve nada. Não resolve o problema da fidelidade também, não. Porque a infidelidade não resulta da falta de amor. Na maioria absoluta dos casos, trata-se de uma aventura acidental e desnecessária que a lei do divórcio não vai evitar. A amante tem todos os defeitos da esposa e nenhuma de suas qualidades. O divórcio virá, ao contrário, estimular a infidelidade. Uma esposa infiel, por exemplo, em vez de trair apenas o marido, com o divórcio trairá um segundo, um terceiro e um quarto”…

“Ah, então ele era separado!”, dirá algum leitor menos avisado. “Isso não é uma contradição? Não será que fazia esse discurso moralista apenas para chocar, para ser estiloso, enfim, como manobra promocional?”

Conhecendo a sua vida, não é essa a conclusão correta. Ele nunca se propôs posar de modelo, nunca pretendeu dar exemplo. Mas também nunca teve a tentação de maquiar a realidade a fim de submetê-la ao seu perfil, e o confessava abertamente. Em certa ocasião, ao escrever na sua coluna que “o sujeito não tem o direito de usar o sexo a não ser por amor”, admitiu: “Eu digo isto como um homem que usou com certa freqüência e que criou esta falsa necessidade de uma atividade sexual normal, que eu não considero normal coisíssima nenhuma”. O dramaturgo vivia na própria carne o drama que entretece, em maior ou menor grau, a vida de qualquer pessoa.

Além do mais, lembremos que voltou para Elza precisamente em 1977. E que ela, dois meses depois da morte do marido, em 1980, e a seu pedido, mandou gravar o nome ao lado do de Nelson na lápide, com a inscrição: “Unidos para além da vida e da morte. E é só”.

Enfim, conhecer a antropologia de Nelson Rodrigues espanta. Seja pela fama que construiu com sua obra teatral e com a própria vida, seja porque o seu pensamento é um resumo daquilo que muitos chamarão de “quintessência do obscurantismo”. Mas talvez essa seja a vantagem de um outsider: fugindo de pré-conceitos, ele desconcerta, faz-nos refletir e dá novas luzes sobre velhos temas.

Mauricio D. Perez é Mestre em Administração de Empresas e Doutor em História. Publicou Lacerda na Guanabara: a reconstrução do Rio nos anos 1960 (Odisséia, 2007).


[1] O reacionário: memórias e confissões (Rio de Janeiro: Record, 1977, pág. 456), e também Ruy Castro, As 1.000 melhores frases de Nelson Rodrigues (São Paulo: Companhia das Letras, 1997).

[2] Ruy Castro, O anjo pornográfico (Cia das Letras, 1997).

[3] O óbvio ululante (Rio de Janeiro: Agir, 2007).

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