Editorial

Dicta & Contradicta

And the National Bank at a profit sells road maps for the soul
To the old folks home and the college
(Bob Dylan, Tombstone Blues)

O que o leitor tem nas mãos é uma revista de peso. Se intelectual ou não é coisa que lhe cabe decidir. Nada de metáforas: é peso físico mesmo. A quarta edição da Dicta, com suas 282 páginas, sai do prelo maior que a terceira, que saiu maior que a segunda, que saiu maior que a primeira. O que nos permite prever, com razoável grau de certeza, que lá pela décima publicação será entregue às livrarias em três tomos de 457 páginas cada, in-fólio e capa dura. Esperemos que não. Mas não é culpa nossa; a criança está crescendo sozinha e tem sido difícil conter o entusiasmo de nossos colaboradores por acrescentar algum peso – agora sim – intelectual ao debate cultural brasileiro.

Por que um homem espanca sua mulher, abusa de uma criança, chacina uma penca de outros homens? Nos três últimos séculos já nos informaram que o faz por muitos motivos, a escolher: por sua constituição psicofísica; pela luta de classes; por sua condição social; por seus genes, neurônios, instintos; por seu id, ego ou super- ego; por sua religião – ou pela falta dela –, e por etcéteras afora. Todos menos um: por que ele quer. Essa hipótese tão surpreendente é a que nos apresenta Theodore Dalrymple em nosso ensaio de abertura. E como ele sabe? Por calhamaços de estatísticas?, índices?, gráficos pizza? Talvez também por isso. Mas aqui é sobretudo pela sua experiência – essa mesma, leitor, que você tem todos os dias e está tendo agora mesmo.

Após viajar pelo mundo inteiro como médico e correspondente de guerra, o psiquiatra britânico chega pela primeira vez ao público brasileiro para dizer: “meninos, eu vi!” Viu, como seu quase-compatriota Joseph Conrad, o coração das trevas na África (sem deixar de dar uma passada pelas trevas latino-americanas), para retornar depois à sua Inglaterra e encontrar um horizonte não menos negro. E como ele embasa sua tese? Com o arsenal de Marx, Freud, Foucault, Derrida? Nada disso. É nada mais nada menos que pelo bom senso – esse mesmo, leitor, que você usa todos os dias para avaliar suas experiências e que está (ou deveria estar) usando exatamente agora. Dalrymple – ao qual agradecemos vivamente por não se aborrecer com nossa insistência quase-quase violenta por um texto exclusivo – começa e termina dizendo a quem tiver ouvidos para ouvir que “a única causa inquestionável da violência, tanto política como criminosa, é a decisão pessoal de a cometer”, ponto.

E do coração das trevas, vamos às trevas da mente, conduzidos pelo neurologista Oliver Sacks, que nos narra aqui a história da vida e morte dos manicômios nos Estados Unidos. Com uma determinação que faria arrepiar os cabelos e barbas do alienista Simão Bacamarte, sociólogos, ONGs e filantropos do mundo inteiro, incluindo o Brasil, decidiram nas últimas décadas que todos os loucos tinham de ser postos a qualquer custo para fora dos hospícios. E para quê? Para jogá-los, não raro, nas calçadas. Veja aí, leitor, a longa experiência e o bom senso de Sacks receitando alguma sanidade ao movimento anti-manicomial.

E das trevas da mente passemos ao seu chiaroscuro. O pesquisador sênior da IBM Gregory Chaitin nos prova por A mais B que, se a razão humana é limitada, é ao mesmo tempo indispensável e capaz de contornar, em certa medida, essa sua invalidez de nascença.

Da penumbra da razão vamos à “energia escura”. O diretor de public outreach – aqui diríamos “divulgação científica para o grande público” – do telescópio Hubble, Mario Livio, diz-nos que parece haver uma aceleração cada vez maior da expansão do Universo, o que permite prever, também com alguma certeza, que ele literalmente se desagregará em infinitos pedacinhos subatômicos. Tranqüilo, leitor; ainda restam alguns anos para terminar de ler sua Dicta – mais ou menos uns 100 bilhões.

Mas com tanto peso, ciência, demência e violência, o leitor já estará achando que viemos para espremer seus neurônios. Calma, não perca o bom-humor! É o que nos sugere Marcelo Consentino, em uníssono com Bergson, Sócrates e o nosso alienista Machado de Assis: que mesmo em tempos de descontrolada cólera como os nossos, sempre vale a pena rir. O que, naturalmente, será mais fácil com a ajuda de um bom humorista, como Evelyn Waugh, que com a dosagem milimétrica do wit britânico satiriza as carreiras profissionais na boa tradução de Julio Lemos. Esse último, aliás, conseguimos arrancar da frente do computador e metê- lo na escrivaninha com papel e caneta para que anotasse em nossas páginas as boutades impagáveis – e não pagamos mesmo – de seu blog, Feliz Nova Dieta. Divirta-se, na feliz nova Dicta, com a agilidade verbal com que Julio lança seus tomates pelo mundo da cultura afora, enquanto Ruy Goiaba, nosso humorista de plantão, faz goiabada e marmelada com os clichês da crítica literária.

E falando em blogs, marmelada e tomates, é notório que em revistas pesadas como a nossa esses últimos costumam sobrar para a cultura pop. Mas não aqui. Luiz Felipe Amaral desce aos subterrâneos dos grossos volumes do casmurrão Thomas Pynchon para iluminar sua miscelânea quase opressiva de referências pop e eruditas. E que pode haver de mais pop que os Beatles? Em o Leilão do Sargento Pimenta o leitor seguirá o mágico e misterioso tour dos quatro proletários que saíram dos subterrâneos de Liverpool para subir aos céus do show bizz e da boa música movidos a muito LSD e atraídos por Lúcia e Seus Diamantes, até despencarem de lá e seguirem cada um por sua conta em meio à multidão – ah, essa gente tão solitária…

Já que estamos olhando ao passado, vale lembrar que sempre assumimos como uma questão de princípio o dito de Chesterton de que a tradição é a democracia dos mortos. Democráticos como somos, convidamos dois para nos dar uma aula magna de estilo e composição: o vienense Hugo von Hofmannsthal, com seu barroquismo fin de siècle algo onírico, e o poeta italiano Leopardi, munido de sua prosa de filólogo latinista. Têm um certo gosto de velharia, mas velharia da boa, daquelas que nem os dentes do tempo conseguem roer – e, já que estamos pop, é bem aquela coisa da panela velha… Falamos só da forma, pois deixamos ao leitor saborear seu conteúdo nas lindas traduções de Érico Nogueira.

Mas nem só de mortos vive a Dicta, e, após duas longas edições, o filósofo Luiz Felipe Pondé retorna para apresentar, em seu pequeno grande ensaio, a formação de sua vida filosófica na escola de Pascal, Burke, Russel Kirk e demais mestres “conservadores”. Vida filosófica – e como! – é ainda a do velhinho Alasdair MacIntyre, que partiu, segundo Marcelo Musa Cavallari, navegando em busca da virtude e, no naufrágio moral em que a barafunda relativista nos mergulhou, pediu arrego e bóia aos antigos gritando: “Quero minha ética de volta!” Queremos todos, caro Marcelo, assim como também Renato Moraes quer a sua – a nossa – metafísica de volta, e foi buscá-la nas mãos de Étienne Gilson, em sua obra A unidade da experiência filosófica (a ser com alguma esperança – e uma dose de esforço – publicada no Brasil).

***

Alguma vez você já viu essa cena, leitor? No calor de uma discussão, o mais intelectual do grupo se ergue de seu grave silêncio e fulmina: “Como vocês são ingênuos – não existe verdade ou mentira; bem e mal; tudo isso é relativo!” Tão triunfante é o seu olhar, tão soberbo o sorriso no canto da boca que nos sentimos como crianças ou aborígenes supersticiosos. “Ah, buana, como você é inteligente! Vai, fala mais… fala mais…” Queremos crer, entretanto, que no momento em que esse sujeito puser o pé fora de seu gabinete ou sala de aula para comprar um cacho de bananas, ficará bastante indignado se ouvir: “Quanto custa? Veja bem senhor, isso é relativo: ontem era 40, hoje é 50; aquela senhora lá levou por 60, mas eu faço para o senhor por 110”. A verdade – se nos permitem usar esta expressão tão ultrapassada – a verdade é que mesmo quem engana não gosta de ser enganado. Ninguém gosta. Por que então nos enganamos tantas vezes? Quem, afinal, nunca teve a experiência de repetir um hábito, atitude ou idéia, às vezes anos a fio, e um certo dia cair em si dizendo “não, eu não acredito realmente nisso; no fundo nunca acreditei”, “não, não é isso que eu quero para minha vida; nunca foi”?

Thomas Pynchon narra a história de um paranóico que um dia tropeça numa falha em sua teoria conspiratória e cai na penosa decisão de abandoná-la ou insistir no erro. “Mas era uma teoria certinha, e ele estava apaixonado por ela. E o único consolo que tirava do caos presente era que a sua teoria conseguia explicá-lo”. Sejamos sinceros, leitor, e admitamos que no caos tantas vezes presente, nos vemos freqüentemente diante do mundo como um menino no primeiro dia de aula. Por que mentimos para nós mesmos? Por medo, covardia e, digamos de uma vez, por vaidade.

O paradoxo é que é precisamente por um amor natural à verdade que tantas vezes nos agarramos às nossas mentiras. Porque elas são tão “certinhas” e é tão bom andar por aí com um punhado de certezas no bolso, certo? Nossas idéias, contudo, são como mapas, e por mais lindas e coloridas que possam ser, se indicam uma colina onde na verdade há um precipício, se ao invés de uma praça nos levam a um beco sem saída, faremos bem em amassá-las e jogá-las fora – de preferência no cesto mais próximo, para que ninguém as encontre por aí.

Oliver Sacks conta o caso de uma senhora que, depois de tentar algumas vezes matar a si e ao seu próprio filho, é levada a um hospício onde pergunta desolada ao médico “Estou louca?”, “Sim madame, e bastante”. Verdade dura. Dalrymple narra um diálogo semelhante com uma mulher que há anos é espancada por seu marido: “Ele precisa de ajuda, doutor… algo toma conta dele… coitado, não consegue se controlar… me bate… me estrangula… me dá socos…” – “Diga-me uma coisa: por acaso ele faria isso na minha frente?” Obviamente não. Será possível, então, que ele não seja vítima de nenhum descontrole psíquico, mas só um canalha mesmo? Verdade duríssima… mas que liberta, como sempre.

Somos todos cartógrafos e o mapa da vida se faz dia após dia no duro labor de testar nossas convicções e, se for o caso, rasgá-las sem dó nem piedade. Decisão difícil, mas, como diz Sartre, estamos condenados a ser livres. Dita assim, a frase é um tanto calhorda e de nossa parte acreditamos que a liberdade é um dom, o maior deles. Mas se torna, sim, um peso opressivo quando temos de usá-la para reconhecer nossos erros. “O ser humano”, diz Nelson Rodrigues, “é o único que se falsifica. Um tigre há de ser tigre eternamente. Nunca vi um marreco que virasse outra coisa. Mas o ser humano pode, sim, desumanizar-se. Ele se falsifica e, ao mesmo tempo, falsifica o mundo”. Nada exige mais coragem do que admitir uma covardia. Nunca a nossa honestidade custa tanto quanto na hora de desfazer nossas farsas. E após caminharmos por muito tempo numa direção, rabiscando com tanto carinho o nosso mapa, é humilhante quando um viajante mais experimentado chega e diz “meu Deus!, você está louco rapaz… está a milhas de distância de onde pensa estar”.

Nossa revista, leitor, é só um punhado de mapas… não, de esboços de mapas, de ensaios. Teste-os, e se forem inúteis não hesite em jogá- los fora. Só o que importa é não abandonar o esforço pela verdade. Com freqüência é dura e mesmo humilhante, e tantas vezes é mais fácil mentir – dói menos. Mas mais fácil ainda é sentar-se e zombar daqueles que a buscam – dos viajantes perdidos por essa vida caótica –, como faz aquele intelectual cínico. Esse sim é o mais covarde de todos e, até onde nos consta, pode bem cair de quatro e sair por aí, pois já é menos que um homem e não passa de uma besta quadrada.

***

Antes de deixá-lo seguir viagem, leitor, queremos dar uma palavra de agradecimento ao artista Alex Cerveny por embelezar com tamanha delicadeza nosso “punhado de mapas”. E também ao Banco Fator, pelo seu patrocínio. E, se nos permite insistir no conselho, continue mapeando a verdade. Ela não só existe, como é generosa, e recompensa. Esforcemo-nos por pensá-la, como diz Dalrymple emendando Pascal, pois ela é o princípio da moralidade.

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