Feliz Nova Dieta

por Julio Lemos

INAUGURATIO. Numa conversa com João Pereira Coutinho em 2007, ele me perguntava porque nenhum blog brasileiro figurava nos veículos impressos, como ocorre em Portugal. Então vamos cometer essa imprudência. Venham os tomates. Sem pele e italianos, por gentileza.

Language is a virus. Um erro de engenharia pode provocar danos bastante palpáveis. O mesmo não parece ocorrer com artes menos práticas como a filosofia e a literatura. Quando lemos ou escutamos algo ruim, nossas cabeças permanecem, aparentemente, intactas: nenhum teto veio abaixo.

Contrariando essa tese implícita, Richard Mitchell disse em certa ocasião, entre um Martini e outro, que as palavras são como vírus: “We hear them, we read them; they enter into the mind and become part of us for as long as we shall live. Who speaks reason to his fellow men bestows it upon them. Who mouths inanity disorders thought for all who listen. There must be some minimum allowable dose of inanity beyond which the mind cannot remain reasonable” .

“Transmitir razão” significa dizer algo inteligível, isto é, dotado de uma estrutura adequada às nossas mentes ávidas de sentido (se a sua não está ávida de sentido, a tese de Mitchell já está provada: o teto há muito desabou sobre você). O problema é que o inteligível dá trabalho, e é muitas vezes perturbador. Um romance que os críticos do mimimi chamam “perturbador” costuma ser, na melhor das hipóteses, “embrulhador” (de estômago), mas nunca capaz de provocar o intelecto com inteligibilidade. O que incomoda a vista é a claridade, e não a escuridão; e sendo o homem um ser visual, a analogia da luz é sempre adequada. Enchê-lo de escuridão é tomá-lo por imbecil; e por isso os imbecis adoram os romances “subversivos” e os Mille plateaux de Gilles Deleuze.

Em terrenos menos perturbadores, a filosofia se resume ao “que estão falando hoje”, não porque isso seja de fato interessante – embora possa ser – mas porque se está falando hoje. Ora, isso é uma bananice do tamanho de um bonde em formato de banana. A filosofia não fala do que é conservadoramente possível falar hoje, mas do que é perturbadoramente razoável falar sempre. O que se falou há mil anos é a princípio tão relevante quanto o que se fala agora. Por isso a filosofia é mais contemporânea, além de mais relevante para o futuro e para a história, do que a sociologia. Se você não pode entendê-lo, é porque já digeriu tanta inanidade e contradição – através dos textos que leu e dos discursos que ouviu –,
que seu estômago superior está vazio e nem sabe mais o que é a fome.

E por que falei em Deleuze? Ele é só um velho que passou de moda depois de se ter suicidado em 1995 (essa é a versão mais aceita para o que motivou o salto da janela do hospital) – tenhamos compaixão. Poderia ter falado em Foucault, que, segundo contam os estudantes, num simpósio na USP sobre o tema Loucura e exclusão ou algo do tipo mandou o segurança pago pelo Estado Opressor expulsar da sala de conferências um indivíduo meio mongo porque ele ficava fazendo obsessivamente – o que esse cara andou lendo? – perguntas sem pé nem cabeça. Mas não vou falar em Foucault.

“Deve haver uma dose mínima de imbecilidade permitida além da qual a mente não consegue se manter razoável”. Falou e disse, Richie.

And now for some real bullshit emanations. Tampouco vamos bem de novos ateus. Recentemente, Alain de Botton, ateu que nunca tinha se metido no armário, publicou um artigo na Standpoint (procure no Joongle aí) com o sugestivo título “Religion for Atheists”. Quando li a expressão “religião para ateus”, pensei, “Botton, seu grande filho da mãe!” Seria uma enorme ingenuidade julgar que o autor estaria a defender a fundação de uma religião laica ou algo do estilo. Julguei-me imbecil e mal-informado só por ter pensado nessa possibilidade.

Boas notícias. Não sou o único bom selvagem nessa história. O fato é que o autor, sim, defende uma nova religião laica para os ateus. Infelizmente não se trata um hoax no estilo Sokal. Diz ele já de cara: “We’d be wiser to start with the common-sense observation that, of course, no part of religion is true in the sense of being God-given [yeah, right]. There is naturally no holy ghost, spirit, Geist or divine emanation [what about a bullshit emanation?]. Dissenters from this line can comfortably stop reading here” .
Não segui o seu conselho, preparando-me – eis o preço a pagar pela cupidez – para receber imbecilidade em doses cavalares (yes, bullshit emanations).

Ele faz o favor, nas páginas seguintes, de abraçar a causa dos fracassados da era revolucionária francesa (mais conhecida como o Terror; em vulcano-hexassílabos [1], Você que hoje é nosso / amanhã vai pra guilhô), cujo desígnio era montar uma simpática religião laica: “It was our 18th-century forebears who, wiser than us in this regard, early on in the period which led to ‘the death of God’ began to consider what human beings would miss out on once religion faded away” . Ah, então a religião também tem função social, como o prendedor de cabelo e o disco do Titãs (desde que não sejamos tão fanáticos quanto os revolucionários).

“Nessa nova religião secular, haveria dias de festa, cerimônias de casamento, figuras veneráveis (santos seculares) e até igrejas e templos ateus”, continua nosso amigo[2]. Agora deixe de ser tão vergonhosamente racional e irônico e vamos lá, solte essa sua imaginação, libere o finnochio que você tem dentro de si.

Imagine, dizia John Lennon… uma grande comunhão fraterna de ateus abrançando o mundo, esse imenso quintal da ONU, de ponta a ponta… templos dedicados ao Big Bang, à fissão nuclear, às teses de doutorado em ciências sociais… estátuas de grandes santos, como Robespierre, Barack Obama e Richard Dawkins… Não é esse o futuro que você queria para os seus filhos?

Julio Lemos faz doutorado em Direito Civil nas horas ocupadas e, nas vagas, dedica-se irregularmente a coisas desconexas, como filologia clássica, design e surrealismo.


[1] Hexassílabos mancos. Uma referência impagável a Vulcano, aquele deus que só dá mancada.

[2] Afim de abolir tudo o que lembrasse a Igreja, esse baluarte da Superstição e do Fanatismo, os revolucionários instituíram um novo calendário, bem como festas comemorando entidades muito concretas como a Natureza, a Razão e a Pátria. Alguém comentava, em desabafo, que essas festas não serviam senão para cobrir de ridículo os que nelas tomavam parte. Mas basta abrir a sua agenda da Tilibra para perceber que a infâmia continua. Feliz Dia da Emanação Cósmica de Excrementos Taurinos!

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