Gonzaga em russo

por Pedro Sérgio Lozar

Não se surpreenda: trata-se mesmo do nosso poeta Tomás Antônio Gonzaga em versão russa.

Como quase todos sabem, Gonzaga foi um magistrado que, vindo servir no Brasil, na cidade de Vila Rica do Ouro Preto, Minas Gerais, em fins do século XVIII, envolveu-se num drama que passou à História com o nome de Inconfidência Mineira.

De fato, Gonzaga era português, filho de mãe brasileira; quando pequeno passou alguns anos no Brasil e depois foi estudar na Universidade de Coimbra. Seguiu a carreira da magistratura, voltando mais tarde à colônia para ser ouvidor na sede da capitania de Minas. Foi quando conheceu uma moça chamada Maria Dorotéia, pela qual se apaixonou. Corre a lenda de que o conhecimento foi assim: o ouvidor viu no quintal vizinho a linda jovem que, ao colher uma flor, feriu-se com um espinho. O gentil cavalheiro acudiu, e daí começou a simpatia que se transformaria em amor.

E, acima de tudo, Gonzaga teve o papel principal na então deficiente literatura em língua portuguesa do século XVIII, entre os poetas da chamada Arcádia Mineira, como Cláudio Manuel da Costa, Alvarenga Peixoto, Santa Rita Durão, Basílio da Gama, Silva Alvarenga, Melo Franco.

* * *

Mas o que isso tem a ver com o idioma russo? O fato é que em meados do século XIX, lá naquele país distante, um curioso chamado Pável Ánnenkov andou remexendo papéis antigos e acabou descobrindo uma poesia de Gonzaga traduzida para o russo por Alexandre Púshkin – considerado o poeta nacional da Rússia –, que morrera havia anos em conseqüência de um duelo ao defender a honra da esposa, difamada pelo despeito de alguns por sua deslumbrante beleza, e de outros pela glória do poeta.

A poesia tem em russo o título Do português, com a nota “Gonzago”, com “o” mesmo; trata-se da Lira IX, da 2ª parte do livro Marília de Dirceu que, depois de Os Lusíadas, de Camões, é a obra com o maior número de edições na nossa língua.

Alexandre Púshkin nasceu em Moscou e presenciou aos treze anos a invasão da Rússia por Napoleão Bonaparte; certamente esteve na precipitada fuga em massa dos habitantes de Moscou, cidade que, tendo sido quase toda construída de madeira, foi incendiada durante a invasão, ardendo como uma pira descomunal.

Púshkin era descendente de africanos, coisa rara naquelas latitudes. É uma história interessante: os turcos haviam capturado na Abissínia um menino destinado a ser vendido como escravo. O embaixador da Rússia em Constantinopla comprou-o e o deu de presente ao imperador Pedro I, dito o Grande (no físico era, sem dúvida nenhuma!).

Pedro era filho do segundo casamento do tzar Alexei, o que, por morte deste, provocou um impasse na sucessão: as duas famílias do finado disputaram a coroa russa. A solução para o dilema foi fazerem um trono com dois assentos, talvez caso único na história: um para Ivan, filho da primeira mulher, outro para Pedro, filho da segunda. Eles imperaram juntos até a morte de Ivan.

Pedro, o Grande, incógnito, fez viagens ao Ocidente com a finalidade de levar para a Rússia aspectos da cultura européia. Admirava especialmente a Holanda. Dentro da sua filosofia de europeização do país, entre outras coisas, proibiu as barbas longas usadas pelo povo, o que provocou tremenda reação, sendo até chamado de Anticristo; mandou que se vestissem com roupas de feitio ocidental, simplificou o alfabeto cirílico, adotou o calendário juliano, aboliu o título de tzar (também indevidamente escrito czar) – substituindo-o pelo de imperador –, estabeleceu outra estrutura administrativa e construiu nova capital para o país, a que deu o seu nome: Petersburgo. A cidade o conservou até o começo da Primeira Guerra Mundial, quando, num assomo de nacionalismo, trocou o nome germanóide para o eslavo Petrogrado. Foi a capital da Rússia até 1918, quando a revolução socialista restaurou a sede do governo em Moscou.

Mas, voltando ao que nos interessa, aquele menino etíope foi levado para São Petersburgo. O “déspota esclarecido” afeiçoou-se a ele, educou-o e depois o casou numa família aristocrática. E esse ex-escravo foi justamente o trisavô de Alexandre Púshkin, que herdou dele alguns traços.

* * *

As vidas de Gonzaga e de Púshkin têm muito em comum: foram contemporâneos, ambos poetas, participaram de revoltas contra o absolutismo, e acabaram exilados.

De fato, Púshkin tomou parte – pelo menos com poemas revolucionários – no movimento chamado decembrista (ou decabrista, do russo dekábr), desfechado em 14 de dezembro de 1825 contra a tirania do governo. Muitos foram condenados à morte, outros desterrados, e entre estes o poeta, que posteriormente acabaria reabilitado.

Já o nosso aedo Dirceu (nome arcádico de Gonzaga) não teve tanta sorte. Denunciada a conspiração dos inconfidentes, foi preso e condenado à pena capital; posteriormente indultado e exilado para a África, onde morreu, deixando sozinha a sua adorada. Maria Dorotéia, imortalizada com o nome poético de Marília, não se casou, faleceu em idade avançada e ficou como um mito de amor eterno e infeliz.

E foi na prisão que Gonzaga escreveu a segunda parte de Marília de Dirceu, em que figura o poema traduzido para o russo por Púshkin. A versão não é exata, mas não há dúvida de que se trata da lira referida. É interessante fazer uma análise comparativa de alguns trechos:

Original de Gonzaga

A estas horas

Eu procurava

Os meus amores,

Tinham-me inveja

Os mais pastores.

A porta abria

Inda esfregando

Os olhos belos,

Sem flor nem fita

Nos seus cabelos.

Ah, quantas vezes

No chão sentado

Eu lhe lavrava

As finas rocas

Em que fiava!

Na quente sesta,

Dela defronte,

Eu me entretinha

Movendo os ferros

Da sanfoninha.

Não há Pastora

Que chegar possa

À minha bela,

Nem quem me iguale

Também na estrela.

Assim vivia;

Hoje em suspiros

O canto mudo:

Assim, Marília,

Se acaba tudo!

* * *

Versão de Púshkin

Lá se ergueu a estrela da manhã;

Esplêndida floresceu a roseira.

Esse momento, outrora,

Chamava-nos um para o outro.

No leito de penugem

A donzela, com sonolenta mão,

Esfregava os olhos sonolentos

Afastando os sonhos da noite.

(Não tem correspondente)

Ela, de longe,

Avizinhava-se em silêncio;

Eu, encontrando-a

Cantava, dedilhando a guitarra.

Do que ela, minha alegria,

Não, não há mais encantadora!

Quem, ousará, sob a lua,

Porfiar comigo em felicidade?

Onde está a minha bela?

Solitário eu choro.

Trocaram-se as canções ternas

Em gemidos e lágrimas sem

[esperança.

Mas, enfim, como esse poema foi parar na Rússia?

Em 1825, os franceses Monglave e Chalas publicaram em Paris, em forma de prosa, uma tradução bastante fiel das poesias de Gonzaga. O francês era língua de cultura na Rússia, usada mesmo no dia-a-dia pelas classes altas, a ponto de muitos não saberem o idioma do país, por terem sido educados por preceptores franceses e menoscabarem a língua pátria. É como está acontecendo entre nós, com essa ridícula adoção sem peias de estrangeirismos, cada vez mais presentes em detrimento do idioma nacional. Os francófonos passaram aperto quando, por ocasião das guerras contra Napoleão Bonaparte e da invasão da Rússia pelo seu exército, houve uma explosão de sentimento nacionalista contra tudo o que fosse francês, o que resultou na perseguição dos “maus russos”.

Certamente Púshkin conheceu a famosa poesia por meio da versão francesa, pois é improvável que soubesse português. Por curiosidade, vale lembrar que Vladimir Nabókov, o da Lolita, que era também consumado crítico literário, pretendeu demonstrar que Púshkin não sabia nem mesmo o inglês, embora tivesse apresentado como direta do original uma tradução de Shakespeare.

Um indício de que foi o texto de Monglave que serviu ao poeta é que, enquanto o pastor de Gonzaga toca a “sanfoninha”, o do francês tange a guitarra, mesmo instrumento da versão de Púshkin.

* * *

E como seria a imagem do nosso país na Rússia de então? Na verdade, não era algo tão remoto quanto se poderia supor. Em 1812, o zoólogo, botânico, etnógrafo e lingüista Grigóri Langsdorf foi designado, pelo governo russo, cônsul no Brasil. O sábio organizou algumas expedições científicas com proveitosos resultados, divulgando a nossa exuberante natureza.

A mudança da corte portuguesa para a colônia também repercutiu na Europa, colocando em evidência o país americano. A nossa independência igualmente atraiu a atenção do mundo.

O poeta Kozlóv, amigo de Púshkin, escreveu sobre o Brasil:

Gosto de imaginar (…) a beleza do Brasil de

[esmeralda,

Onde, em eterno arco-íris, brinca a abóbada dos

[céus,

E a floresta sombria se enche do brilho de aves

[maravilhosas

O ananás de fogo vermelheja em campo aberto,

E a palmeira sobre a onda é verde como a alegria:

Do seu tronco é feita a canoa,

Das folhas, as velas, e para a viagem é carregada

Com os próprios, perfumados frutos…

E, naturalmente, há outros relatos de russos a respeito do Brasil. Agora, por qual razão Púshkin traduziu justamente a Lira IX – referida, nos trabalhos em que é mencionada na Rússia, pelo título “Recordações”? Apenas aquele poema teria chegado até ele? Teria conhecido outros e escolhido este por algum motivo? Ter-se-ia comovido com a desgraça do colega? Eis uma série de indagações até o momento sem resposta fundamentada.

Por ocasião do 220º aniversário de nascimento de Tomás Antônio Gonzaga, considerado pelos russos “poeta brasileiro”, a literata e tradutora I. A. Tiniánova publicou o artigo “O meu coração é maior do que o mundo” (do célebre verso Eu tenho um coração maior que o mundo, da Lira II, 2ª parte de Marília de Dirceu), e a seguir, na série Biblioteca de Poesia Latino-Americana, o livro T. A. Gonzaga – Liras; Cartas Chilenas / Tradução do português.

Esta é a história de uma tradução que levou ao remoto país de Púshkin se não uma imagem do Brasil oculta sob o convencionalismo da escola arcádica, pelo menos um fragmento da nossa arte poética.

Pedro Sérgio Lozar é funcionário público do governo de Minas Gerais. Publicou diversas traduções de originais russos, além de artigos em jornais e revistas sobre literatura, língua portuguesa e outros. É autor do livro Fale sem receio, escreva com prazer (Ed. Armazém de Idéias, 2001).

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