História da literatura acidental

por Ruy Goiaba

William Shakespeare (1564-1616)

Autor famoso por ser confundido com Francis Bacon, Christopher Marlowe e o duque de Oxford – ou não ser. Era uma espécie de Zé Celso da Inglaterra elizabetana, só que com roupa: escrevia, dirigia e eventualmente atuava em papéis pansexuais (naquela época, lugar de mulher não era no palco, embora houvesse uma no trono). Suas peças e sonetos espantam pela contemporaneidade: “a plague o’ both your houses!”, de Romeu e Julieta, é um ácido comentário sobre a Câmara e o Senado, e “the slings and arrows of outrageous fortune” refere-se aos milhares, talvez milhões, de textos cretinos atribuídos ao dramaturgo que circulam por e-mail. Casado com Anne Hathaway, ao morrer deixou a ela só a “segunda melhor cama”, o que obrigou a moça a parar de fofocar com suas alegres comadres de Windsor e ralar bastante até fazer sucesso em Hollywood com O diabo veste Prada. Enfim, uma comédia de erros, mas tudo está bem quando bem termina – como gostais.

William Blake (1757-1827)

Poeta maldito, louco, visionário e mais uma série de adjetivos normalmente usados hoje para definir gente como Jorge Mautner ou Raul Seixas. Vislumbrou o surgimento das agendas para adolescentes com quase dois séculos de antecedência; sua obra mais célebre, “O Casamento do Céu e do Inferno”, é quase inteiramente composta de frases para esse tipo de agenda. Exemplo: “O caminho do excesso conduz ao Palácio da Sabedoria (você indo pela Raposo Tavares, é ali encostadinho no Rancho da Pamonha)”. Incompreendido em vida, depois de morrer ainda teve a suprema má sorte de influenciar Allen Ginsberg, also known as O Poeta Mais Chato do Mundo.

Stendhal (1783-1842)

Autor famoso por ter cometido, quando jovem, a imprudência de ir passar o inverno na Rússia com Napoleão sem levar nem um casaquinho. Mais tarde, adotou o pseudônimo para escapar dos inimigos do pintor-de-rodapé e para brilhar na primeira arte em que se distinguiu, a do trote (“Alô, quem fala?” “Aqui é o Stendhal.” “Que Stendhal?” “Aquele que dizia allonsenfantsdelapatrie enquanto pegava…” [o interlocutor desliga]. Parece simples, mas era especialmente witty numa época em que nem havia telefones). Flanou por Europa, França e Bahia fazendo pesquisas de campo sobre as mulheres, que resultariam em seu livro Do Amor (Que Mexe com Minha Cabeça e Me Deixa Assim), célebre pela teoria da cristalização (“o amor é como uma flor roxa, só nasce em coração de trouxa”). Suas obras mais famosas são O Vermelho e o Negro – protagonista hesita entre a carreira militar e a eclesiástica até se decidir pelo futebol – e A Cartuxa de Parma – protagonista vai parar em Waterloo sem querer e flagra Napoleão naquela posição em que ele perdeu a guerra. Sua morte foi narrada deste modo: “Oh, Sainte-Beuve, por que estás contente? Mas o que foi que te aconteceu? Foi o Stendhal que caiu do galho, deu dois suspiros e depois morreu”.

Honoré de Balzac (1799-1850)

Autor que modificou seu sobrenome original, Balssa, para tirar onda de gentilhomme, muitíssimo antes do advento da numerologia. Suas principais ocupações eram falir e fugir dos credores, não necessariamente nessa ordem. Entre uma falência e uma fuga, tomava café e escrevia torrencialmente: o resultado foram obras como A Divina Comédia Humana, parceria com Dante Alighieri e Belchior, e A mulher de 50 anos, de onde se originou o termo “prozaquiana” (eram 30 anos, mas fizemos a atualização monetária levando em conta a inflação desde 1832 e a cotação do botox). Morreu de overdose de cafeína e é, por isso, constantemente confundido com Jim Morrison, o que faz seu túmulo no Père Lachaise ser destruído em média duas vezes por semana.

Gustave Flaubert (1821-1880)

Autor famoso pela busca obsessiva da palavra justa (le mot juste), que o tornou o terror dos atendentes das lojas do Faubourg Saint-Honoré. (Eis um diálogo extraído de uma das suas cartas: “Ficou bom?” “Olha, seu Flobér, Deus é justo, mas essa sua palavra… nossa! Tá muito apertada aqui atrás. Não prefere um tantinho mais folgada, mais confortável?” “Não! Tem que ser a palavra JUSTA!” “Tá bom, seu Flobér. Mas o senhor sabe que a palavra justa laceia com o tempo, né? Só estou avisando”). Escreveu volumosa correspondência e, perdidos no meio dela, um romance aqui e um conto ali. Entre suas principais obras estão aquela da mulher que pulava a cerca, aquela outra da mulher que tinha um papagaio, A educação sentimental (depois regravada pelo Kid Abelha) e Bouvard e Pécuchet, cujo apêndice, o Dicionário das idéias feitas, foi crescendo tanto que um dia estourou e matou o escritor. Por ter morrido antes de entregar a revisão definitiva dos dizeres do seu túmulo, acabou sendo enterrado em Lins (lugar incerto e não sabido).

Machado de Assis (1839-1908)

Mulato inzoneiro à merencória luz da lua do Brasil Império, Machado foi vítima de detratores que o acusavam de se deixar embranquecer pelo sucesso (uma espécie de Michael Jackson do Cosme Velho), de fãs que o chamavam de “bruxo” e – o pior de tudo – de centenas de páginas escritas por Roberto Schwarcz. Sem se abater, deu às costas aos clichês da literatura brasileira a partir das Memórias póstumas de Brás Cubas e seguiu moonwalking até o fim, transmitindo às criaturas o melhor legado da nossa miséria. Costuma responder à pergunta “Capitu traiu Bentinho?” com outra: “O senhor por acaso conhece o segredo do morcego?”.

James Joyce (1882-1941)

Autor sobranceiro e fornido que, um belo dia, ali pelo meio do Ulisses, desistiu desse negócio de literatura e dedicou o resto de sua vida a escrever pegadinhas para sacanear acadêmicos – as únicas pessoas no planeta que de fato leram Finnegans Wake. Um jesuíta execrável, que ficou no meio do caminho entre ser a versão highbrow daquele personagem do Francisco Milani no “Zorra Total” (“zoei!”) e ser o Carlinhos Brown da Irlanda. Santo padroeiro dos concretinos.

Bertolt Brecht (1898-1956)

Autor de teatro famoso por cortar seu próprio cabelo, como as fotos da época demonstram, e pelo método do distanciamento, usado até hoje para fazer diretores, atores e público parecerem mais inteligentes do que são. Se Joyce era um Francisco Milani, Brecht era o Lilico do Bumbo: todas as suas peças são, essencialmente, pancadas no bumbo e gritos de “é bonito isso?” para a humanidade.

Allen Ginsberg (1926-1997)

O Poeta Mais Chato do Mundo. Sósia do Kiko, personagem do seriado “Chaves”. Seu texto mais famoso, “Howl” (“I saw the best minds of my generation etc. etc. etc.”), é um longuíssimo, interminável grito de “gentalha!” Prefira a versão mexicana, com dublagem do SBT.

Ruy Goiaba, 39, jornalista, acha que o mundo tem livros demais e leitores de menos. Escreveu no blog puragoiaba (puragoiaba.apostos.com) e hoje fala sozinho no Twitter (twitter.com/mrguavaman).

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