Livros

Leite ralo

por Marcelo Ferlin Assami

Dados técnicos: Chico Buarque. Leite derramado. Companhia das Letras, 2009, 200 pp.

A orelha de Leite Derramado, assinada pela professora Leyla Perrone-Moisés, é um recorte da resenha divulgada no kit de lançamento. Nela, há expressões primorosas em termos de análise de técnica literária como “membro”, “pano de fundo” (sinônimo de cueca), “gênero consagrado” e “baixo contínuo”, mas o que estranhei mesmo é que ficou de fora a comparação do livro de Chico Buarque com Marcel Proust.

Em um leito de hospital, o narrador se anuncia como o centenário Eulálio Montenegro da Assumpção, e conta a enfermeiras e médicos suas memórias (e mais as dos seus antepassados, que remontam ao tempo do marquês de Pombal). A inspiração, o próprio autor confirmou, é sua música O velho Francisco, que tem a seguinte letra:

Acho que fui deputado

Acho que tudo acabou

Quase que

Já não me lembro de nada

Vida veio e me levou

Os capítulos-parágrafos se parecem com as estrofes da música, retomando os mesmos temas com informações novas, mas contraditórias. (E o tamanho dos parágrafos é a única semelhança que vejo com Proust). A diferença entre Francisco e Eulálio é que este é branco, cheio de empáfia, e busca, entre delírios e recordações mal-lembradas, seu único amor, Matilde, filha mais escurinha de um conhecido da família, que se tornou inimigo político de seu pai.

No início, o narrador sugere um homem vivido, que fala de cocaína, cocotes francesas e romances russos, e logo se revela criatura tola e provinciana, que achou que a ostentação de seu nome resistiria ao tempo. Há mão pesada no uso dos termos antiquados, com clichês e chavões tão ridículos como o título. E Eulálio abusa dos apostos, que soam como a fala tipificada de cristão renascido de programa de TV, quando conta que tinha um bom carro, um bom emprego, freqüentava bons restaurantes etc.:

E voltará à baila o assassinato do meu pai, político importante, além de homem culto e bem apessoado. Saiba o doutor que meu pai foi um republicano de primeira hora, íntimo de presidentes, sua morte brutal foi divulgada até em jornais da Europa, onde desfrutava imenso prestígio e intermediava comércio de café.

Por conseqüência, o narrador não transmite intimidade com o mundo que descreve. Mesmo quando chega a citar marcas e produtos, suas recordações são sempre superficiais; recorda-se de “mandar afinar o piano Pleyel da minha mãe”, mas não traz ao leitor nenhuma impressão sensorial ou afetiva do piano. Perto do fim, Eulálio ainda tem a cara-de-pau de se justificar: Digo aos senhores que conheci o vasto mundo, vi paisagens sublimes, obras-primas, catedrais, mas ao fim e ao cabo meus olhos não têm recordação mais vívida que a de uns cavalos-marinhos nos azulejos do meu banheiro.

Junto com as enumerações sem fim, a fala do velho transborda de infinitivos: “o francês, que estimara em um mês sua estadia por aqui, durante quase um ano cansou de lançar projéteis no oceano Atlântico, para impressionar oficiais de baixa patente”. Chico Buarque abusa da construção de verbo no infinitivo, além dos substantivos no plural. E há as frases com infinitivo em ar: “restaurar os móveis; pinçar as moedas. Em er: “para ter alguns segundos; permanecer nas propriedades dele”. Em ir: “traduzir as instruções; repetir velhas lembranças”. E até em or: “expor os trajes”. Em O Vermelho e o Negro, o abade Pirard diz ao arrivista Julien Sorel: “Vejo em você qualquer coisa que ofende o vulgar”. O caráter de Eulálio (e do livro) é o oposto da frase de Stendhal, e podemos dizer: “Vejo em você qualquer coisa vulgar, que ofende”. Só para dar um exemplo da discrição do estilista que anseia ser Chico Buarque, há uma cena em que Eulálio relembra, quando jovem, a bordo do vapor francês Lutétia, uma conversa à mesa com o comandante do navio, junto com Josephine Baker e Le Corbusier. Aí vem a seguinte pérola: “animado, contei da sua vigorosa amiga, La Comtesse, que praticava pompoarismo com moedinha de meio franco, mas o comandante não entendeu direito, e a cantora entabulou assunto à parte com o arquiteto”.

É uma trama que pretende ser uma história de obsessões fantasmagóricas, nunca resolvidas. Eulálio perde cedo a mulher que desejou desde a missa da morte do pai. É incapaz de entender seu amor, e a cada mergulho na memória tenta fixar a imagem de Matilde, que sempre lhe escapa. Teria Matilde morrido de eclampsia, deixando uma filha? Teria fugido com o francês Dubosc? Estaria num sanatório? Quem se importa? Eulálio é um covarde moral e será removido do chalé em Copacabana para um apartamento classe média e daí irá, com a filha ou a neta, para um barraco ao pé do morro onde sua família tinha uma fazenda. E depois para o leito do hospital, com o fêmur fraturado, rumo ao fim.

Tal nome pomposo, Eulálio da Assumpção, traduz-se por “loquacidade presunçosa” e também pela “fala macia do apropriador” (como se apropria da vida e da memória de Matilde). O nome do narrador ainda revela outro nome: a eulalia é a bela fala e, pela tradição ocidental, a assunção de Maria contou com a presença do Arcanjo Miguel. E talvez venha daí a assustadora coincidência temática entre Chico Buarque e Miguel Falabella. Este criou Caco Antibes, que partilharia com o narrador o ligeiro horror aos pobres que o cercam no hospital e o uso e abuso da retórica empolada. Chico Buarque pretendeu plagiar a si mesmo e seu livro virou Sai de Baixo.

E como Sai de Baixo, Leite derramado oferece ao menos uma frase divertida por capítulo. Olhem só os exemplos pescados à toa: “durante um período, para você ter uma idéia, encasquetei que precisava enrabar o Balbino”; “mas mesmo semianalfabeto e piromaníaco arranjou trabalho e prosperou”; “eu gostava de vê-la amamentar, e quando ela trocava a criança de peito, às vezes me deixava bicar no mamilo livre”. Ainda assim, nada suficiente para recomendar a leitura.

Este problema não é de agora. Todos os romances de Chico Buarque sofrem com o foco narrativo; não encontram uma solução para contar a história e fazer avançar a trama. A violência de Estorvo é monótona por conta da cadência à Nouveau Roman, atenuada nos livros seguintes. A terceira pessoa em Benjamin não disfarça a história esquemática e os personagens desinteressantes. Budapeste funciona se o leitor aceitar todas as peripécias avançarem a despeito do narrador (por sorte, estampado na capa está o melhor trecho, que serve como advertência e talvez até como manifesto de liberdade: fui dar em Budapeste).

O uso do narrador pouco confiável e delirante foi uma solução, mas fácil demais, que não segura o livro. No fundo, trata-se de um exercício narrativo bem promovido, pronto para a consagração e o agrado das tietes. Quando se apresentou na FLIP 2009 no papel de mascote favorito da turma, Chico Buarque alegou que escrever era chato. O que é chato mesmo é ler Leite derramado e não poder nem chorar ou se emocionar por ele. E por isso seria de bom tom fazer a pergunta: quem chorará por nós? Se este é o melhor exemplar estilístico da literatura brasileira, como dizem os nossos críticos, ninguém saberá jamais.

Marcelo Ferlin Assami é escritor e jornalista, e teve uma narrativa sua publicada na antologia A visita (São Paulo: Barracuda, 2005).

Os anos de aprendizagem de Augie March

por Jonas Lopes

Dados técnicos: Saul Bellow. As aventuras de Augie March. Tradução de Sonia Moreira. Companhia das Letras, 2009, 704 pp.

São muitos os escritores historicamente injustiçados pelo mercado editorial brasileiro, mas poucos, poucos mesmo, foram tão massacrados quanto Saul Bellow (1915-2005). Seus principais clássicos saíram por aqui nas décadas de 60 e 70 em traduções muito mal cuidadas, e ainda assim heróicas porque únicas. A partir dos anos 80, a Rocco deteve os direitos de publicação de Bellow, mas lançou apenas suas obras mais recentes, sem nunca se dar ao trabalho de voltar aos sensacionais e obrigatórios Herzog, O planeta do Sr. Sammler e O legado de Humboldt, encontráveis somente em sebos. Pois eis que o escritor, nascido no Canadá, mas americano de coração, ganha uma segunda chance. A nova onda de reedições de sua trajetória tem início com As aventuras de Augie March, romance nunca editado no Brasil. Não deixa de ser irônico: sucessores seus como Martin Amis, Christopher Hitchens e Salman Rushdie elegem Augie March como o Grande Romance Americano, e todos eles são figuras fáceis em nossas livrarias. O mesmo vale para Philip Roth, Ian McEwan, Julian Barnes e tantos outros. Bellow é sem dúvida um dos alicerces da ficção de língua inglesa no século 20. Compõe, nas palavras de Roth, a espinha dorsal da literatura americana do período, ao lado de William Faulkner.

O fato de As aventuras de Augie March ser o primeiro fruto do projeto de relançamentos da Companhia das Letras é, além de especial, bastante sintomático. Foi nele, afinal, que Bellow virou Bellow. Ex-trotskista com passagem pela Marinha Mercante na Segunda Guerra Mundial, o jovem professor universitário começou a carreira ficcional com Danging man (1944, traduzido no Brasil como Por um fio) e A vítima (1947). Irregulares, ambos trazem protagonistas angustiados em relação à própria existência, marca da influência de Kafka sobre o autor. O defeito principal dos livros, contudo, está no tom não apenas sério, mas grave; na falta humor e de capacidade de enxergar o que há de patético no que é triste e desesperador. Essa gravidade influencia a prosa de Bellow, até então travada e contida. Em 1948, numa virada de sorte, ele ganha uma bolsa da Fundação Guggenheim e se muda para Paris, onde dá início à redação de Augie March, livro finalizado em Nova York e enfim publicado em 1953.

É covardia comparar o terceiro romance de Bellow a Por um fio e A vítima. A linguagem é leve, embora trabalhada, e os personagens irradiam sangue, suor e lágrimas; ódio e alegria; fervor e descontentamento. Como observou Philip Roth em um ensaio publicado na revista New Yorker, comparando-o com os antecessores, em Augie March “a escala aumenta de forma descomunal: o mundo se infla e os seres que o povoam – monumentais, dominadores, ambiciosos, enérgicos – são pessoas que dificilmente – para usar as palavras do próprio Augie – seriam ‘pisoteadas na luta pela vida’”. Ao longo de 700 páginas, na edição brasileira, acompanhamos o processo de formação dessa monumental, dominadora, ambiciosa e enérgica figura que é Augie March, filho de imigrantes judeus, abandonado pelo pai, irmão do odioso e bem sucedido Simon e do retardado Georgie, neto da assustadora e impositiva vovó Lausch.

As aventuras de Augie March é, acima de tudo, uma novela picaresca, que faria bonito se incluída na tradição dos calhamaços de Charles Dickens – ainda que o agudo e corrosivo espírito de Bellow assemelhe-se mais ao de Jonathan Swift. Aguarde, portanto, um relato episódico, fragmentário, com dezenas de personagens que vêm e vão dentro da trama (ou mesmo que vão e nunca retornam) e situações das mais imprevisíveis e variadas. Entre os acontecimentos vivenciados por Augie estão o aborto de uma vizinha, um roubo de livros, uma incursão pelo mundo do sindicalismo, uma tentativa de domar uma águia selvagem (para Roth, uma passagem entre homem e natureza de dimensão mítica comparável à de Faulkner no conto O urso e no romance Palmeiras selvagens), e até a experiência de ficar à deriva em pleno Oceano Atlântico, depois de ter um barco afundado por submarinos alemães. E por pouco Augie não trabalhou como guarda-costas de Trótski, cena inspirada na biografia do próprio Bellow, que viajou ao México para tentar conhecer o russo – mas o revolucionário foi morto antes de o encontro se concretizar.

À inflexão picaresca de Augie March é preciso acrescentar o componente Bildungsroman, o romance de formação de origem alemã. Como o protagonista de Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, de Goethe, Augie tem o desenvolvimento emocional-intelectual perpetrado pelo convívio com aqueles que atravessam seu caminho. “Por que é que eu tinha de estar sempre topando com teóricos na minha vida?!”, reclama. Ele ouve Einhorn, o vizinho aleijado e especulador, dissertar sobre a importância de ser um homem de ação; ouve Robey, o milionário gago que o contrata como ghost writer, reclamar que “as má-máquinas vão produzir um oceano de mercadorias”; ouve Basteshaw, carpinteiro, filósofo, cientista e parceiro em um bote à deriva no Atlântico explicar seu tratado sobre o tédio moderno, essa “obediência que não é dada voluntariamente porque ninguém sabe como pedi-la”.

Tanta metafísica é a perdição de Augie March, e também o elo entre ele e os futuros heróis de Saul Bellow, aqueles que costumam ser mais associados ao modelo ideal de pensamento do autor, a exemplo de Tommy Wilhelm (Agarre a vida) Moses Herzog (Herzog), Arthur Sammler (O planeta do Sr. Sammler), Charlie Citrine (O legado de Humboldt) e Chick (Ravelstein). De certa forma, eles, em sua angústia cerebral, são Augie amanhã. O menino pobre e aparentemente sem futuro conta os episódios de sua vida como lembranças. Embora não saibamos exatamente tudo o que lhe aconteceu até chegar ao ponto em que ele narra, é possível concluir que houve uma progressão intelectual considerável – há citações às pencas, de Homero, Horácio, Heráclito, Baudelaire, Don Giovanni e, em especial, da Bíblia. Ou seja, As aventuras de Augie March representa nada mais do que o caminho que leva os protagonistas de Bellow à situação desesperadora de acompanhar a falência moral do ser humano, provocada pela mecanização e pela selvageria da sociedade contemporânea. Arthur Sammler lamenta nossa época dada a explicações, de metrópoles “com ruas loucas, pesadelos sujos, monstruosidades vivas”; Mozes Herzog questiona se deve deixar os outros passando fome, enquanto desfruta “Valores antiquados”. Augie March também dá contribuições intelectuais pertinentes, típicas do estilo digressivo de Bellow:

“Todo ser humano tenta criar um mundo em que possa viver, e o que não lhe serve ele muitas vezes não vê. Mas o mundo real já está criado, e se sua invenção não corresponde a ele, mesmo que você se sinta nobre e insista que tenha de haver algo melhor do que isso que as pessoas chamam de realidade, esse algo melhor não precisa tentar exceder aquilo que, no mundo real, pode ser muito surpreendente, já que nós o conhecemos tão pouco. Se é um feliz estado de coisas, é surpreendente; se é triste ou trágico, não é pior do que o que nós inventamos”.

E há em Augie March, claro, a América, grandiosa e ambivalente, cruel e egoísta, tão picaresca quanto o próprio romance. “Sou americano, nascido em Chicago” é a frase que abre o livro, uma declaração orgulhosa até, quase um mantra ou uma carta de intenções. O que a torna mais comovente é o resquício de otimismo que exala, mesmo que a esperança seja dissipada conforme as páginas avançam. “Aqui tem o suficiente para todo mundo de tudo, inclusive penúria”, pensa Augie mais adiante. Tal reflexão o credencia perfeitamente como um desencantado da linhagem de Herzog, Sammler e todos os outros.

Jonas Lopes é jornalista da revista Veja São Paulo. Mantém na internet o blog Gymnopédies (gymnopedies.blogspot.com).

Os aristocratas do espírito

por José Nivaldo Cordeiro

Dados técnicos: Leo Strauss, Direito Natural e História, Tradução de Miguel Morgado. Lisboa: Edições 70, 328 pp.; Miguel Morgado, A aristocracia e seus críticos. Lisboa Edições 70, 440 pp.

Miguel Morgado é um jovem filósofo português ainda pouco conhecido no Brasil. Professor no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica em Lisboa, ensinou na Universidade de Toronto (Canadá) e na Universidade de Indiana (EUA). É autor de vários livros e artigos sobre filosofia política e economia política, publicados em Portugal e nos Estados Unidos. Atualmente, prepara um livro sobre o tema

da autoridade e também a edição portuguesa de Do espírito das leis, de
Montesquieu. Seu livro A aristocracia e seus críticos, produto da sua tese de doutoramento, já nasceu com vocação para clássico e é obra de interesse de todos que se debruçam sobre a filosofia política. Abordou, com muita maestria, um tema raro e difícil, sobre o qual farei a seguir alguns comentários, à guisa de apresentação.

Foi o mesmo Miguel Morgado quem traduziu o grande clássico de Leo Strauss, Direito Natural e História, livro para o qual escreveu uma introdução feita com rara competência, valorizando a obra do filósofo da Universidade de Chicago. Strauss pode ser considerado, sem nenhum favor, um dos maiores filósofos do século XX. É preciso entender o contexto da sua preocupação: o que deu errado no Ocidente? Como as Grandes Guerras foram possíveis? Como Hitler pôde existir? Ao buscar respostas para essas grandes questões do seu tempo, Strauss, ele mesmo um fugitivo da Alemanha de Hitler, pegou o fio da meada. Em paralelo com Eric Voegelin e Michel Villey, identificou a brusca mudança do sentido do direito natural como a causa primeira das grandes tragédias do século XX.

Lembrem-se que até o século XVI existia a idéia, herdada de Platão e Aristóteles, do justo por natureza, e que acreditava-se que a ordem pública espelhava a realidade da ordem da alma individual. O direito natural era uma realidade objetiva, um direito objetivo. A politéia deveria ser buscada primeiro na alma individual, e o direito retirado da observação do homem em sociedade, de acordo com a lei natural. Essa visão será questionada inicialmente por Maquiavel e o farão inúmeros autores da época, sobretudo Grocius e Hobbes, e, a seguir, Locke. O direito natural passará a ser visto como direito subjetivo fundado na razão. A transformação foi brutal. Os autores modernos buscarão nos filósofos da época helenista o suporte para suas teorias.

Strauss identificou em Epicuro o pensador mais relevante a inspirar as tiranias do século XX. Terá sido esta talvez sua mais espetacular conclusão. Assim, Strauss se opõe radicalmente ao positivismo jurídico: “Rejeitar o direito natural é equivalente a dizer que todo direito é positivo, e isso significa que o direito é determinado exclusivamente pelos legisladores e pelos tribunais de diversos países”. Vê-se que a modernidade desloca completamente o direito de qualquer fonte metafísica, passando a fundá-lo exclusivamente na razão. É a plenitude do humanismo que emergiu desde o Renascimento.

Em Direito Natural e História, ele concentrou inicialmente suas críticas em três autores: Tomás de Aquino, Locke e Burke. Penso que sua crítica a Aquino pecou por dois lados: primeiro, porque entendeu que Aquino subordinou a filosofia à teologia, como se isso fosse um problema; segundo, porque não identificou, como o faz Michel Villey, nos nominalistas franciscanos, a verdadeira fonte da corrupção do pensamento filosófico cristão. De fato, o nominalismo será a matriz primeira do positivismo jurídico moderno e a primeira ruptura teórica com Aristóteles. Considero esse o ponto fraco do seu livro.

O livro foi escrito antes que os textos póstumos de Locke fossem dados a público, em 1952, quando se teve a prova definitiva de que ele adotou integralmente as teses de Hobbes, embora o tivesse negado nos livros publicados em vida. Mesmo assim, Strauss percebeu a ligação entre os dois. No parágrafo inicial cita a famosa passagem da Declaração de Independência dos EUA: “Consideramos que estas verdades são auto-evidentes, que todos os homens são criados iguais, que todos são dotados pelo seu Criador de certos direitos iguais, entre os quais estão o direito à vida, à liberdade e à prossecução da felicidade”. Esta Declaração não é mais cristã, mas integralmente estóico-epicuréia, e isso não escapou ao sagaz filósofo de Chicago. Como hóspede do país que o acolheu, foi refinado ao abordar a tão “sagrada” Declaração, sem dizer o que nela de fato está contido: é toda a modernidade no que ela tem de pior. Todos os homens são criados iguais? Nem como recurso retórico isso é um fato, e um filósofo aristotélico, como Strauss, só poderia rir no íntimo dessa tolice.

Ele também critica duramente o positivismo sociológico de Max Weber, a quem dedica o segundo capítulo do livro. A tentativa de fazer ciência social isenta de valores é um dos caminhos que levou ao relativismo jurídico, tese que também será apresentada por Voegelin em sua obra. O primeiro capítulo é dedicado ao historicismo, de que é filho o ideal coletivista, tanto do comunismo como do nazismo. Strauss lembra que “não há direito natural se não houver princípios imutáveis de justiça”. Sem estes a lei corrompida adquire a autoridade da lei natural, como vimos na Alemanha de Hitler. Ora, quando tudo cai no relativismo historicista desaparecem os princípios imutáveis e tudo é permitido, valendo a vontade arbitrária do governante. Deus desaparece. O historicismo é filho direto das idéias que brotaram de Hobbes, Locke e Rousseau. Nous x nomos, o velho duelo de Platão contra os sofistas, novamente revivido. Na modernidade há o triunfo dos segundos. Por isso que Epicuro toma o lugar que antes era de Platão e Aristóteles. O historicismo leva necessariamente ao niilismo.

É interessante agora que passemos ao livro de Miguel Morgado, A aristocracia e seus críticos. É um trabalho exaustivo e por ter origem acadêmica surpreende pela prosa agradável e fácil, não obstante a complexidade do tema abordado. O livro está divido em três partes: na primeira Morgado disseca o conceito de aristocracia, na segunda toma os três principais autores modernos que negam o regime aristocrático, como Maquiavel, Locke e Hobbes; e, finalmente, a terceira parte, conclusiva, na qual analisa os Federalistas norte-americanos e sua preocupação com o governo republicano, a criação de um regime misto que tenha as virtudes aristocráticas conjuntamente com a representatividade permitida pela ordem democrática. Essa questão teórica é da maior relevância e persiste até o presente momento, sobretudo agora que caminhamos para o que Morgado chama de “unidades de soberanias”, a gênese do governo mundial que está no horizonte.

Ele começa sua análise com os filósofos clássicos, que desde a origem enxergaram as três formas puras de regimes políticos: a monarquia, a aristocracia e a democracia e suas variações degeneradas: a tirania, a oligarquia e a oclocracia. Sua narrativa, curiosamente, inicia-se com o debate entre Thomas Jefferson e John Adams sobre a aristocracia como regime ideal. A aristocracia, no dizer de Adams, é a nobreza em geral, demonstrando que nenhum teórico ou homem de Estado pode dispensar a elaboração teórica do governo dos melhores.

Não sem razão Morgado diz que “A Revolução francesa é um momento histórico fundamental a partir do qual o homem europeu se sentiu autorizado a viver na história”. E, a seguir, expõe o problema fundamental: “O sucesso da corrente da democracia coloca-nos apenas perante uma escolha entre o regime democrático, por um lado, e tiranias mais ou menos opressivas, por outro, definidas cada vez mais como negações da democracia vigente no Ocidente, isto é, a democracia liberal”. O elo entre a obra de Morgado e a de Leo Strauss salta aos olhos. O direito natural clássico corrobora o ideal do regime político pensável da aristocracia, tida como o melhor de todos, pois neste regime o poder estaria com os mais virtuosos e a coletividade a ele subordinada voluntariamente, por ver nos governantes pessoas egrégias. Não pode haver formas puras de aristocracias sem a vigência do direito natural como os clássicos o compreendiam. Nem mesmo formas mistas com preponderância aristocrática.

A aristocracia e seus críticos é o explorar, às minúcias, desse tema, mostrando que os grandes pensadores, como os Constitucionalistas norte-americanos, jamais perderam de vista o ideal clássico, ainda que trabalhassem sob a inspiração do jusnaturalismo moderno. Miguel mostrou que o regime republicano é essa forma mista que garante, a um só tempo, a legitimidade da democracia e a escolha dos melhores para o governo, ficando o ato de governar longe das massas, entre os períodos eleitorais.

A discussão é muito atual, porque, como regime pensável ou como ideal buscado, temos hoje não a aristocracia, mas a “verdadeira” democracia, geralmente confundida com a democracia direta. E temos também a tática dos partidos de esquerda, tão em voga no Brasil e nos EUA, de cativar a multidão com promessas de benesses, em troca dos votos para se manter perenemente no poder. O ato de governar, assim, deixou de ficar longe do nível ínfimo das massas, para tentar permanentemente atender a todos os seus apetites.

Na conclusão, Morgado afirma que “os cidadãos democráticos querem viver na igualdade e a democracia não reconhece nenhuma desigualdade essencial entre eles… A realização dos valores democráticos pressupõe a utilidade da hierarquia”. Isso me levou a pensar que o chamado regime misto que ora vigora pode não se manter porque o direito natural clássico foi abandonado. A ameaça totalitária ronda. A realidade da supertributação, o excesso de regulação, até mesmo a unidade das soberanias, tudo ameaça a igualdade almejada, aquela diante da lei. O ato de governar está cada vez mais condicionado pelas multidões. Vivemos mesmo uma forma de oligarquia burocrática, que se espalha pelo mundo.

José Nivaldo Cordeiro é economista e mestre em administração de empresas pela Fundação Getúlio Vargas.

Uma simples contadora de histórias?

por Dionisius Valença

Dados técnicos: Brad Gooch. Flannery – A Life of Flannery O´Connor. Little & Brown, 2009, 448 pp.

I like to forget that I’m just a story-teller.
(Flannery O’Connor)

Flannery O’Connor foi “uma contadora de histórias”, segundo suas próprias palavras. Mas não era apenas uma contadora de histórias. Em sua prosa, O’Connor encontrou, na verdade buscou resgatar, aos olhos de seus leitores, o estranhamento com que a Graça, o Mal e o Pecado Original atuam neste vale de lágrimas. Esse estranhamento ocorre em nossas vidas quando nos damos conta do grotesco, da violência ou da nossa incapacidade de reconhecermos que há uma inexpugnável diferença entre o que cremos ser o certo e o que é certo perante os olhos de Deus.

Este é o chamamento, o furor violento que Flannery usa tão bem em suas histórias para fazer-nos ver o bizarro que nos cerca, e assim aceitarmos melhor nossa parcela nessa realidade criada para nós.

Nascida no sul dos Estados Unidos (cujo imaginário coletivo remonta a racismo, intolerância, lugar onde a odiosa América branca e conservadora cria e recria seus pecados), filha de pais católicos, apaixonada por pássaros, especialmente o pavão (símbolo do Cristo na iconografia cristã) e “abençoada” com uma doença incurável que viria a matá-la precocemente, O’Connor usou desses elementos para criar uma obra que por muito tempo foi considerada “menor”. Mas com o passar dos anos, mostrou-se mais consistente, com uma visão penetrante da alma humana, que muitos de seus pares contemporâneos não atingiram. E mesmo hoje em dia, apenas consigo pensar em Cormac McCarthy como seu herdeiro no uso do grotesco e da violência. Não menos relevante é a presença da compaixão e da Graça em ambos.

Mas muitos leitores podem cair em uma armadilha ao ler as obras da escritora georgiana, apegando-se apenas ao grotesco ou à violência que ela tão bem descreve, ou ainda, procurando denuncias sociais ou raciais em seus escritos. Não são essas as motivações da escritora; ela não rebaixa o ato de escrever, coisa tão comum e esperada dos escritores neste nosso século de poucas luzes e ainda mais nesse nosso tão inculto Brasil.

E para corrigir essa visão pobre, medíocre e míope de sua obra, de grande ajuda é a recente biografia da escritora escrita por Brad Gooch. Devo confessar que não sou o maior fã de biografias, especialmente de escritores, por carregarem uma tendência pela busca de escândalos, interpretações da vida dos escritores que mais reforçam seus preconceitos ou visões distorcidas (tem sempre um biógrafo louco para provar que Shakespeare era homossexual e que isso realmente importa para entendermos Hamlet). Mas Gooch se sai bem na tarefa, até por razões óbvias; afinal, Flannery O’Connor não teve uma vida das mais “modernas”.

Brad Gooch nasceu na Pensilvânia, mas desde 1971 vive em Nova York e acalentou o projeto desta biografia por pelo menos três décadas. Atraído por O’Connor à época em que se graduava na Columbia University, especializando-se em literatura medieval e renascentista, Gooch identificou na autora sulista as mesmas características que o atraiam num homem do século XIII; “humor, corpos e faces demoníacas, ação direta, ameaças de violência e, acima de tudo, um sutil elemento de busca espiritual em um universo negro animado pela graça e significado”.

Em 1979, com o lançamento do livro The Habit of Being, uma coleção de cartas editada pela amiga da escritora, Sally Fitzgerald, Gooch aprofundou ainda mais sua admiração pela autora. O livro também revela o impacto que o pensamento de São Tomás de Aquino teve na obra de O’Connor. Imbuído da idéia de escrever a biografia (isto ainda em 1980), Gooch entrou em contato com Sally Fitzgerald que, educadamente, lhe sugeriu que buscasse outro assunto, já que ela já estava escrevendo uma biografia literária da sua amiga.

Duas décadas se passaram e a tão aguardada biografia nunca viu a luz do dia. Sally Fitzgerald morreu em 2000, e deixou apenas um manuscrito inacabado do livro. Já em 2003, o editor de Brad Gooch perguntou-lhe se não teria interesse em escrever outra biografia (Gooch é autor do livro sobre o poeta Frank O’Hara). Sem pensar em outra opção, o biógrafo iniciou seu projeto. Sete anos depois, e quase trinta após seu primeiro “encontro” com a autora, eis a primeira grande biografia de Flannery O’Connor.

Gooch não está preocupado em criar um guia de leitura ou interpretar seus textos, vinculando-os aos acontecimentos de sua vida. Mesmo nas revelações mais íntimas, como seu relacionamento com Erik Langkjaer (recriado como o vendedor de bíblias do conto “Gente boa da roça”), de quem recebeu, talvez, seu primeiro e único beijo, ou a triste e conturbada convivência com sua mãe, há espaço para interpretações maiores e mais profundas.

Mérito do autor, sim, mas muito se pode dizer da própria escritora, que desde cedo teve a presença marcante da morte em sua vida. A morte de seu pai, quando era ainda adolescente, e a descoberta, aos vinte e dois anos, de que carregava a mesma moléstia, fez com que buscasse em sua formação respostas para a condição humana – o isto é, a certeza inescapável de nossa mortalidade.

Mas ao contrário da covardia existencialista, ou do niilismo burro, Flannery sempre buscou resgatar a nossa condição maior de filhos de Deus. Compreendeu que essa condição não é facilitadora, atenuante ou leve, mas, bem ao contrário, dura, cheia de dor e sangue. E, todavia, ela foi capaz de reconhecer nas penas coloridas de um pavão a promessa divina de redenção.

Uma vida tão prematuramente iniciada nos mistérios da morte pode parecer melancólica, triste e vazia. Felizmente, Gooch está à altura da biografada; consegue escrever com humor, com delicadeza e respeito sobre os momentos que, na mão de outro, poderiam soar apenas patéticos.

Flannery O’Connor passou grande parte de sua curta vida “looking down the barrel of the Misfit’s shotgun”, nas palavras do autor, mas isso não impediu que essa sulista de nascença, católica de formação e escritora por vocação se deixasse levar pelas cegueiras pós-modernas. É preciso estar plenamente desperto para aceitar a longa jornada na noite escura que é nossa vida. E mais: perceber que não há esperança ou redenção possível sem aceitar o inexorável cuidado de Deus.

Dionisius Valença é gestor de empresas e colaborador da Dicta & Contradicta.

Contra a perfeição ou A desilusão dos crentes políticos

por Bruno Garschagen

Dados técnicos: Paul Hollander. The End of Commitment: Intellectuals, Revolutionaries, and Political Morality in the Twentieth Century. Ivan R. Dee, Publisher, 2006, 416 pp.

Por que alguns indivíduos são mais bem-sucedidos em resistir à desilusão política do que outros? Por que alguns são mais bem-sucedidos em romper com sua crença político-ideológica e decretar o fim do compromisso? Paul Hollander, investigador do Davis Center for Russian and Eurasian Studies da Universidade Harvard, parte desses dois problemas-chave para esboçar o perfil psicológico e moral dos comunistas que, tendo vivido sob tais regimes, conseguiram ou não completar a ruptura.

Em The End of Commitment: Intellectuals, Revolutionaries, and Political Morality, Hollander é hábil ao advogar a tese segundo a qual a mudança está alicerçada no limiar moral do indivíduo, “a capacidade variável de tolerar ou recusar determinadas ações políticas ou transgressões morais”. A relação entre as crenças políticas e as respectivas finalidades e os critérios morais individuais é configurada ou, de certa maneira, determinada, justamente pelo limiar moral.

Tal entendimento só é óbvio para os não-crentes ou céticos quanto à capacidade da política de redimir ou aperfeiçoar o ser humano. É uma característica essencial dos utópicos e/ou revolucionários: crer de forma resoluta na perfeição do ser humano não importa quais os meios e instrumentos usados para tal empreendimento. Michael Oakeshott, em The Politics of Faith & The Politics of Scepticism, chamou de política de fé a ação do poder central que tenha por objetivo a perfeição da humanidade.

O  escopo da investigação de Hollander são as fontes e a natureza da desilusão com os regimes comunistas, “quando os crentes (políticos) concluem que as suas crenças e compromissos já não merecem o seu apoio e dedicação, que os fins pretendidos são irrealizáveis e os meios usados na sua procura são inaceitáveis e moralmente imperfeitos”.

Em The God that Failed, Louis Fischer argumentava que o apoio genérico de um indivíduo a uma causa era mais determinante do que todo o resto. A postura do crente político, para usar a expressão de Hollander, é proteger das ameaças e ataques o objetivo final sobre o qual sua crença se baseia. Mesmo que as experiências concretas sejam uma prova da inviabilidade do projeto ainda hoje muitos intelectuais persistem em isentar as ideologias dos exemplos concretos de sua aplicação.

Issac Deutscher, celebrado biógrafo de Trótski, considerava que os fins do projeto comunista eram imunes à crítica e que buscar as causas profundas desses mesmos fins era não só errado como inútil. Deutscher defendia a perfeita compreensão dos horrores stalinistas para que esses não fossem vistos como horrores puros e, assim, pudessem ser apreciados.

Outro que trilhou percurso parecido foi o provedor de iniqüidades filosóficas Jacques Derrida: defendeu o marxismo e a experiência soviética como forma de sustentar a utopia comunista. “Todos os homens e mulheres, no planeta inteiro, são hoje, até um certo ponto, herdeiros de Marx e do marxismo, herdeiros da absoluta singularidade do projeto – ou de uma promessa. (…) A forma desta promessa, ou deste projeto, continua a ser absolutamente única. (…) Uma promessa messiânica, mesmo que não tenha sido cumprida (…) terá imprimido uma marca inaugural e única na história”. Eric Hobsbawm, o historiador-comediante, continua a fazê-lo. Giorgy Lukács, na mesma linha de amor incondicional pela humanidade, cunhou um lema exemplar: “mesmo o pior socialismo é melhor do que o melhor capitalismo”. São alguns exemplos de intelectuais que resistiram à desilusão (capítulo 9).

O livro de Hollander, que ganhou edição portuguesa em 2008 (O fim do compromisso: intelectuais, revolucionários e moralidade política, Colares: Editora Pedra da Lua, 478 pp.), de onde extraí os trechos traduzidos, apresenta perfis críticos de vários políticos, intelectuais, jornalistas et caterva que dedicaram grande parte das suas vidas à causa na União Soviética, Leste Europeu, Vietnã, China, Cuba, Nicarágua, Etiópia, Europa e Estados Unidos.

Eis o padrão revelado pelo estudo de Hollander: todos os crentes políticos apresentados sofreram uma dolorosa, hesitante e gradual experiência de desilusão política porque suas ilusões eram profundamente pessoais e comparáveis à fé religiosa. “Apesar de atéia, a nossa época é o completo oposto da ausência de religião”, notou Eric Hoffer. Os notáveis estudos de Norman Cohn (The Pursuit of the Millennium) e Thomas Molnar (Utopia: the Perennnial Heresy) mostram as raízes religiosas dos movimentos revolucionários de que o comunismo, ou a esquerda radical, é o mais poderoso representante.

A obra também aponta a mentalidade religiosa como uma semelhança entre os crentes das utopias comunistas e de engenharia social revolucionária, e os terroristas islâmicos. Hollander faz a ressalva de que a substância dessas crenças é muito diferente, mas há aí um equívoco se considerarmos que a mentalidade religiosa, a estrutura lógico-estrutural dessa mentalidade, é a substância mesma do modo de pensar e agir dos revolucionários ou utópicos.

O livro de Hollander é um alerta contra a idéia da perfeição do ser humano ou a possibilidade de aperfeiçoá-lo, assim como a completa inviabilidade de projetos políticos baseados nesse princípio e que contemplem transformações sociais radicais conduzidas por um poder concentrado e ilimitado. Os indivíduos investigados na obra mostraram a capacidade ilimitada do ser humano de fantasiar e se enganar para preservar as crenças e ilusões tenebrosas; também demonstram que é possível romper com o compromisso e abandonar as fantasias e falsas esperanças na construção de um futuro perfeito.

Bruno Garschagen é jornalista, mestrando em Ciências Políticas pela Universidade de Lisboa e gerente de relações ibero-americanas da Ordem Livre.Org.

Sexo, morte e indignação

por Tomás Creus

Dados técnicos: Philip Roth. Indignação. Tradução de Jório Dauster. Companhia das Letras, 2009, 176 pp.

Sexo e morte. Essas duas palavras podem resumir bastante bem os principais temas de grande parte da obra de Philip Roth, e seu mais recente romance, Indignação, não é exceção à regra. No entanto, o trabalho não é mera repetição de velhos temas e, apesar da sua brevidade – ou talvez justamente por causa dela –, o livro tem forte impacto sobre o leitor.

Em uma análise superficial, isto é, se nos contentássemos em ler apenas a orelha do livro ou suas primeiras páginas, a história poderia de fato causar uma certa impressão de dejà lu. Afinal, estão ali todos os temas usuais de Roth desde O Complexo de Portnoy. Personagem judeu de Newark? Confere. Relação problemática com o pai? Confere. Garotas perturbadas? Confere. História americana recente revisitada através de personagens ficcionais? Confere. Sexo e morte? Confere, confere.

No entanto, o romance tem uma força vital que faltava a alguns trabalhos anteriores, como o algo aborrecido Fantasma sai de cena. (Aviso ao leitor incauto: quem não quiser saber nada sobre a história deve parar de ler esta resenha agora mesmo).

O grande acerto do romance é a escolha do protagonista, Marcus Messner, rapaz de 18 anos que, para fugir de um pai que da noite para o dia se torna superprotetor, vai estudar em uma universidade numa pequena cidade de Ohio, de maioria e tradição cristã (Messner é judeu e da Costa Leste, portanto um peixe fora d’água). Embora presente, o anti-semitismo joga papel relativamente menor no romance. A grande preocupação de Marcus é tirar boas notas para não ser convocado para a guerra da Coréia como soldado raso, o que ocorre com a maioria daqueles que não concluem a universidade, e que, também na maioria dos casos, conduz ao risco de uma morte brutal. O detalhe é que, enquanto conta a sua história, o narrador já está (ou acredita estar) morto.

Calma, leitores. Essa não é uma grande revelação: a descobrimos já no primeiro terço do livro. De qualquer modo, mesmo ali não chega a ser surpresa. A presença da morte é visível desde o início do romance, aliás desde as primeiras linhas. O pai de Marcus, um açougueiro kosher (e já a profissão, cujos detalhes sangrentos Roth descreve de maneira bastante precisa, alude às atrocidades da guerra), fica obcecado com a possibilidade da morte do rapaz, passando a agir de modo sufocante.

Em uma resenha sobre o livro publicada no jornal Folha de S. Paulo o colunista português João Pereira Coutinho pergunta-se se Roth teria lido Memórias póstumas de Brás Cubas. Se não leu, Roth ao menos tem conhecimento do livro, tendo-o até mencionado em recente entrevista para o jornal inglês The Observer. E, de fato, em comum com o romance de Machado o livro tem a preocupação com a memória, o passado, e a inútil tentativa de compreendê-lo. Será que Marcus estaria vivo se as coisas tivessem ocorrido de modo apenas ligeiramente diferente?

O sentimento que dá título ao livro está presente em cada uma de suas linhas. Há certamente mais de um quê de Holden Caulfield em Marcus. Também ele é um adolescente rebelde, e também aqui estamos nos caretas anos 50. O nome do reitor, aliás – Caudwell –,
talvez seja uma referência ao famoso personagem de J. D. Salinger. Mas a indignação de Marcus vai muito mais adiante que a do seu antecessor literário, conduzindo-o mesmo à morte.

Poderia parecer que o livro simplesmente critica a América dos anos 50 e sua caretice. A fictícia “Nota Histórica” final (a meu ver, desnecessária) parece mesmo dar a entender essa leitura. Afinal, já nos anos 60 o liberalismo triunfaria de modo inexorável, tornando irrelevante o protesto estudantil que conclui a novela. No entanto, a questão é muito mais complexa. Marcus morre por seus ideais? Mas quais são esses ideais? No fim das contas, o reitor, nêmese do protagonista, não é assim tão insensato. Marcus, que o confronta citando textualmente Bertrand Russel e recusando-se a assistir às obrigatórias sessões na capela – não por ser judeu, mas por ser ateu –, não tem motivos para tanta indignação, especialmente dadas as circunstâncias históricas, e dado o fato de que ele próprio escolheu sair de Newark e ir para Ohio. No fim, apesar de todos os problemas em que se envolve, ainda recebe uma chance final para redimir-se, mas recusa-a, selando seu destino. Morre por profundos ideais ou por culpa de uma mera indignação adolescente? Mais sentido parece fazer o discurso final aos estudantes por parte do presidente da universidade, apesar de ser proferido por um republicano algo caricato (Roth é um democrata de carteirinha): “A História não é o pano de fundo, a História é o palco, e vocês estão no palco”. E a peça sendo representada é uma tragédia grega.

Porém, no fim das contas, a indignação do narrador e de Roth é mesmo com o caráter aparentemente aleatório da vida – e da morte. Com o “modo incompreensível em que as nossas mais banais, incidentais e mesmo cômicas escolhas atingem o resultado mais desproporcional”. Se há alguma moral da história, esta é a deste pequeno livro, que pode ser lido em um par de horas mas atinge o leitor com a força de uma baioneta chinesa no estômago.

Tomás Creus é escritor e cineasta, com doutorado em Literatura Comparada pela UFRGS, é atualmente professor visitante de literatura na University of California em Los Angeles (UCLA).

A solidão dos realistas

por Martim Vasques da Cunha

Dados técnicos: René Girard. Coisas ocultas desde a fundação do mundo. Tradução de Martha Gambini. Paz & Terra, 511 pp.; Lucien Febvre. O problema da incredulidade no século XIV – A religião de Rabelais. Tradução de Maria Lúcia Machado. Companhia das Letras, 513 pp.

Ah, a França. O que dizer deste país? O que ele nos deu? Como contribuiu para o tesouro da humanidade? Sabemos nos últimos meses que, pelo mundo da cultura nacional, se comemora o tal do “Ano da França”, uma forma de recordar o evento da Revolução Francesa, que pregava liberdade, fraternidade, igualdade e madame Guillotine. Mas a França também nos deu croissants, bistrôs, Godard, Truffaut, Rohmer, Bresson (o Henri-Cartier e o Robert), Emmanuelle Béart, Sophie Marceau – além de, claro, René Girard e Lucien Febvre.

Quel? Os dois últimos tiveram livros importantes publicados no Brasil – livros que, de certa maneira, mostraram uma nova forma de pensar em seus respectivos campos de conhecimento: a antropologia e a história.

Girard já é um velho conhecido da casa. Teórico do desejo mimético, em que descobrimos que não desejamos por nós mesmos e sim porque imitamos os desejos dos outros, i.e., de quem admiramos, invejamos, nos apaixonamos etc., ele começou como crítico literário de primeira categoria (com Mensonge romantique et verité romanesque, de 1962), partiu para os estudos antropológicos com o assustador A violência e o sagrado (1972) e, ao sintetizar as duas linhas de trabalho, adentrou a densa selva da hermenêutica bíblica. Em especial a do Novo Testamento, com descobertas surpreendentes sobre como a vinda de Cristo seria a revelação não só de Deus encarnado na Terra como também de toda a matriz de violência da cultura humana – as tais Coisas ocultas desde a fundação do mundo, título do livro de entrevistas que é publicado agora pela Paz & Terra e que, quando lançado na França em 1977, deu notoriedade ao pensamento girardiano.

Lucien Febvre é, junto com o historiador Marc Bloch, um dos pais dos Annales, a escola que mudou o paradigma da pesquisa historiográfica no Ocidente. Seus sucessores provam que a fórmula deu certo. Desde Fernand Braudel, que passou pelas plagas da Rive Gauche du Tietê (a conhecida USP), passando por Jacques LeGoff, até o nosso Sérgio Buarque de Holanda (especialmente em Visão do Paraíso), os Annales – o nome do grupo vem da criação, em 1929, de uma revista chamada Annales d’histoire économique et sociale – formaram uma nova perspectiva que vê a história não mais como uma sucessão de fatos dentro de um molde teórico pré-estabelecido, e sim como uma “história-problema”, que não admite soluções fáceis e que, sobretudo, abre outras possibilidades para compreender o presente do próprio historiador. O livro que resume todas essas tendências e as leva à perfeição – mas também ao seu impasse, como veremos a seguir – é O problema da incredulidade no século XVI – A religião de Rabelais (1948), e foi publicado com cinqüenta anos de atraso, em uma ação inusitada da Companhia das Letras, editora acostumada a lançar somente obras de quem está no hype internacional.

O que os dois livros têm em comum é o fato de que ambos os autores tentam, cada um a seu modo, lançar as novas bases para uma pesquisa que analise o fenômeno religioso fora de qualquer padrão dogmático ou institucional. Sem o saberem, fazem parte daquele seleto grupo que Eric Voegelin, em seu History of Political Ideas, chama de realistas espirituais. Trata-se de uma “tradição” subterrânea, que começa aproximadamente com Dante Alighieri e se estende até sujeitos díspares e heterodoxos como Thomas Hobbes, Jean Bodin, Blaise Pascal, Mestre Eckhart, chegando até Nietzsche, Kierkegaard, Dostoiévski e, nos últimos tempos, Alexander Soljenítsin. Descontentes com as instituições políticas e culturais que os circundam, estes realistas se distanciam intelectualmente delas e começam a observar o real além do pequeno “mundo simbólico” (cosmion) criado pelas circunstâncias, descobrindo outras formas de expressão que, muitas vezes, desagradam às mesmas pessoas que não estão preparadas, seja por ignorância, medo ou interesse, para ouvi-los de alguma forma.

Numa comparação entre Girard e Febvre, sem dúvida o primeiro ganha em termos de ousadia. Não por qualquer desrespeito religioso – pelo contrário, Girard mostra um verdadeiro temor e tremor quando toca nos assuntos do sagrado –, mas sim porque ele não tem medo de abordar a revelação do Evangelho até as últimas conseqüências – em especial, as conseqüências em relação ao comportamento humano. Antes disso, porém, Girard faz questão de mostrar suas descobertas dentro de uma moldura aparentemente racional e científica – uma forma de despistar os incautos e tirar sarro de seus companheiros de trabalho. Assim, Coisas ocultas desde a fundação do mundo é dividido em três partes distintas que se comunicam ironicamente entre si por terem um respectivo rival mimético. Na primeira parte, Antropologia Fundamental, temos Girard a brigar com Lévi-Strauss e seus epígonos, querendo provar a qualquer custo que os antropólogos não conseguem perceber o assassinato fundador que origina toda a cultura humana. Consegue o feito? Mais ou menos: Girard parece esconder o jogo para seus interlocutores (os psicanalistas Jean-Michel Oughourlian e Guy Lefort) e, entre uma crítica e outra, o livro simplesmente pára no ritmo de leitura, deixando o leitor sem saber se deve continuar ou não. Deve sim, pois a bomba será jogada na segunda parte, A Escritura Judaico-Cristã, onde Girard lança as bases de sua interpretação mimética do Novo Testamento – ou melhor, segundo ele, são os próprios Evangelhos que revelam isto. Para o francês, a vinda de Cristo denuncia o mecanismo mimético do mundo da violência, i.e., o nosso próprio mundo, e o resolve através da renúncia a qualquer espécie de ação que interfira na vontade de Deus: a de se mostrar como um poder que recusa a manutenção do desejo e que não é responsável por qualquer ato que o homem possa cometer contra si mesmo. Deus não tem culpa de nada; o ser humano mata porque quer esquecer que mata.

A tal “bomba” é a visão que Girard tem sobre o Cristianismo histórico, considerado por ele como uma versão deturpada de algo que, na falta de nome melhor, é chamado de “Cristianismo sacrifical”. De acordo com a sua leitura dos Evangelhos, a paixão de Cristo não teria sido um sacrifício. Jesus teria de morrer de qualquer maneira porque se continuasse a viver neste mundo (o da violência onde vivemos), seria obrigado a praticar algum ato terrível para permanecer nele. Contudo, antes que o leitor se apresse em julgar o raciocínio e chamá-lo logo de “herético”, devemos lembrá-lo que o termo “sacrifício” tem um sentido peculiar na obra de Girard; para ele, “sacrifício” é o resultado chocante do mecanismo mimético, o momento em que as disputas que destroem a sociedade chegam a um ápice que só será resolvido através da morte de um inocente – o “bode expiatório”. Dessa forma, como Cristo não é um “bode”, pois Ele é a única vítima na história humana que tinha plena consciência de seus atos, a Paixão não pode ser considerada um “sacrifício” lato sensu, simplesmente porque era a sua função, conforme a vontade do Pai, denunciar a violência da qual se funda a cultura do homem. (Para o alívio de muitos, Girard consideraria uma outra forma de ver a morte de Jesus como um “sacrifício diferenciado”, em um livro publicado anos depois, Um longo argumento do princípio ao fim. Uma maneira elegante de não deixar Jesus ser apenas uma peça de sua grande teoria sobre a antropologia mimética).

Estas breves pinceladas dão mostra de como Girard não tem medo do risco e da polêmica – características que são extrapoladas na terceira parte, Psicologia Interdividual, uma divertida discussão sobre o desejo moderno, obviamente usando Freud como contraponto. Aqui, o desejo tem uma estratégia própria, uma autonomia de estar sempre dois passos à frente do sujeito, e assim toma as mais diferentes formas, como hipnose, possessão, homossexualismo, sado-masoquismo, inveja – enfim, atitudes que são incentivadas pelos intelectuais pós-modernos e que marcam o cotidiano do nosso mundo contaminado de mimetismo.

Lucien Febvre não conhecia o desejo mimético de René Girard, mas ele começa o seu tratado sobre a religião de Rabelais com uma descrição deliciosa de como era o ambiente intelectual dos humanistas franceses do século XVI, repleto de rivalidades e de acusações mútuas. É claro que, antes de tudo, Febvre tem uma missão: a de provar que os grandes estudiosos da obra de François Rabelais, o autor de Gargântua e Pantagruel (1532-1554), em especial Abel Lefranc e Louis Thuasne, estavam errados ao anunciarem que o grande escritor da França era, afinal, um “ateu”. Consegue?

Chegou quase lá. A primeira parte de O problema da incredulidade é uma prova da força do método dos Annales: através de cartas, documentos, poemas, tratados médicos, sátiras, Febvre cruza os dados e chega à seguinte conclusão – a de que Rabelais nunca poderia ser ateu. E por dois motivos: o primeiro é que o grande escritor estava muito além do seu tempo e o segundo é que Rabelais, paradoxalmente, era uma amostra perfeita da devoção humanista que marcou aquela época de transição entre o fim da Idade Média e o início do Renascimento.

É na segunda parte do livro, quando Febvre mostra o contexto histórico, que as coisas começam a derrapar. Descobrimos que a pesquisa foi feita não para reabilitar Rabelais por si mesmo, mas sim para recolocar Erasmo de Roterdã, o autor de Elogio da loucura (1515) e grande amigo de Thomas More, no seu devido lugar de glória. Febvre é um admirador de Erasmo e, mais, identifica-se com suas posições humanistas sobre a religião. Considera-a como um fato que deve ser defendido na liberdade individual; e que Cristo não é uma pessoa com quem se possa estabelecer uma relação e sim uma simples filosofia do viver. Ora, Rabelais, que gostava do exagero das descrições e do corpo, podia se identificar com algumas dessas idéias; mas será que a sua grandeza literária se iguala a de Erasmo, o primeiro dos intelectuais ocidentais, um epígono que, por odiar os escolásticos em decadência, achava que toda a filosofia anterior, composta por gigantes então já reconhecidos como São Tomás, Santo Alberto Magno e Duns Scott era farinha do mesmo saco?

É claro que não. Erasmo é o fundador daquilo que Paul Johnson chama de “Terceira Força”, aparentemente imparcial em relação aos radicalismos da Reforma Protestante e da Contra-Reforma, mas que, no fundo, transforma-se também em um outro radicalismo, até mais perigoso, porque camuflado nas vestes da “tolerância” e da “pluralidade”. Febvre cai nessa armadilha direitinho – e o que temos é um livro que, apesar de ter a palavra “problema” no seu título, não o apresenta de forma alguma. Afinal, se, como o historiador afirma, a questão do século XVI era “crer ou não crer”, e a resposta é simplesmente a primeira opção, onde estaria o problema? Além disso, como afirmar que não existia a “incredulidade”? Antes do século XVI, Santo Anselmo e São Tomás já discorriam sobre o stultus, o estulto, o néscio, o insensato que, segundo o salmo 52, dizia em seu coração que Deus não existia e, por isso, fechava-se a toda e qualquer realidade transcendente. Isso não seria a atitude de um “incrédulo”? Eis o nó górdio de qualquer historiador que siga o método dos Annales: ele só se preocupa com o “impacto social” de uma idéia, não com o fato de que a tal idéia – no caso, a incredulidade – já poderia existir no íntimo de uma pessoa. A reverberação em massa da “não-crença” (que, muito tempo depois, chamaríamos de “ateísmo”) no tecido da sociedade ocidental aconteceria somente nos séculos XVIII e XIX, com o impacto da Revolução Francesa e o surgimento das ideologias positivistas e coletivistas.

Enfim, esta é a solidão dos realistas que tentam olhar além das paróquias do espírito. De um lado, René Girard que, enfrentando um grande risco, faz observações corretas sobre o mundo moderno, mas também pode cair na arapuca de ver tudo conforme a teoria do desejo mimético – inclusive o próprio Jesus Cristo. Do outro, Lucien Febvre, que resolve enquadrar um dos maiores escritores franceses na gavetinha particular desta peça de museu que se tornou Erasmo de Roterdã. O que fazer? Dançar um tango argentino? Talvez, mas, no caso desta resenha, prefiro beber uma boa taça de vinho e gritar a plenos pulmões: Vive la France!

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista, mestre em Filosofia da Religião pela PUC-SP, co-editor da Dicta & Contradicta e coordenador do Departamento de Humanidades do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS).

Caçadores de mitos

por Marcio Antonio Campos

Dados técnicos: Ronald Numbers (org.), Galileo goes to jail and other myths on science and religion.
Harvard University Press, 2009, 302 pp.

No começo de 2009, enquanto aguardava a divulgação do resultado do vestibular da Universidade Federal do Paraná, fiz um teste: abordei alguns vestibulandos e perguntei o que eles tinham aprendido sobre Galileu Galilei no ensino médio ou no cursinho. Apenas um adolescente se lembrava de algo: que o italiano tinha sido perseguido por afirmar que a Terra era redonda. Desde então não faço mais esse tipo de enquete, até porque a Harvard University Press lançou uma coletânea abrangente das respostas que inevitavelmente sairão da boca de vestibulandos, professores, jornalistas e “intelectuais”: é Galileo goes to jail and other myths on science and religion, organizado por Ronald Numbers.

A relação entre ciência e religião é um dos temas mais importantes do século XXI, ao menos na metrópole, onde a cada ano são lançados inúmeros livros sobre o assunto e organizam-se debates televisivos em universidades envolvendo gente como Michael Shermer, Dinesh D’Souza, Richard Dawkins e John Lennox (basta procurar no YouTube). Por aqui, o mercado editorial ignora solenemente autores como Karl Giberson, Kenneth Miller, Ian Barbour e John Polkinghorne (apenas um livro de cada um desses dois últimos autores recebeu edição brasileira), enquanto publica a rodo as obras de ateístas militantes, fazendo à sensatez uma única concessão ao ter lançado A linguagem de Deus, de Francis Collins. Como conseqüência, por pouco ler e muito repetir, o cérebro dos “formadores de opinião” secou a ponto de perpetuar irrefletidamente os mitos do livro de Numbers, apesar das evidências contrárias – que não são poucas.

Os 25 ensaios – escritos por 12 ateus ou agnósticos, 5 protestantes tradicionais, 2 protestantes pentecostais, 1 católico, 1 judeu, 1 muçulmano, 1 budista e 2 autores com “um lado espiritual independente de religiões”, como dizem no Orkut – estão ordenados cronologicamente, iniciando com o surgimento do Cristianismo e terminando com os debates sobre o criacionismo e a secularização da cultura ocidental moderna. Isso significa que o desfile de cérebros parte de Agostinho, com o seu De Genesi ad litteram, e passa por Avicena, Giordano Bruno, Copérnico, Descartes (descrito como “o mais incompreendido dos filósofos”), Newton, até chegar a Darwin (nada menos que 9 dos 25 mitos abordam a teoria da evolução) e Einstein – sem falar, claro, de Galileu, a cujo respeito foi lançado, também este ano, um livro muito completo sobre seu processo inquisitorial: Galileu, pelo copernicanismo e pela Igreja, de Annibale Fantoli.

O objetivo do livro não é defender nenhuma religião em especial – sequer tenta defender a religião em si: um dos ensaios questiona a “lenda piedosa” sobre uma suposta reconversão de um Darwin moribundo, e outro desmente a crença de Einstein em um Deus pessoal. O capítulo 9 diminui o impacto do Cristianismo na construção da ciência moderna, mas recorrendo a um espantalho: não consta que Rodney Stark, Stanley Jaki ou Thomas Woods considerem o Cristianismo a única base da ciência moderna, desprezando as contribuições clássicas, judaicas ou islâmicas. Ainda assim, no fim das contas a religião sai ganhando nesse trabalho de desconstrução, mas apenas porque na maioria das lendas os vilões andam de batina e não de jaleco branco.

Alguns mitos, à primeira vista, parecem simplórios demais para merecer ensaios no livro. Os cristãos medievais acreditavam que a Terra era plana? Mas Stephen Jay Gould já não tinha dedicado um trecho de seu Pilares do tempo, na década passada, para desmentir essa idéia? Pois Lesley Cormack, autora do texto sobre a “Terra plana”, mostra que, no mesmo ano em que Gould publicava sua obra sobre ciência e religião, eram lançados livros didáticos de ensino médio nos Estados Unidos reforçando a lenda – que, a julgar pela resposta do vestibulando da UFPR, segue firme e forte. Aliás, todos os capítulos têm como epígrafes textos que deram origem ou que mantêm viva a mitologia. Assim, vemos que em 2006 há quem ainda afirme que os calvinistas escoceses se opunham à anestesia durante o parto porque ela contrariava a determinação divina de Gênesis 3;16, ou que a Igreja Católica havia proibido a dissecação de cadáveres.

Entre os criadores de mitos, no entanto, os mais citados no livro editado por Numbers são os norte-americanos Andrew Dickson White e John William Draper, autores de A History of the Warfare of Science with Theology and Christendom (1896) e History of the Conflict Between Religion and Science (1874) respectivamente. Podemos dizer que são os pais do conflito entre fé e ciência. A invenção – ou reinterpretação – dos fatos feita por White e Draper continua tão popular que só é possível concluir que seus discípulos, defensores modernos da guerra entre ciência e religião, os Hitchens, Dennetts e Dawkins da vida, podem até pensar que estão levando seus leitores ao século XXI, mas na verdade estão é mantendo todo mundo preso no século XIX.

Marcio Antonio Campos é jornalista, editor da Gazeta do Povo, em Curitiba, e mantém o blogue Tubo de Ensaio, sobre ciência e religião (http://www.gazetadopovo.com.br/blog/tubodeensaio).

Al dente

por Túlio Sousa Borges

Dados técnicos: John Dickie, Delizia! The Epic History of the Italians and Their Food. Hodder & Stoughton, 2007, 404 pp.

Devido às suas raízes na distorção moderna do significado de cultura, aquilo que denominamos História Cultural não é apenas difícil de definir, mas também comumente pernicioso. E, no entanto, desse terreno pedregoso e aparentemente infértil, surgem, quase milagrosamente, belas flores e frutos. Cabe especial destaque à monumental obra de Jacques Barzun, historiador que completou singelos cento e dois anos no dia 30 de novembro.

Não são apenas anciãos, porém, que se destacam na disciplina, ou melhor, nesse campo de estudos. Jovens autores têm despontado com notáveis trabalhos. É o caso do britânico Orlando Figes, autor de Natasha’s Dance: A Cultural History of Russia (2002). Seus estudos são ambiciosos e, conseqüentemente, repletos de erros factuais. Não obstante, constituem interpretações de inegável mérito.

O counterpart de Figes em Estudos Italianos é John Dickie, do UCL (University College London). Em 2004, Dickie publicou Cosa Nostra: A History of the Sicilian Mafia, um premiado best-seller que prende a atenção do leitor ao revelar fatos tão sinistros quanto inacreditáveis.

As mesmas qualidades que fizeram de Cosa Nostra um livro tão marcante (familiaridade com a Itália; faro para o inusitado; pesquisa impecável; prosa efetiva) entraram na confecção de seu tomo seguinte, Delizia! The Epic History of the Italians and Their Food (2007). É raro poder falar com tanta propriedade sobre degustar ou devorar um livro de história. Afinal de contas, Dickie não trata de uma culinária qualquer, mas da mais popular do planeta. As celebrações do Dia Mundial do Macarrão em 25 de outubro são apenas uma das provas. Pareceria inclusive razoável afirmar que a expressão “gastronomia italiana” seria – a exemplo de “música italiana” – uma espécie de tautologia.

Mas assim como adagio ou allegro descrevem os movimentos de uma peça musical, é praticamente impossível tratar da boa mesa sem recorrer ao vernáculo francês. (A própria palavra “gastronomia” é nada mais nada menos do que uma adaptação francesa de um termo do grego antigo). De fato, houve um período durante os séculos XVII e XVIII em que Paris era a capital gastronômica do mundo e a influência francesa era quase tão poderosa na cozinha quanto na política.

Aliás, um dos vários méritos de Delizia! é demonstrar que se não caminham necessariamente juntas, política e comida estão sempre muita próximas: dos opulentos banquetes da Casa D’Este em Ferrara aos certificados de origem da União Européia, passando pelo cozinheiro anarquista que tentou assassinar o Rei Umberto quando o monarca recém-coroado visitava Nápoles em 1878.

Como de costume, Dickie não deixa o lado negro da história de fora. O autor se explica logo na introdução por meio de uma citação de Walter Benjamin: “não há documento de civilização que não seja, ao mesmo tempo, um documento de barbarismo”. Difícil não pensar também na antológica fala de Harry Lime (Orson Welles) no filme The Third Man (1949), aquela em que compara a Itália renascentista, encharcada dos crimes atrozes dos Borgias e dos triunfos estéticos de Da Vinci e Michelangelo, com a plácida Suíça que produziu no mesmo período histórico somente o relógio cuco.

Tudo muito apropriado. Afinal de contas, como o título deixa bem claro, não se trata meramente da história da cozinha italiana, mas da história dos italianos e de sua cozinha, o que é muito diferente. E realmente uma história de dimensões épicas, sem dúvida – ainda que o uso do adjetivo no título pareça, a princípio, hiperbólico. Dickie tem um apetite gargantuesco. E qual o problema disso se o próprio Marc Bloch já comparava o historiador a um ogro faminto por carne humana?

Com inegável talento literário, Dickie consegue conjugar esses traços a uma prosa que tem a economia como principal virtude.         Isso só ocorre porque o autor adotou um enfoque preciso, que impede fugas ao tema – tentação constante em um projeto dessa natureza. Historicamente escrupuloso, o livro desmente uma infinidade de mitos a respeito da cozinha italiana, sobretudo o de que ela seria originalmente camponesa. Na verdade, mostra-nos Dickie, ela é uma criação tipicamente urbana. Daí a identificação de alguns famosos produtos e pratos com cidades, como o prosciutto di Parma. É por isso também que cada capítulo constitui uma narrativa autônoma que se passa em uma importante cidade em uma determinada época (“Rome, 1468”; “Florence, 1891”). No fim das contas, a cozinha italiana está intimamente ligada à formação e afirmação de identidade – também nacional, mas especialmente local.

O trabalho é tão bom que mereceria uma edição um pouco melhor. E o autor demonstra sofisticação a quase todo momento. Cai uma só vez na vulgaridade, quando abre parênteses para mencionar que o Imperador Marco Aurélio e seu filho Cômodo foram respectivamente interpretados por Richard Harris e Joaquin Phoenix em Gladiador. (Em vez disso, por que não falar em Alec Guinness e Christopher Plummer no subestimado A queda do Império Romano (1964), de Anthony Mann?).

Mas esse pequeno detalhe não depõe tanto assim contra um ótimo livro. Delizia! confirma a história como palco da diversidade, no qual o civilizado e o bárbaro, o clássico e o kitsch, se confundem quase que imperceptivelmente.

E se o leitor me permite, à guisa de despedida, uma dica: não leia o livro com pressa. Ele foi feito para ser degustado, um capítulo por vez.

Túlio Sousa Borges é bacharel em Relações Internacionais, escreve sobre política e cultura. Assina uma coluna no Portal Brasil (www.portalbrasil.net).

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>