Múltiplas filosofias em enredos múltiplos

por Joel Pinheiro da Fonseca

Todo filme tem uma filosofia, um código de valores e juízos metafísicos acerca da realidade. Não há como escapar. Mesmo o filme de ação mais desmiolado tem a sua mensagem. Quem é o herói, e quem é o vilão? O que os diferencia? Qual a natureza do conflito? Quem vence, e como? Um pouco de análise revelará a filosofia por trás das cenas. Todo filme a tem, mas só alguns deixam isso claro. E há certos tipos de filme que, de si mesmos, já conduzem à indagação filosófica. É sobre um desses tipos que quero discorrer: os filmes multi-plot.

O filme multi-plot (literalmente “multi-enredo” ou “enredos múltiplos”) é aquele com diversas linhas narrativas paralelas, ou seja, que conta histórias independentes. Não se trata, é importante frisar, de narrar uma mesma história de diferentes pontos de vista; aqui são tramas diferentes, que poderiam ser contadas isoladamente. O gênero data pelo menos do clássico Intolerância (1916), de D.W. Griffith – quatro narrativas com um mesmo tema em diferentes períodos históricos – embora a grande maioria seja bem mais recente. Alguns são inclusive bastante famosos e já devem ser conhecidos dos leitores (Babel, Crash, As horas, Snatch). Sempre foi muito fácil para mim gostar desse tipo de filme porque ele proporciona uma visão global das relações humanas, constrói um pequeno universo do qual emergem facilmente questões éticas e metafísicas. A contemplação da big picture toma o primeiro plano; cada drama particular é inserido numa realidade maior e relacionado com outros à sua volta.

As relações entre as tramas costumam ser de três tipos. A primeira é um tema geral em comum – por exemplo, o racismo em Crash (Paul Haggis, 2004). Outra forma de ligação entre as histórias são laços prévios, inicialmente desconhecidos, entre personagens de tramas distintas, cujo descobrimento nos dá uma nova perspectiva dos acontecimentos. Em As horas (Stephen Daldry, 2002), descobre-se que um poeta deprimido do presente é o filho pequeno da protagonista de outra trama, que se passa cinqüenta anos antes – e isso permite entender melhor sua situação atual. Por fim, as histórias podem se cruzar de formas inesperadas, mostrando os efeitos não-intencionais e freqüentemente não-conhecidos das ações de personagens de uma trama sobre os de outra. Assim, em Eu, você e todos nós (Miranda July, 2005), um bate-papo anônimo na Internet liga um garoto do ensino primário a uma curadora de museu, e lhe dá, inadvertidamente, a idéia de uma nova exposição, o que permite a uma artista iniciante – que está apaixonada pelo pai do menino – expor suas obras pela primeira vez.

Os modos como as tramas se cruzam variam muito. Em 21 gramas (Alejandro González Iñárritu, 2003), um acidente liga os personagens: um homem morre atropelado e seu coração é doado. Acompanhamos os dramas do atropelador, da viúva e do recipiente do coração, inicialmente desconhecidos um do outro. Em Babel (também de Iñárritu, 2006), pessoas em quatro continentes do mundo globalizado se inter-relacionam sem o saber. Já Traffic (Steven Soderbergh, 2000) acompanha o comércio de drogas do México aos EUA, do ponto de vista de traficantes, policiais, políticos e usuários. Em toda essa variedade, a mesma toada: exercemos, uns sobre os outros, influências das quais temos muito pouca consciência.

Forma, não conteúdo

O multi-plot é uma forma narrativa, e portanto não tem um gênero, um conteúdo, pré-definido. Há, por exemplo, comédias (a panfletária O poder vai dançar; o besteirol Dez Mandamentos muito loucos), romances melosos (Banquete do amor, Simplesmente amor) e até ação (Pulp Fiction, Snatch, a série televisiva Lost), mas o gênero que mais se destaca é o drama, isto é, histórias de relacionamentos conturbados, de tragédias humanas, de remorsos e arrependimentos profundos. Tendo relações como centro, é natural também que muitos sejam voltados para o público feminino, ou que tenham uma sensibilidade feminina, que é mais ligada a relacionamentos. É o caso de Coisas que você pode dizer só de olhar para ela (2000) e Nove mulheres (2005), ambos de Rodrigo García; Eu, você e todos nós – drama leve e divertido sobre o sentido da vida e a busca de significado e amor numa vizinhança de classe média; e o mais melancólico As horas. Enfim, seja voltado às mulheres ou unissex, é o drama que predomina.

E não me parece ser sem motivo, dado que os relacionamentos humanos são fonte (e também cura) de muitos sofrimentos. Além disso, a explicitação dos diversos encadeamentos causais desconhecidos presentes na vida humana recupera algo daquele sentimento da tragédia clássica de que o futuro dos homens depende de fatores muito além de sua vontade e compreensão, o que suscita questões acerca do destino, do acaso e do livre arbítrio. Filmes como 21 gramas, por exemplo, ao burlar a ordem cronológica, reforçam ainda mais esse sentido de inevitabilidade (que, nesse caso, acaba sendo negada). A cena inicial já mostra o clímax da história, uma execução a sangue frio, que fica marcada como o destino para o qual, por caminhos ainda desconhecidos, as diversas histórias convergirão inexoravelmente. Algo similar se dá no seriado Lost: sabemos que todos os personagens se encontrarão numa ilha misteriosa, e a história pregressa de cada um, recheada de coincidências, números que se repetem e laços de parentesco desconhecidos, nos leva a crer que não é mero acidente que todos tenham ido parar lá.

Embora o drama seja o principal gênero do multi-plot, e os melhores multi-plot sejam dramas, é exatamente no exagero do caráter dramático das histórias que vejo o principal perigo, a maior tentação, que um bom multi-plot deva evitar. O drama trata do sofrimento humano. Com muitos personagens principais, esse sofrimento pode ser multiplicado, intensificado, forçando uma catarse na base do maior exagero que o diretor consiga imaginar; a razão é chutada para escanteio. O espectador vê uma situação de tamanha desgraça, dor ou desespero que é finalmente dominado por ela. Entra aí, creio, a noção popular de que o sofrimento é mais profundo, mais real, do que a felicidade. A existência é má, com raros momentos de alegria para torná-la suportável. Esse vício marca até mesmo filmes que considero bons, como 21 gramas e Traffic (ambos dotados de um clima pesado e melancólico), e também outros, que considero inferiores, e que descambam sem reservas para o verdadeiro dramalhão, como Babel e Crash.

Há uma pretensão de profundidade que não vai além da aparência, sustentada por exageros e manipulação sentimental. A mensagem de Crash é a bem conhecida “somos todos racistas”, falso mea culpa (pois justifica a falta, tornando-a universal) comumente enunciado por quem quer alardear, para outros ou para si mesmo, a própria humildade e, portanto, superioridade moral. (Será que parte do sucesso do filme deve-se à platéia partilhar dessa sensação ilusória de pureza de caráter?) Algo similar ocorre no brasileiro Quanto vale ou é por quilo? (Sérgio Bianchi, 2005) que, apesar de ter um ou outro achado cômico de valor (a sátira mordaz feita à cultura das ONGs, por exemplo), quer é forçar goela abaixo sua agenda política de que mesmo relações profissionais honestas são exploratórias e que a sociedade contemporânea reproduz, de forma velada, o sistema escravocrata. Não há argumentos, apenas cenas exageradas de sofrimento humano para embriagar de culpa e indignação moral a “elite branca” que o assiste.

Alguns filmes, como Pecados íntimos (Todd Field, 2006), apesar de, aparentemente, seguirem a mesma linha, surpreendem o espectador: o filme inteiro esboça a idéia batida de que a vida comum da classe média é, mesmo quando não aparenta, um poço de solidão, tristeza e hipocrisia, e que a felicidade ou não é possível ou o é apenas violando todas as normas sociais vigentes, o que sempre acaba em tragédia. Mas, quando tudo parece se encaminhar a esse desfecho, a história dá uma virada de 180 graus e os personagens centrais acordam para o fato de que vinham perseguindo sonhos infantis, e que a felicidade é possível sim no mundo real. Um certo toque de humor e ironia que perpassa o filme todo contribui para que ele nunca resvale para a autopiedade e o transforma, no fim das contas, numa afirmação jubilosa do livre arbítrio.

Os grandes multi-plot, na minha opinião, são aqueles que conseguem estabelecer um certo distanciamento de seus personagens, o que deveria, aliás, ser fácil, dado que não há apenas uma trama para dominar a tela. A perspectiva global que ele proporciona coloca-nos no lugar de um observador privilegiado. A grande questão é qual tipo de observador somos levados a encarnar.

Três variações sobre um mesmo tema

Para melhor ilustrar meu ponto, quero comparar três filmes que, na minha opinião, são ótimos exemplares do multi-plot. Todos mantêm esse distanciamento entre espectador e personagens, seja por meio da edição, da trilha sonora, do humor ou por cenas nas quais predomina a fala. Tal distanciamento permite o desenvolvimento de uma mensagem mais profunda e ponderada do que meras platitudes ou do que sentimentos vagos de culpa e pena. Contudo, noto que eles partem de filosofias bem diferentes entre si. E como podem, então, serem todos bons?

Repito aqui o que disse no início: todo filme tem uma filosofia. E agora me justifico. É impossível colocar na tela a totalidade de tudo o que acontece ou poderia acontecer. Apenas uma parte será mostrada. Por isso, a criação da obra passa necessariamente pela seleção dos elementos que serão retratados, e nos quais, portanto, o espectador deverá prestar atenção. Dou um exemplo: mortes acidentais acontecem a toda hora no mundo real, e isso não quer dizer nada. Mas se o protagonista de um filme morre por acaso num acidente banal, isso tem muito significado. Dentre tudo que poderia ocupar um lugar central, o criador do filme escolheu o acidente. Isso nos indica que o sucesso ou o fracasso das empreitadas humanas é definido pela sorte; o universo é hostil, e reage de formas inesperadas e ininteligíveis. Dessa maneira, o artista é como Deus, e a obra de arte é o universo por ele criado, baseado na metafísica com a qual ele interpreta o mundo real.

O valor artístico de uma obra está mais no talento dessa recriação do universo do ponto de vista do autor do que na verdade ou falsidade de sua mensagem, mesmo porque dificilmente qualquer uma terá a verdade completa. Obras com filosofias opostas podem retratar legitimamente aspectos diversos da realidade. E mesmo uma obra com uma filosofia da qual discordamos oferece-nos a oportunidade de experimentar visões de mundo radicalmente diferentes das nossas, o que tem um valor em si. Não é preciso partilhar do pessimismo sombrio de Hamlet para reconhecer seu valor magistral. É mais importante que a recriação tenha profundidade (isto é, que vá além dos meros lugares comuns de sua época) e seja rica, fiel à observação que o artista faz da realidade, no enredo e nas caracterizações. Assim, apresento sem receio, como exemplares do melhor que os multi-plot têm a oferecer, três filmes com filosofias antagônicas.

Short Cuts

O primeiro deles é Short Cuts (1993), de Robert Altman, que é um mestre dessa forma narrativa, tendo dirigido vários multi-plot: Nashville, M.A.S.H., Gosford Park. Os três filmes que escolhi tratam de personagens problemáticos, mas os de Short Cuts sem dúvida são os mais perturbados. É difícil imaginar um rol similar de neuróticos, deprimidos, depravados, psicóticos, bêbados, drogados, ressentidos e inseguros que sobrevivem e se multiplicam em Los Angeles; não no submundo do crime, nos esgotos da cidade ou no manicômio, mas em vizinhanças pacatas. Não gosto, a princípio, de filmes que degradam a natureza humana e mostram a perversão como se fosse a norma; contudo, Short Cuts consegue – mérito dos atores – transmitir a humanidade dos personagens (que não são veículos artificiais de mensagens políticas, mas pessoas de carne e osso, ainda que um tanto desfiguradas) e nos interessar por seus dramas, cuja variedade é tamanha que todo mundo deve encontrar algo para se identificar. Não há aqui apenas o juízo cínico ou lamurioso de que o homem é mau. O homem é um ser degradado, quebrado, mas a reação apropriada a ele (e, afinal, a nós) não é a melancolia complacente de quem “não vê mais jeito”, e sim o interesse por seus dramas e até alguma diversão com suas neuroses.

O menino Casey anda pela rua; Doreen, pobre garçonete casada com um bêbado contumaz, guia desatenta e o vê em cima da hora. Freia bruscamente, evitando um acidente grave, mas ainda assim acerta-lhe de leve. Muito preocupada, quer levá-lo ao hospital, mas ele se levanta sozinho e assegura-lhe de que está bem. Ela vai embora aliviada por não ter causado uma tragédia. Mal sabe ela que Casey sofreu uma concussão e morreu pouco tempo depois no hospital e que sua mãe, inconsolável, sofre ainda com os trotes telefônicos do confeiteiro da vizinhança, que encontra nessa brincadeira cruel a maneira de se vingar dela por não ter ido pegar o bolo que encomendara para o aniversário do garoto. Eventos fortuitos, minúsculos, ocasionam tragédias de grandes proporções, sem que ninguém saiba de onde vieram e nem se alguém é o culpado.

Pessoas comuns agem vergonhosamente: um grupo de amigos descobre um cadáver no rio onde passariam uns dias pescando, mas nem por isso interrompem o programa, e avisam as autoridades só depois de terminada a diversão; um homem possesso pela ira destrói a casa da ex-mulher. O adultério é a norma, e provoca ciúmes doentios ou, o que é pior, indiferença. Jerry Kaiser, que mais tarde se revelará um psicopata no sentido estrito do termo, sente-se mal porque sua esposa, Lois, atendente de tele-sexo, não tem por ele a mesma paixão demonstrada pelos clientes; procurará satisfação de outras formas. Essas diversas histórias se cruzam de várias maneiras mas sem nenhum sentido maior. O niilismo de fundo é sublinhado na parte final do filme, em que um terremoto assola Los Angeles. Intervenção divina? Evento grandioso que botará ordem na casa? Que nada! O resultado é aleatório: há criminosos que são recompensados e vítimas que são ainda mais castigadas. Nada é resolvido e nada é aprendido.

Entrar em cada um dos muitos enredos do filme não vem ao caso; quero é captar a essência de sua mensagem, a filosofia que o anima: não há ordem maior e nem justiça por trás dos acontecimentos. Pelo contrário, a moral da história é que não existe moral da história. O universo é indiferente a seus habitantes, não faz nenhum tipo de contabilidade, não há retribuição ou desfecho, e as histórias que nele se passam não são pautadas por nenhum padrão que o tornaria inteligível, satisfatório, ao observador.

Devo ressaltar que a atmosfera do filme não é de um pessimismo lúgubre ou de tragédia pesada, e nem de sordidez e sujeira (como estamos acostumados no cinema nacional). Como eu disse, há um distanciamento dos dramas expostos na tela. Sentimo-nos como uma espécie de divindade que acompanha as ridículas tribulações humanas, sem nunca ter de – ainda bem! – mergulhar nelas. E não uma divindade particularmente cristã, preocupada com o homem, e sim um deus desprendido e brincalhão, como a criança que, embora verdadeiramente interessada nas formigas, não liga muito, e até se diverte, ao ver o formigueiro desmoronar.

Magnólia

É muito fácil traçar paralelos entre Magnólia (Paul Thomas Anderson, 1999) e Short Cuts, e não é para menos: Paul Thomas Anderson obviamente se inspirou no trabalho de Altman. Mas embora a estrutura e certos elementos da história sejam os mesmos (até o elenco tem repetições: Julianne Moore vive, em ambos, uma adúltera), as diferenças filosóficas são profundas.

Aqui também temos personagens, digamos, problemáticos: Linda é casada com um milionário bem mais velho, Earl, e percebe que o ama só quando ele se encontra à beira da morte. O filho de Earl, um guru de auto-ajuda sexual masculina, esconde de todos seu verdadeiro passado. Jimmy é um velho apresentador de TV que não sabe, ou procura não saber, por que sua filha, uma jovem viciada em cocaína, o odeia. Stanley, um gênio mirim da televisão, ressente-se de ser tratado como um objeto pelo pai e pelos telespectadores. Já Donnie é um ex-menino prodígio, agora na meia-idade, que vive solitário e deprimido em busca de um amor ilusório. Vidas infelizes rumo a desfechos infelizes.

Notavelmente, há casos de integridade moral, como Jim, um policial que, embora um tanto simples e retraído, é um exemplo de virtude do início ao fim. Outro é o enfermeiro Phil, que se desdobra para reunir o pai moribundo a seu filho. Todos, bons e maus, buscam a felicidade; só não sabem onde encontrá-la. A lição é que o sofrimento não cessará até que mudem de rumo, desistam das más escolhas que insistem em perpetuar. “It’s not going to stop, until you wise up and give up”, diz a trilha sonora, que é cantada pelos próprios personagens numa cena insólita (exemplo do anti-realismo que distancia emocionalmente o espectador). Todos sofrem com o remorso; percebem que algo está errado e têm a vontade de melhorar, o que não significa que conheçam a solução.

Ligado ao desejo de melhorar, de encontrar a verdadeira felicidade, está o arrependimento, sentimento que, felizmente, não recebe o tratamento padrão que Hollywood costuma lhe desferir. Ao invés de glorificar uma existência integralmente sem culpa, ou seja, que busque o “sentir-se bem” a todo custo, o filme dá a ela seu valor, o que culmina numa longa fala de Earl sobre a importância do arrependimento, do qual sua vida esteve cheia.

As relações humanas podem causar sofrimento, mas são também a única esperança de superá-lo. Magnólia frisa a necessidade que o homem tem de se conectar com outro, indo além das convenções sociais, das conversas vazias, do orgulho e das mentiras sobre si mesmo. O policial honesto e a jovem viciada se apaixonam; o menino prodígio quer ser visto como ser humano, não brinquedo. Pai e filho, afastados há muito tempo, buscam a reconciliação. Todos procuram conectar-se de uma forma real e curar as feridas passadas. Construíram barreiras emocionais para se proteger, mas precisam ter a coragem de atravessá-las se quiserem sair do vazio existencial em que se encontram. E tudo isso sem exagerar na pieguice, que é mantida sob controle por uma boa dose de humor, estranhices e complexidades de caracterização. Há muitas lágrimas, mas muitos risos. A vinheta de abertura, que narra algumas coincidências altamente improváveis com conseqüências tragicômicas, dá o tom da película.

Numa alusão clara a Short Cuts, o ato final envolve um fenômeno da natureza. Não um abalo sísmico, produto de forças cegas e insensíveis, mas uma chuva de sapos, evento com conotações sobrenaturais (alusões sobrenaturais, em geral detalhes de segundo plano, permeiam o filme todo, ainda que nenhum personagem, a não ser o policial Jim, manifeste religiosidade). A chuva de sapos coloca tudo em seu lugar, impedindo um suicídio, dando ao pai uma última visão do filho, devolvendo ao policial a arma perdida, etc. Depois dela, há um sentimento geral de que a antiga sujeira foi limpa e é hora de recomeçar.

Qual é, então, a mensagem de Magnólia, a filosofia por trás da tela? Os homens são seres profundamente mal-ajustados, poderiam ser melhores do que são (e em geral têm consciência disso), e o universo é tal que, malgrado os erros e vícios humanos, existe uma ordem maior que dirige tudo para um fim reconfortante, dando a todos a possibilidade de se redimir. Uma providência benévola opera nos bastidores, sorrindo condescendente para as tolices da humanidade, e organizando todos os eventos de forma que o mal concorra, em última análise, para o bem.

Treze Visões

O próprio título de Treze visões (digo o título original Thirteen Conversations about One Thing – treze conversas sobre um mesmo assunto; Jill Sprecher, 2001) nos leva a procurar, em suas diversas histórias, um tema de fundo. Acredito que esse tema, o assunto das treze conversas, seja a felicidade. Como o título também indica, o filme é centrado em conversas, mas não fica só nelas: os pontos filosóficos dos diálogos são materializados na trama de forma bastante natural. As quatro narrativas centrais giram em torno da possibilidade de se ser feliz, e até que ponto isso depende ou não da sorte.

Deve-se notar, de partida, a escala menor, mais íntima, tanto no número de personagens, quanto no escopo de seus sofrimentos e dramas, todos muito mais comedidos. Troy, jovem advogado de sucesso, acredita que cada um constrói sua própria felicidade com o próprio trabalho, independentemente da sorte, mas um golpe de azar muda sua perspectiva. Se em Short Cuts um acidente aparentemente inofensivo resultou fatal, aqui um atropelamento aparentemente fatal, no fim das contas, não o foi. Troy atropela uma moça, Beatrice, e foge, certo de que ela morreu. Surpreendentemente, ela sobrevive, sem que ele o saiba, e o remorso por ter tirado uma vida o corrói por dentro. Já Beatrice, pobre diarista que acreditava na bondade do universo e que tudo acontecia por um motivo, volta profundamente desiludida do hospital, cínica com relação à vida, tornando-se amarga e desagradável. Tanto a idealista ingênua quanto o jovem em ascensão se desencantam com o mundo; a primeira ao se deparar com a dor e o descaso alheio, e o segundo ao confrontar o mal do qual ele mesmo é capaz.

Gene (interpretado pelo excelente Alan Arkin) é um homem frustrado com a carreira e com a vida, e desconta essa frustração demitindo um subordinado simplesmente por ele ser alegre. Mais tarde se arrepende e quer ajudá-lo. É possível a felicidade? Gene acha que não. O homem tem desejos inalcançáveis; e se porventura os alcança o estado final é ainda pior. “Que seus desejos se realizem!”, diz uma antiga maldição cigana que Gene adora repetir.

Por fim, Walker é um professor universitário em crise de meia-idade. Trai a mulher e compra um carro novo, mas nada disso lhe traz a satisfação almejada. Muito preocupado consigo mesmo, tem de repensar a própria vida ao descobrir como seu descaso tem afetado negativamente aqueles à sua volta.

A tese central do filme é que a felicidade ou a infelicidade são resultado não tanto dos fatos e das condições objetivas da vida, mas da disposição com que os encaramos e nos relacionamos. Uma resposta fria, insensível, do professor ao aluno, é o estopim de um suicídio. Por outro lado, um sorriso amistoso a uma desconhecida leva-a a apreciar o valor da vida. A vida é repleta de relações, seja na família, no trabalho, na faculdade, na rua; se elas forem pautadas pela benevolência e valorização mútua, os homens serão felizes; se pautadas pela frieza, pela desconfiança e pela insensibilidade, o resultado será a frustração. A sorte existe, para o bem e para o mal, mas não define nosso sucesso ou fracasso existencial. Como em Magnólia, todos querem melhorar, mas não há uma intervenção sobrenatural para dar-lhes um empurrãozinho na direção certa. Não há chuva de sapos; no máximo uma confluência de eventos que não parece ser de todo desprovida de sentido. Pode-se falar até de uma providência, mas sem dúvida uma providência discreta, cuja ação sutil depende de uma disposição interior do observador para ser percebida e interpretada como tal. Acaso ou ordem maior? Treze visões não dá a resposta, deixando-a a cargo do espectador e dos personagens (especialmente Beatrice), para os quais a preocupação com uma transcendência que dê sentido a tudo surge em diversos momentos.

A história tem, presumidamente, começo, meio e fim, mas o filme quebra a cronologia, colocando os quadros não na ordem em que aconteceram, e sim numa ordem que priorize o desenvolvimento filosófico da idéia central. É apenas por pistas e detalhes de cena que o espectador, com algum esforço, infere a seqüência real dos fatos. Essa opção narrativa manifesta uma tese metafísica. A vida parece, a cada instante, uma série de eventos sem significado; a sorte governa. É só meditando sobre o passado e integrando as experiências vividas numa estrutura inteligível que se apreende o sentido da existência e os caminhos pelos quais a realidade segue. Caminhos que, à luz do futuro, revelam-se bastante razoáveis. Não se chega a uma conclusão final: há personagens para quem o futuro brilha; outros ainda têm muitos problemas a resolver. O importante é que, seja pelas boas conseqüências de uma atitude positiva ou pelos efeitos destrutivos de uma atitude negativa, lições foram aprendidas por eles e, espera-se, pelo espectador, que é como um interlocutor silencioso das treze conversas.

A moral das histórias

Como ficou claro, o sofrimento humano é um campo fértil para a arte; certamente é daí que têm saído os melhores multi-plot. Sinto falta, contudo, de filmes menos tragados pelo sofrimento, menos centrados na fuga da dor. Imagino o potencial de um filme sobre pessoas ativamente em busca de objetivos nobres, embora conflitantes, tendo que se haver umas com as outras, ora em conflito, ora em cooperação, para atingir os fins almejados, tanto no plano das ações quanto no das idéias. Seria uma proposta nova, que fugiria do drama padrão.

Bom, devaneio sobre um futuro incerto. No presente, as lições dadas pelas obras-primas do gênero são valiosas: o bom multi-plot, por sua própria estrutura que valoriza o contexto geral e não o caso particular, ganha muito com um certo comedimento e distanciamento racional, condições necessárias de um valor duradouro. Já o dramalhão, o sofrimento brutal e irrestrito que cria uma ilusão de profundidade, embora cause impacto instantâneo, é rapidamente esquecido. O bom cinema convida à indagação filosófica; e a filosofia, por sua vez, contribui para uma maior apreciação do cinema.

Joel Pinheiro da Fonseca é economista pelo Ibmec-SP e bacharel em Filosofia pela FFLCH-USP.

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