Poemas de “A Canção do Pão Líquido”

por Igor Barbosa

I.

Não é em pouca coisa que eu creio.
Por exemplo: o trabalho e o milagre
têm a mesma intenção; como a ale
compartilha a substância com a lager

muitos bens obtemos pelos dois meios –
mas se às vezes mandamos pro vinagre
o próprio esforço, e se o único freio
que nos salva (a nós, cabeças-de-bagre)

da queda inevitável neste carro
desatrelado vem do alto – que seja,
não rejeitemos o éter nem o chão:

a um se deve a matéria do pão
e ao outro a idéia da cerveja.
Bendito seja o céu e seja o barro!

II.

Eu já tive visões e lembranças
que não me interessaram de fato;
tive também suficiente tato
para não aumentar a lambança

e negá-las. Aceitei o gato
e o cão, e a mão da criança
que não era tão eu. Fiz a lança
e lancei-a no breu. Por um “mato,

mato ou morro” fui dando um lustre
em cima de outro lustre, pois eu
preferia costurar um véu
na cabeça da besta. O ajuste

para os chifres viria depois:
importava impor forma à matéria
antes que se dissesse “Já era,
olha o desastre feito!”. Por dois

ou três meses, andei sendo algoz
de uma liberdade – quem dera
fosse verdade – era uma guerra
contra o ar e contra a voz

que andou dando forma ao que existe.
Não sei se estava certo ou errado,
mas sei que por um e por outro lado
Eu vivia (?) cansado e triste.

III.

Estávamos cobertos de fumaça
por dentro e por fora.
Ainda se passa
conosco o mesmo que naquela hora;
Pois não termina
o que se comemora
entre uma enchente quieta e uma cortina
gasosa como a seda;
entre uma tina
(em que se lava tudo que arremeda

o que resta de nós depois das quedas)
e o oráculo, ou mina
levada aos dedos;
Não acaba o que passa pela usina
onde ainda agora
expôs-se a assassina
das coisas: A mania das desoras,
a impermanência fácil.
A demora
salva a uva da vida de ser passa.

IV.

Um pouco por termos sido
e outro tanto
por ser sempre cedo demais

Um pouco por sermos gastos
e ainda
por deixarmos mais

bastos os provimentos do que podia
ter sido montado como o ponto
no qual ancoramos a cor do dia
em que passamos a ser – a ter ido

um passo além dos feridos
e dos santos
óleos de décadas atrás

antes da fome e do fausto
e da vinda
de nós mesmos insistentes –

falhamos, não foi? É de rir.
Não é de rir? Então chora.
Um pouco por ser agora,
tudo bem, mas não demora:
Há que arrumar o daqui
por diante.

Há que amarrar com barbante
as horas que têm que ir
daqui por diante embora.

V.

Um amigo me diz que está andando
com suas coisas. Outro, que até
o fim do ano casa. Um terceiro
lamenta perder todo dia a fé

e ir buscá-la nos achados e perdidos.
Um outro nem está mais procurando.
Aquele disse que gostou do cheiro
da moça do guichê, e pensa em quando

poderá lá voltar para a rever.
Eu recomendo que logo (o ouvido
aceita o que quiser). O derradeiro
é mais organizado: Tem gemidos

guardados desde quando abriu os olhos
para quando precise. Quero crer
que não será tão cedo, mas só quero,
não posso escolher.

VI.

Nada terá sucesso
fora da medida em que seja corpo
atirado aos desvãos e às arestas
do que é largo e pode ser profundo;

fora desta metáfora
espacial que não sistematiza
o mundo e suas festas

nada será inteiro;
e sendo parcial e consumido,
nada, nada jamais será amado
pelo que seja ainda

exceto por condescendência –
a velha companheira de viagem
que nos tem arbitrado desde sempre
e quase inteiros nos tem mantido.

Igor Barbosa, poeta e tradutor, estudou Filosofia e Literatura Inglesa na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e é autor de “Um Fevereiro”, publicado para download gratuito em http://umfevereiro.wordpress.com/download. Também escreve em seu blog http://igorbarbosa.apostos.com.

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