Quero minha metafísica de volta!

por Renato José de Moraes

Com o perigo de sermos da espécie de ensaísta que, para falar de qualquer coisa, tem que começar com Adão e Eva, antes de tratar de The unity of philosophical experience, de Étienne Gilson, parece-nos importante comentar sobre aceitação da filosofia de São Tomás de Aquino na Idade Média e na Idade Moderna, bem como sobre o surgimento da neoescolástica, no final do século XIX. Assim, será possível contextualizar melhor a importância do nosso autor e do livro cujo lançamento não houve.

A filosofia tomista aos trancos e barrancos

A trajetória do pensamento de Tomás de Aquino (1225?-1274) na história da filosofia é acidentada. Estando vivo o simpático pensador, sua doutrina foi duramente criticada por várias frentes: os professores seculares da Universidade de Paris, que combatiam os professores oriundos das ordem mendicantes, isto é, os dominicanos e franciscanos; os averroístas latinos, que propunham uma interpretação de Aristóteles contrária às verdades da fé cristã; e, finalmente, os pensadores conservadores da linha agostiniana.

Ao contrário do que diz certa hagiografia, Tomás de Aquino não era um pensador com a cabeça nas nuvens, lento para agir e puramente racional ao argumentar. Ele combateu seus adversários no campo deles, e sobrepujou a todos. Escreveu libelos de defesa da espiritualidade mendicante; comentou os principais livros de Aristóteles, mostrando os equívocos da interpretação averroísta; e, com a filosofia do Estagirita, construiu uma síntese até hoje não superada.

No entanto, essa vitória teve o seu preço. Pouco depois de sua morte, seus inimigos fizeram uma série de intrigas e conseguiram que algumas teses, ao menos aparentemente dele, fossem incluídas em uma condenação promovida pelo Arcebispo de Paris, Esteban Tempier. Essa condenação jogou um véu de desconfiança sobre o pensamento do Aquinate.

Apesar do apoio decidido da maior parte dos dominicanos, a filosofia tomista passou a ser cultivada por grupos minoritários, contando com a decidida oposição dos teólogos franciscanos. Essa situação perdurou por séculos, apesar de pensadores tomistas terem conseguido fazer valer as teses do mestre em momentos importantes, como nos Concílios de Trento e de Florença.

Os séculos XVII e XVIII não foram nada favoráveis ao pensamento tomista e ao escolástico, ficando os teólogos inebriados com a filosofia moderna. No início do século XIX, de maneira um tanto clandestina, o tomismo começou a ser estudado em algumas cidades italianas, notadamente Piacenza e Nápoles. Apesar de trabalhado nesse âmbito restrito, chegou ao conhecimento de Joachim Pecci, que seria Arcebispo de Perugia e, em 1878, eleito Papa com o nome de Leão XIII.

A neoescolástica

Em 1879, Leão XIII lança sua segunda encíclica, Aeterni Patris, na qual propõe a filosofia de Tomás de Aquino como a resposta para os desafios lançados contra a doutrina católica pelas escolas de pensamento modernas. Esse acontecimento é considerado o começo do neotomismo, ou seja, a escola de pensamento que procurou estudar a obra de Tomás de Aquino, compreendê-la e aplicá-la às necessidades atuais.

O tomismo, até então marginalizado, torna-se, com a bênção papal, ao menos nominalmente, a filosofia predominante da Igreja Católica. Os escritos do filósofo passam a ser editados de maneira rigorosa e são estudados por vários teólogos e filósofos católicos.

Nesse primeiro momento, o neotomismo tem um caráter mais arqueológico, buscando compreender a doutrina de Tomás em continuidade com seus comentadores medievais, sem trazer muitas novidades. Destacam-se nessa fase os franceses Sertillanges e Garrigou-Lagrange, com sólidos trabalhos filosóficos e teológicos.

Contudo, mais importante ainda será a segunda geração neotomista, que procurará redescobrir o pensamento autêntico do mestre. Aparecem aqui as figuras de Étienne Gilson e de Cornelio Fabro, talvez os tomistas de maior relevo no século XX. Ambos sustentam que o núcleo da metafísica tomista é a noção de “ato de ser”, que seria uma novidade em relação à filosofia anterior a Tomás  de Aquino e que não teria sido bem compreendida pelos seus discípulos, que logo confundiram o “ato de ser” com o mero existir.

Esses temas metafísicos, ainda que apaixonantes, não são o objeto deste nosso estudo. Mas vale lembrar que a metafísica não é uma série de pensamentos obscuros sobre assuntos que não servem para nada. “Em que a metafísica vai me ajudar para fritar ovos, ou para ganhar dinheiro?” Talvez em nada. Mas ela explica a verdade que está por trás do ovo e do dinheiro, e também de nós mesmos. Se não há metafísica, não faz muito sentido fritar ovos, e muito menos ganhar dinheiro. Tudo seria uma grande ilusão, ou simplesmente matéria gerando matéria – afirmar isso já é fazer metafísica, mesmo que de baixa qualidade –, e a liberdade do homem seria um engodo.

A metafísica tomista, conforme estudada por Gilson e Fabro, representa um avanço em relação à aristotélica, e não uma mera continuidade. Essa percepção abriu caminho para outros tomistas importantes, como Josef Pieper – pese que não queria se definir como tomista, mas, enfim, na falta de uma palavra melhor… –, Ralph McInerny, Stephen Brock, John Wippel, Angel Luiz González, Leonardo Polo, Leo Elders, e um longo etc.

Infelizmente, ainda pouco se conhece desses filósofos na maior parte das nossas universidades, que tendem a valorizar exclusivamente o pensamento de tipo moderno e imanentista, em muitos casos ignorando a filosofia contemporânea inspirada na tradição antiga e medieval. Assim, perdem-se autênticos tesouros filosóficos, que trariam importantes contribuições ao debate atual de idéias.

Apesar disso, é visível o ressurgimento do interesse pelo pensamento clássico e medieval em várias partes do mundo. Nas primeiras décadas do século XX, os tomistas estavam praticamente restritos aos círculos católicos e, na maior parte das vezes, eclesiásticos. De maneira paulatina, filósofos leigos das universidades começaram a se dedicar a essa escola de pensamento e a produzir muito do que há de melhor nela. Isso se deve, em boa parte, ao labor de Gilson.

O pensamento de Tomás de Aquino vai adquirindo evidentes foros de respeitabilidade. Hoje, não é possível ignorar contribuições como as de John Finnis ou de Alasdair MacIntyre, autores profundamente influenciados pelo tomismo, o qual ganha força nos campos da ética, da política e da filosofia da ciência. Somando-se isso à sua presença na metafísica, na antropologia filosófica e na teologia, vemos que a obra de Tomás tem caráter universal e enciclopédico, abrangendo praticamente todos os domínios do saber humano, e com contribuições relevantes em cada um deles.

Renovar redescobrindo: a obra de Gilson

O papel de Étienne Gilson no fortalecimento e renovação do tomismo é excepcional. Aliás, não só do tomismo, mas de toda a filosofia medieval: as obras de Gilson sobre Santo Agostinho, Duns Escoto e São Boaventura permitiram que mais gente tomasse contato com esses importantes autores, que tanto têm a nos dizer. E não se pode esquecer a monumental A filosofia na idade média [1], uma referência fundamental no assunto.

Não se considerava primeiramente filósofo, mas um historiador da filosofia. Gilson não quis fazer uma obra original, mas sim verdadeira: enxergava no pensamento medieval tamanha riqueza, desconhecida da maior parte dos seus contemporâneos, que envidou seus melhores esforços em trazer à tona o que os antigos disseram, para que pudessem iluminar também a nossa época. Notamos aqui a humildade desse autor, que não buscou fundar uma espécie de gilsonismo, mas preferiu se ater à verdade.

Em uma página memorável, Gilson descreveu a atitude de Tomás, que também era a sua: “Tomás de Aquino disse coisas tão lhanamente verdadeiras que, da sua época até hoje, muito poucos foram capazes de esquecer-se de si mesmos o suficiente para aceitá-las. Há um problema ético na raiz das nossas dificuldades filosóficas; nós homens somos muito voltados a buscar a verdade, mas reticentes em aceitá-la. Não gostamos que a evidência racional nos encurrale, e inclusive quando a verdade está aí, na sua impessoal e imperiosa objetividade, continua de pé a nossa maior dificuldade: para mim, submeter-me a ela, apesar de não ser exclusivamente minha […]. Os maiores filósofos são aqueles que não titubeiam na presença da verdade, mas lhe dão as boas vindas com estas simples palavras: Sim, amém”.

Ah, a vaidade de ser “original” em filosofia… Quantos desastres intelectuais e vitais não surgiram dessa vã pretensão! Boa parte do pensamento moderno se explica pelo desejo de destruir o que fora feito antes e substituí-lo pelo que eu, o verdadeiro gênio, pensei. O meu sistema é melhor do que anterior, exatamente porque é meu. Essa praga é combatida por Gilson com seu saudável e – vamos usar a palavra, apesar de alguns a considerarem um palavrão – tradicional tomismo.

Tradicional, mais ou menos. Mais, porque Gilson propugnou o estudo direto dos textos de Tomás, evitando seus comentadores, que pulularam logo depois da morte do filósofo e, em parte, distorceram seu pensamento. O Cardeal Caetano, por exemplo, separou-se do mestre em pontos fundamentais, como a prova racional da imortalidade da alma e a distinção real entre ser e essência. Por sua vez, João de São Tomás, cujos trabalhos sobre lógica são atualmente bastante valorizados, tomou rumos não tomistas em importantes questões metafísicas.

Gilson percebeu o perigo de estudar a obra de Tomás pelos olhos desses comentadores; portanto, dirigiu-se diretamente aos textos do teólogo italiano, para perscrutar seu espírito e verdadeiro conteúdo. Nesse sentido, o tomismo do filósofo francês era tradicional, porque retornava às fontes mesmas da filosofia tomista.

Ao mesmo tempo, era menos tradicional, porque rompera com a tradição formada exatamente pelos comentadores de Tomás, que deram origem à escola do tomismo. Gilson deixará para trás o trabalho desses comentadores, ainda que reconhecendo o seu valor, e, como dissemos, proporá uma nova interpretação da filosofia do Doutor Angélico. Esta está na base de The unity of philosophical experience.

Uma história filosófica da filosofia

Esse livro é um apaixonante relato de experimentos que procuraram dirigir a filosofia de acordo com um método impróprio. O autor não apenas descreve esses processos, mas procura as causas da deterioração de cada um deles, propondo ao final um método filosófico que se veja livre das falhas que, repetidamente e em épocas bastante diversas, fizeram com que o pensamento descambasse no ceticismo.

A obra foi escrita originalmente em inglês e é o resultado de um ciclo de conferências que Gilson ministrou na Universidade de Harvard, na primeira metade do ano acadêmico de 1936-7. Sem ser um trabalho preso àquela época, é interessante lê-lo recordando que foi escrito pouco antes da Segunda Guerra Mundial, na qual ideologias fundadas no desenvolvimento do hegelianismo – o nazismo, o fascismo e o marxismo – levaram o mundo à atrocidade. Por então, esses monstros já mostravam suas garras, e um homem inteligente e atento como Gilson não podia deixar de ver neles o maldito fruto de graves erros filosóficos.

Um aspecto que chama a atenção é a pena fluente do autor. Gilson tem o dom da clareza; contudo, ao contrário de muitos pensadores gauleses, isso não é em detrimento da profundidade e rigor intelectual. Além disso, mantendo sempre o tom acadêmico, não é jamais frio ou desinteressante. Antes, prende o leitor no meio de discussões sobre a filosofia árabe medieval, o ocasionalismo de Malebranche, a formação do pensamento kantiano, as elucubrações espantosas de Comte, as explicações de Ockham sobre o conhecimento… Convenhamos, não é tarefa fácil, mas ele o conseguiu. Há um bom humor subjacente em tudo o que diz, e a leitura é sempre sugestiva.

Chama a atenção a erudição e domínio dos temas presentes no livro. Não há como negar que Gilson é um dos maiores – se não o maior! – historiador da filosofia medieval. Até aí, tudo bem. Contudo, seu discorrer sobre a obra de Descartes – que, curiosamente, foi a porta de entrada de Gilson no pensamento medieval, mas isso é outra história… –, de Malebranche, Locke e Hume; de Comte, de Kant, Hegel e Marx, são excelentes. O historiador francês captou o núcleo desses autores, com conhecimento das fontes primárias e dos principais comentadores.

Enfim, vemos na obra o trabalho de um especialista em filosofia medieval, adepto da visão filosófica e teológica de Tomás, que consegue examinar a fundo, porque estudou seriamente e de forma honesta, as principais correntes do pensamento moderno e contemporâneo. É o contrário de qualquer especialismo – como o daquele professor que só podia falar de O nascimento da tragédia, de Nietzche, porque era o tema do seu doutorado de vinte anos atrás –, bem como da superficialidade chutadora dos que conhecem a filosofia por manuais, compêndios e poucos livros mal lidos.

The Unity of Philosophical Experience foi dividido em quatro partes. As três primeiras tratam, respectivamente, do experimento medieval, do cartesiano e do moderno, e a quarta traz as conclusões do autor. Vejamos o que diz cada uma delas.

O experimento medieval, ou a confusão dos universais

Gilson começa sua explanação sobre a filosofia medieval citando a observação de que ela foi pouco mais do que uma tentativa obstinada de resolver um só problema: o dos universais, ou seja, dos conceitos e das idéias gerais. Como podemos explicar que pensemos por conceitos, que aplicamos a vários entes semelhantes – por exemplo, animal, que se pode predicar de um leão, de uma girafa, e do próprio homem –, mas que não existem por si mesmos em nosso mundo? Essa aplicação de um conceito geral a entes individuais tem algo de verdadeiro, ou é apenas uma economia de linguagem, ou mesmo uma ilusão? Em outras palavras: há alguma relação entre o nosso pensamento e a realidade?

A partir dessa questão – e que questão! –, Gilson explica a filosofia de Pedro Abelardo, célebre pelos seus amores por Heloísa, mas muito mais importante pelo seu pensamento. Segundo Gilson, Abelardo procurou resolver a questão dos universais, profundamente filosófica, com o método e os conceitos da ciência que conhecia, a lógica. Aliás, esta era a única ciência cultivada de verdade em sua época, e não estranha que a tenha empregado para o seu propósito de explicar o problema que atormentava os filósofos de então.

O caso de Abelardo é um excelente exemplo da presunção científica na filosofia, que vai se repetir nos outros experimentos descritos pelo filósofo francês. Porfírio, que escreveu uma famosa introdução às Categorias, de Aristóteles, reconhece que surge da lógica o problema dos universais, mas sabiamente afirma que não cabe a ela resolvê-lo, pois é um tema relativo aos filósofos, não aos lógicos. O grande Abelardo, por sua vez, não compartilhou a prudência do autor da Isagoge e entrou de cabeça no problema filosófico dos gêneros e espécies.

A tragédia abelardiana está em que ele ignorava o que outros antes dele – especialmente Aristóteles – escreveram para explicar esse problema. Como escreve Gilson, em uma das centenas de frases lapidares e divertidas que se encontram no livro, “Abelardo achava-se nesse feliz estado de ignorância que com tanta facilidade faz com que um homem inteligente seja original. (…) Ao não ser nada mais do que um professor de Lógica, não havia nada nele de metafísico para o envergonhar de não ser mais do que lógico”. Essa falta de vergonha fez com que atravessasse tranquilamente a linha que divide a lógica da filosofia e da metafísica sem se dar conta disso, e o resultado foi um tropeço.

Abelardo sustentou que os conceitos com que pensamos não representam nenhuma realidade externa a nós mesmos. Contudo, se assim é, porque aplicamos a palavra “animal” corretamente a alguns entes, e não a empregamos com outros? Por que chamo “animal” ao elefante, ao macaco e ao papagaio, mas não ao quartzo, à hortênsia ou ao anjo? A resposta de Abelardo a essa pergunta nunca foi satisfatória, e ele mesmo foi honesto o suficiente para eliminar todas as pseudo-soluções que lhe podiam servir. Acabou afirmando que há algo de comum a todos entes dos quais predicamos um nome universal, mas esse algo comum não é uma essência, e sim um estado, uma condição. Era uma forma de ser, mas não uma coisa. O que isso significa exatamente, Abelardo não será capaz de explicar (aliás, parece impossível que o conseguisse…). Seu pensamento termina em um beco sem saída.

O logicismo será seguido por outro equívoco, o teologismo. Este consiste em aplicar à filosofia categorias puramente teológicas, o que termina por eliminar a natureza e a consistência das realidade criadas em favor da onipotência e grandeza de Deus. Como afirma Gilson, “por diversas que essas doutrinas (do teologismo) possam ser de acordo com as diferentes épocas, lugares e civilizações em que foram concebidas, parecem-se sempre, ao fim e ao cabo, em que todas se encontram intoxicadas por um determinado sentimento religioso a que chamarei, em favor da simplicidade, sentimento da Glória de Deus”.

São Boaventura, um dos maiores teólogos e místicos cristãos, foi um expoente dessa corrente. Demonstra-o o título de um dos seus escritos místicos: Sobre a redução das Artes à Teologia. A função da filosofia seria conhecer não as coisas, mas Deus através das coisas; seria assim reduzida a um departamento pouco importante da teologia. Contudo, para que a filosofia possa nos levar a Deus, precisa antes ser autêntica filosofia, o que não acontece na concepção do franciscano.

A teoria da iluminação divina no conhecimento, tão cara a Boaventura, se levada às últimas conseqüências, acaba negando o conhecimento natural: todo o conhecimento passaria a ser sobrenatural e uma dádiva de Deus. Também não existiria causalidade eficiente na ação das criaturas, porque Deus criou tudo desde o início do mundo, o que foi e o que ia ser, e a realidade simplesmente vai se desenvolvendo pela ação divina. O universo é inerte, sem força intrínseca, sendo manejado totalmente por Deus em cada momento.

O teologismo, entendido dessa forma, poderia levar, contra os desejos do sucessor de Francisco de Assis, a concluir que não há liberdade, porque tudo está determinado desde a criação. Essa era a postura de alguns teólogos árabes, que também foram, no âmbito da religião islâmica, partidários do teologismo. Os discípulos de Boaventura perceberam esse perigo e tentaram se afastar dele, sem muito êxito.

A terceira tentativa do experimento medieval foi a de Guilherme de Ockham, franciscano inglês que influenciou a teologia luterana. Considerava-se um aristotélico, mas suas conclusões destruíam tudo o que Aristóteles afirmou. Ao tratar do tema dos universais, Ockham procurou se afastar de qualquer resquício de realismo, que considerava ainda presente em Abelardo. Este seguia considerando haver um fundamento na realidade para dizer que todos os animais têm algo em comum. Já o filósofo inglês afirmará, de maneira radical, que tudo o que existe é individual; por isso, nada pode corresponder na realidade a nossas idéias universais.

Segundo explica Gilson, Ockham chegou a uma “posição pura”, e quando isso acontece, dá-se habitualmente uma revolução filosófica. Como nossas idéias não têm nenhuma relação com a realidade, podemos levá-las ao paroxismo. A partir da negação dos universais, o filósofo inglês reconstruirá toda a filosofia e a ciência sobre o individual. Para Ockham, qualquer explicação não contraditória é válida, já que Deus poderia fazer as coisas diferentes do que são em virtude da Sua onipotência. Por isso, os filósofos não devem perder tempo em especular sobre as causas hipotéticas das coisas atualmente existentes, pois no fundo são como são em função da vontade divina.

Antecipando Hume, Ockham destruirá também a causalidade. Porque empurrei uma bola, não posso por isso concluir que a causa do movimento dela foi a minha ação. Afinal, poderia ter havido outro resultado. O que existe é uma mera associação de idéias entre a minha ação e o movimento da bola, que não representa efetivamente que um foi a causa do outro. O conhecimento se torna algo vazio, sem relação com a realidade. Estão abertas as portas para o ceticismo.

De fato, Gilson termina de explicar o experimento medieval mostrando a sua queda no ceticismo, que é a recusa a filosofar, e não propriamente uma filosofia. As várias escolas medievais, que não se entendiam, propiciaram um clima de desconfiança da filosofia. Os pensadores do “outono da Idade Média” (a bela expressão de Huizinga…) querem salvar a religião cristã não na filosofia, mas propondo a simples leitura do Evangelho e dos Padres da Igreja, bem como a adesão a uma moralidade compartilhada com os autores pagãos – daí a fortuna do estoicismo nessa época. Não convinha mais filosofar para buscar entender os problemas profundos da existência humana e do universo.

Nicolau de Cusa e Petrarca seguiram essa linha e a tornaram popular. A douta ignorância tornou-se uma meta a ser atingida, e não um estado incompleto a ser vencido. Nas palavras de Gilson: “quando os escolásticos abandonaram toda esperança de dar resposta aos problemas filosóficos à luz da pura razão, cessou o brilhante e longo caminho da filosofia medieval”. Esse cansaço intelectual irá desembocar no mais famoso dos céticos, Montaigne.

Descartes e a matemática universal

O segundo experimento examinado por Gilson é o cartesiano. O homem não é um ser dubitativo, e por isso o ceticismo não dura muito tempo como atitude dominante. Surge habitualmente alguém que procura reconstruir tudo de cima a baixo. O remédio a Montaigne, cujos Ensaios foram publicados em 1580, foi o Discurso do Método. Aliás, várias passagens desta obra são um eco ao escrito de Montaigne. Não se trata de uma mera briga entre franceses, mas do começo de uma nova era filosófica que se propõe enfrentar toda uma sucessão de erros, sendo ela mesma bastante equivocada. Ah, se os homens tivessem ouvido Tomás… Mas não o fizeram, e deu no que deu: da indigestão de Montaigne cairemos no porre de Descartes.

Afirma Gilson: “Montaigne foi e é ainda para muitos um mestre, mas a única coisa que se pode aprender dele é a arte de não aprender. Essa arte é muito importante e em nenhum lugar é aprendida melhor que nos Ensaios; o mau dos Ensaios é que não ensinam outra coisa”. No ponto! E Descartes procurará sair desse atoleiro através da matemática, que seria a única ciência que nos dá certezas evidentes e inatacáveis.

Não estranha que Descartes tenha partido da matemática, porque era um matemático genial. Em algumas horas, foi capaz de resolver uma série de problemas que há muito aguardavam resposta e fundou a geometria analítica. Nas palavras de Gilson: “Efetivamente, a filosofia de Descartes não é mais que um experimento temerariamente realizado para ver o que se torna o conhecimento humano quando se modela de acordo com a evidência matemática”.

A razão da postura cartesiana não é outra que o cansaço do ceticismo. Não há outro motivo para essa “matematização”, que não consegue justificar-se a si mesma. Mas Descartes estava convencido do que fazia, e julgou que, assim como fora capaz de unificar a álgebra e a geometria na geometria analítica, poderia unificar todas as ciências, que seriam no fundo a mesma ciência. Há algo de louco nisso tudo, mas não se pode negar a força dessa louca idéia. Uma grande ambição absurda, e por isso mesmo atraente, levada a cabo por um gênio: realmente, o cartesianismo tem poder de atração em uma época em que nenhuma outra filosofia se apresentava com solidez para enfrentá-lo.

Gilson disseca o pensamento de Descartes, que chegou a uma série de aporias. O célebre filósofo terminou separando a mente do corpo humano de tal forma que não foi possível para ele explicar como seriam verdadeiras as sensações que conhecemos a partir dos sentidos. O conhecimento humano fica então prejudicado, e Descartes solucionará esse problema dizendo que Deus, sendo bom, garante a veracidade daquilo que recebemos pelos sentidos.

Contudo, não demorou para que um discípulo de segunda geração, Berkeley, acabasse afirmando que não há coisas externas, mas apenas o nosso pensamento. Diz a lenda que essa afirmação matou Malebranche, discípulo de primeira geração de Descartes, que a discutiu com Berkeley no leito de morte; foi uma morte por metafísica – má metafísica, sem dúvida, e talvez por isso mesmo mais venenosa.

Locke foi outro autor que contradisse Descartes, sustentando que não há idéias inatas, as quais eram uma das bases do sistema cartesiano. Em pouco tempo, o pensamento do inglês se sobrepôs ao do francês na Inglaterra, e Voltaire – que nele percebeu um acesso ao materialismo, o que muito lhe interessava – levou-o à própria França, onde também acabou por triunfar. Em pouco tempo, Descartes passou de filósofo predominante e supremo a um derrotado; grandioso, sem dúvida, mas superado. Sorte dele que não viveu para ver sua derrocada, e morreu convencido que fizera todas as ciências progredirem extraordinariamente.

O fim do experimento cartesiano é Hume. De maneira espirituosa, Gilson reconhece nele um Montaigne melancólico, que confessou: “Estou… afligido e confundido pela desamparada solidão em que me deixa a minha filosofia”. Ao considerar os raciocínios sobre a causa e o efeito mera derivação do costume, Hume acaba destruindo a própria possibilidade de filosofar. Afinal, nada pode dizer sobre as coisas nem sobre o conhecimento. O fantasma de Ockham volta a aparecer com a sua navalha, assombrando a filosofia e deixando-a à mercê de novos pesadelos.

O experimento moderno: Kant, Hegel e Comte

Para Kant, Hume demonstrou que a metafísica estava morta. Com um começo desses, fica difícil fazer filosofia. Surpreendentemente, foi exatamente isso que Kant realizou, tomando como base o esquema da física de Newton, considerada então a verdade científica suprema.

A tentação de usar uma ciência como método para a filosofia volta a fazer sucumbir uma mente brilhante. Depois de Abelardo com a lógica, Boaventura com a teologia, Descartes com a matemática, surge Kant com os Principia na mão e uma filosofia na cabeça. Nas palavras do sábio de Koenisberg: “O verdadeiro método da Metafísica é fundamentalmente o mesmo que Newton introduziu na ciência natural e que tão excelentes resultados produziu nela”.

Aí está a grande limitação do fisicismo como método filosófico. A filosofia kantiana não poderia durar mais do que a física em que se baseava. Com essa base, formulou a sua Crítica da razão pura, que é um dos mais importantes livros sobre teoria do conhecimento, chegando à conclusão que efetivamente não conhecemos as coisas, mas apenas seus fenômenos. É uma ótima estrada que leva para o buraco do incognoscível.

Ao lado da razão pura, Kant construiu uma teoria da razão prática, que se fundava no dever. Através da moral, o homem poderia chegar a Deus, ainda que fosse impossível demonstrar a sua existência. A moralidade não podia ser justificada pela racionalidade, mas como é um fator inseparável da vida humana, justifica-se por si mesma. É a apoteose do dever, que obriga apenas pela sua força intrínseca.

Ao separar a racionalidade pura da prática, Kant jamais conseguiu unir de novo as duas. Criou estruturas inconciliáveis, mas ambas necessárias para solucionar problemas filosóficos. O homem estaria preso em um mundo de necessidade física no nível sensível e físico, mas, ao mesmo tempo, seria livre no âmbito inteligível e moral. Um homem são em uma camisa de força: panorama não muito animador. Além disso, o dever nada tem que ver com o prazer, e a virtude não pode ser agradável, mas simplesmente virtuosa. Um asceta de gelo é a meta kantiana.

O grande castigo de Kant foram os seus discípulos. Fichte e Schelling tentaram conciliar as duas Críticas; não foram aceitos pelo Mestre e acabaram brigando também entre si. O caos kantiano foi acertado por Hegel; com um acerto assim, parece melhor continuar no erro… Como disse o mesmo Hegel: “Só um homem poderia ter me entendido, e nem ele me entendeu”.

O filósofo alemão que culmina o idealismo considera que a verdade é a luta entre as verdades, as antinomias que combatem, dando origem a novas soluções, que por sua vez gerarão outras antinomias que serão resolvidas na luta. Diz Gilson: “Se a realização da Idéia é a marcha de Deus através do mundo, a rota do Deus de Hegel está semeada de ruínas”. A guerra entre filósofos e idéias é a lei. Não é à toa que essa filosofia descambou no fascismo e no marxismo, visões beligerantes e violentas da sociedade e da vida humana. Mais uma vez, o sonho da razão produziu monstros.

Outra faceta do experimento moderno é Comte, que contribuiu propondo uma filosofia fundada em outra ciência, a sociologia. O amor pela Humanidade deveria levar a que os cientistas e filósofos se concentrassem em estudar o que serviria para o progresso da mesma. Como era impossível fazer uma síntese objetiva de todos os conhecimentos, ficaríamos então com uma síntese subjetiva, do ponto de vista do homem e das suas necessidades sociais.

Sobre o projeto comteano, escreve Gilson: “A condenação inicial da Metafísica em nome da ciência, que estas filosofias consideram o único tipo de conhecimento racional, culmina invariavelmente na capitulação da própria ciência diante de algum elemento irracional”. No caso de Comte, esse elemento irracional seria a subordinação da ciência ao coração (?), isto é, ao amor pela Humanidade.

O pensador francês tem muito de abstruso, e algo de comovente. Percebeu que era preciso fundar uma religião para difundir suas idéias morais e o conhecimento positivo que advogava. Não se afastou do ridículo; antes, mergulhou nele até o fundo, para ser coerente e assim cumprir a sua missão. Isso não o justifica como filósofo, mas o torna o caso exemplar de onde leva a patologia filosófica assumida em toda a sua inteireza.

Gilson descreve a decadência do experimento moderno de modo tocante. Deu-se quando a sociedade afastou-se do “credo ocidental”, cujo traço mais fundamental é uma firme crença na eminente dignidade do homem. Seu segundo traço é a convicção definida de que a razão é a diferença específica do homem. Ambas características foram deixadas de lado, e o êxito de então do marxismo e do fascismo era a prova disso.

A terrível afirmação de Marx é o que sobra depois que as filosofias se digladiaram, matando com isso a verdade: “a história de todas as sociedades que até agora existiram é a história da luta de classes”. Estamos acostumados com essa afirmação, depois de a termos ouvido nos bancos escolares, muitas vezes como se fosse a suma sabedoria do pensamento ocidental. Mas ela é simplificadora, falsa e niilista. A história humana é muito mais do que isso, graças a Deus!

A constatação de Gilson de que o ceticismo moderno abriu as portas ao marxismo, que teve um enorme êxito entre os seus contemporâneos por ser o único dogmatismo que consideravam vivo, leva-o a sugerir uma saída para a filosofia, para que esta torne a ser relevante.

A metafísica como filosofia do ser: um remédio indispensável

Após ter nos levado pela mão da filosofia medieval até o pensamento moderno e contemporâneo, Étienne Gilson concluiu seu livro com algumas leis que podem ser inferidas a partir dos vários experimentos filosóficos que descreveu. São bastante interessantes, e serviriam de base para a renovação da metafísica.

A primeira é que a filosofia sempre enterra seus coveiros. Cada desaparição da filosofia é seguida regularmente pela sua ressurreição, com um novo dogmatismo a se apresentar para explicar a realidade. Isso acontece porque o homem tem uma autêntica necessidade de metafísica, que não é saciada nem pode ser elidida.

Chegamos assim à segunda lei: o homem é um animal metafísico por excelência. Sua própria estrutura de razão termina por exigir a metafísica, a explicação da realidade pelas primeiríssimas causas.

A terceira lei é que a Metafísica é o conhecimento ganho por uma razão naturalmente transcendente na busca dos princípios primeiros ou das causas primeiras do que é dado na experiência sensível. Esta última é importante, não pode ser desprezada, como propõem os vários idealismos; contudo, não explica toda a realidade, como consideraram os empirismos e materialismos de diversos matizes.

Por sua vez, a quarta conclusão é como a Metafísica aspira a transcender todo o conhecimento particular, nenhuma ciência particular é competente para solucionar os problemas metafísicos ou julgar as soluções metafísicas. De certo modo, esta é a lição especificamente demonstrada na obra, pois Gilson percebe nos vários experimentos filosóficos mal fadados exatamente o desrespeito a essa conclusão.

A última lei é que todos os fracassos da Metafísica devem atribuir-se ao fato de que se passou por alto ou se abusou do primeiro princípio do conhecimento humano, que para Gilson e o tomismo é o próprio ser ou, melhor ainda, o ente. Não é pelo pensamento que devemos começar a pensar; seria como se preocupar principalmente com a colher de pau na hora de mexer o doce no tacho. O ente é a meta do nosso conhecimento, e o pensamento e seus conceitos são antes de tudo instrumentos para o atingir.

As leis de Gilson levam não a um novo sistema de pensamento, mas sim a uma postura de abertura diante da realidade, semelhante à que tiveram os maiores metafísicos da história, isto é, Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino. Nosso pensamento jamais será capaz de esgotar a realidade, mas pode refleti-la de maneira sempre perfectível. Isso é uma lição de humildade e de verdadeira sabedoria.

Renato José de Moraes é advogado, mestre em direito e membro do IFE.


[1] Trad. Eduardo Brandão (São Paulo, Martins Fontes, 1998).

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