Sobre vielas e estilo: Raymond Chandler 50 anos depois

por Rodrigo Duarte Garcia

No prefácio de O Retrato de Dorian Gray, em uma passagem bastante conhecida, Oscar Wilde escrevia que não existem livros morais ou imorais: “livros são bem-escritos ou mal-escritos. E isso é tudo”. Naturalmente, há muito a se contestar na idéia, mas a essência da coisa toda pode bem ser transportada para a discussão que invariavelmente se instala – como uma entidade desagradável pairando no ar – a cada vez que alguém se dispõe a falar sobre o romance policial: histórias de detetive podem ser alta literatura? A defesa do gênero já foi feita por grandes eruditos (de Chesterton a W.H. Auden) e com diversos argumentos, mas a resposta de Wilde – devidamente adaptada – parece ser realmente a mais exata: não existem gêneros literários superiores ou inferiores. Há bons e maus livros em todos eles, e isso é tudo.

Otto Maria Carpeaux notava bem que as histórias de detetive têm origem no romance gótico, inaugurado no século XVIII pelo esquisitão Horace Walpole, e partem dessa genealogia aristocrática ao romantismo alemão de E.T.A. Hoffmann, até finalmente chegar aos contos de Edgar Allan Poe. Daí a Conan Doyle – e a criação imortal de Sherlock Holmes –, passando pelos modernos e a subdivisão do gênero com os hard-boiled americanos, em uma linha direta até os dias de hoje.

E se nesse trajeto de mais de dois séculos é naturalmente possível identificar bons e maus escritores, obras-primas e livros ridículos, há – entre todos – alguns poucos que simplesmente definiram o estilo, mostrando a possibilidade sublime de fazer das histórias de detetive, e de suas vielas escuras, verdadeiras obras de arte. E o maior deles, sem sombra de dúvida, foi Raymond Chandler.

* * *

Raymond Thornton Chandler nasceu a 23 de julho de 1888, em Chicago. O pai bebia muito e sumiu de vista quando o menino tinha apenas seis anos, fazendo com que a família se mudasse para a Inglaterra. O que acabou não sendo mau negócio. Chandler passava verões solitários na Irlanda, freqüentava a Igreja Anglicana e ia à escola. Aos doze anos, estudava matemática, latim, francês, música, teologia e história inglesa no Dulwich College. Jogava rúgbi e críquete e, algum tempo depois, dedicou-se também a aprender alemão e espanhol. Com quinze anos, passava horas lendo Virgílio, Cícero, Ovídio, Tucídides, Platão, Aristófanes e o Evangelho de São Marcos. Tudo no original.

Viajou um pouco pela Europa e tornou-se súdito britânico, passando a morar em Londres. Já adulto, virava-se como podia: trabalhou como funcionário público na marinha e depois como jornalista, escrevendo poemas e artigos aborrecidos sobre assuntos de política européia. Voltou aos Estados Unidos com vinte e três anos e fez de tudo um pouco: desde trabalho manual em um rancho de damascos até encordoar raquetes de tênis. Em 1917, alistou-se na 2ª Brigada de Infantaria do Exército Canadense e serviu em trincheiras da França, na Primeira Grande Guerra. A experiência seria marcante: “Nada permanece igual depois que você lidera um pelotão sob o fogo cerrado de metralhadoras”, diria alguns anos mais tarde.

Com o fim do conflito, Chandler voltou aos Estados Unidos e logo se envolveu com Cissy Pascal, uma mulher mais velha – e, digamos, de vanguarda (ela posava nua e virava noites bebendo e dançando) – com quem acabaria se casando algum tempo depois. Começou então a trabalhar como contador e foi logo promovido a um cargo importante de vice-presidência. A partir daí, tudo indicava o futuro de uma vida simples e tranqüila, mas o abuso na bebida, o assédio constante às mulheres do trabalho e as conseqüências econômicas devastadoras da Grande Depressão fizeram com que ele acabasse sumariamente demitido.

Foi exatamente neste ponto do ano de 1933, com quarenta e cinco anos e sem um dólar furado no bolso, que Raymond Chandler decidiu escrever histórias de detetive como uma forma de sobrevivência. As pulp magazines da época pagavam razoavelmente bem, de maneira que ele passou a se dedicar febril e intensamente ao ofício de escrever ficção. O que não foi nada fácil, a princípio. Ninguém gosta de lidar com as próprias limitações e Chandler também teve de passar por esse processo nada prazeroso – mas essencial – de entender que a sua educação clássica e os anos cosmopolitas na Europa não o habilitavam automaticamente a produzir uma boa história.

Assim, humildemente (ou quase), mergulhou de volta nos grandes autores ingleses e franceses, buscando também conhecer toda a parte técnica do escuso mundo dos crimes, que lhe era tão familiar quanto a peculiar biologia das moscas drosófilas: lia grossos tomos de medicina legal e direito criminal, pesquisava detalhes sobre armas e, em pouco tempo, familiarizou-se com os procedimentos policiais de rotina.

E o fato é que toda essa dedicação acabou lhe dando muito mais bagagem do que a média descartável dos escritores que contribuíam para as revistas pulp. Os editores da Black Mask ficaram espantados com a qualidade e o perfeccionismo do primeiro manuscrito encaminhado. Até a sua datilografia era irretocável, sem uma rasura sequer. Foram imediatamente encomendados mais textos e o resto é história: Raymond Chandler emplacaria dez contos na revista, tornando-se em pouco tempo o seu colaborador mais importante.

Cinco anos depois, em 1938, percebendo que precisava dar o passo adiante, Chandler escreveu The Big Sleep (O sono eterno), o primeiro dos sete romances que imortalizariam o detetive Philip Marlowe. Seguiriam Farewell, My Lovely (Adeus, minha adorada, 1940), High Window (Janela para a morte, 1942), The Lady in the Lake (A dama do lago, 1943), The Little Sister (A irmãzinha, 1949), The Long Goodbye (O longo adeus, 1953), e Playback (1958).

Com o sucesso dos contos publicados na Black Mask e o êxito nas vendas do seu primeiro romance, Raymond Chandler passou a ser bastante conhecido no meio dos escritores populares, de modo que, em 1941, vendeu para Hollywood os direitos de Adeus, minha adorada, e iniciou o que viria a ser seu tempestuoso relacionamento com os estúdios de cinema. Foi contratado pela Paramount para colaborar em um roteiro com Billy Wilder e, de cara, as coisas acabaram não dando lá muito certo. Raymond era controlador e já chegou querendo dar palpites sobre tudo: da iluminação à cenografia e aos movimentos de câmera. Wilder ficou furioso e a relação caminhou aos trancos a partir dali. Ele irritava-se com a fumaça do cachimbo de Chandler, que em contrapartida queria apenas partir em mil pedaços a varinha de bambu que Wilder girava entre os dedos enquanto caminhava, durante as longas reuniões de trabalho.

E serviria ainda de consultor a Howard Hawks na adaptação de O sono eterno, que teve a atuação de Humphrey Bogart como Philip Marlowe. Chandler ficou bastante satisfeito com o resultado, mas não esconderia, anos depois, a opinião de que Cary Grant seria o ator perfeito para representar o seu detetive no cinema. Em 1950, chegou também a ser contratado por Alfred Hitchcock, que em pouco tempo percebeu o problema em que havia se metido e o fez substituir por alguém um pouquinho menos genioso.

A verdade é que Raymond Chandler detestou os bastidores do mundo do cinema. Ele ficou rapidamente entediado e ressentido com a pouca importância dada aos roteiristas, que nem sequer apareciam nas notas de rodapé dos cartazes de anúncio. Na verdade, a sua indignação não era em defesa dos roteiristas em geral – a quem chamava de “vendidos” para baixo –, mas sim com a pouca atenção que lhe era devotada. Em um artigo publicado na Atlantic Monthly, (“Writers in Hollywood”), causou enorme mal-estar ao tratar o pessoal da indústria cinematográfica não exatamente de maneira muito cordial. Falava em “comitês de sicofantas” e atacou especialmente os produtores, que para ele tinham “a moral de uma cabra, a integridade artística de uma máquina caça-níqueis e os modos de um vendedor com mania de superioridade”.

A partir de 1954, depois da morte de Cissy, Raymond caiu em profunda depressão. Escrevia pouco, bebia muito. Chegou a tentar o suicídio, numa cena meio atrapalhada em que acabaria – completamente bêbado – atirando no teto do próprio banheiro e entregando a arma à polícia, encabulado. Vivendo entre Londres e os Estados Unidos, não resistiu a uma forte pneumonia e morreu no início da primavera de 1959.

* * *

Assim, há exatos cinquenta anos Raymond Chandler dava seus últimos suspiros, cuspindo sangue em uma clínica discreta de San Diego, ainda inconformado diante do pouco caso com que parte da crítica séria o tratava. E atribuía essa falta de reconhecimento justamente ao fato de escrever histórias de detetive, recebidas pela intelligentsia com enorme preconceito. Em seu ensaio mais famoso, “A simples arte de matar”, ele lembrava um pouco as palavras de Oscar Wilde: “Não existem formas vitais e significantes de arte; existe apenas a arte”. E atacava aqueles que menosprezavam o que seria a finalidade escapista do romance policial: “Toda leitura feita para o prazer é escapismo, seja Grego, Matemática, Astronomia, Benedetto Croce ou The Diary of the Forgotten Man. Dizer o contrário é ser um esnobe intelectual e um adolescente na arte de viver”.

Reclamações ranzinzas à parte, Chandler não gostava muito de teorizações sobre o romance policial, e o máximo que se permitia era uma crítica enfática às histórias de detetive do estilo inglês: basicamente, aquelas ambientadas em locais exóticos, em que o maior objetivo é a descoberta do culpado do crime e a resolução do quebra-cabeça montado pelo autor. Ele acreditava que a saída dos detetives às ruas – inovação do estilo americano – era uma evolução inevitável no gênero: “Conan Doyle e Poe foram primitivos nesta arte e estão para os melhores escritores modernos como Giotto está para Da Vinci. Eles fizeram coisas que não são mais permitidas e expuseram ignorâncias que não podem mais ser toleradas. Agatha Christie comete as mesmas idiotices hoje em dia, mas isso não as torna corretas”, escreveu em Notes on the Mystery Story. Chandler não poupava a escritora, e em mais de uma ocasião chamou o desdobramento final de Assassinato no Expresso do Oriente de algo para retardados [1].

Ele entendia que a única forma válida de escrever romances policiais era mesmo o realismo do estilo americano, inaugurado por Dashiell Hammett com O Falcão Maltês (1930), que Chandler considerava uma verdadeira obra-prima. Na introdução a sua coletânea de contos “A simples arte de matar”, afirmava que a nova maneira de escrever romances policiais invertera as coisas de uma vez por todas: a boa trama era agora aquela em que havia boas cenas, como na vida real.

Mas, no final das contas, admitiria que esse realismo era muito mais uma questão de estilo, para ele a coisa mais importante e durável na literatura: o meio que permite julgar a habilidade do escritor de transferir ao papel as suas emoções e todo um universo imaginado. Era isso o que Chandler amava, o que realmente lhe dava prazer na literatura. E por isso diria que um “escritor que detesta escrever, que não tem alegria na criação de mágica com as palavras, para mim simplesmente não é um escritor”.

De fato, o seu interesse não estava no enredo, mas nos ambientes, nas cenas, na linguagem e no witticism das conversas. Chandler encarava a trama como apenas “uma desculpa para certos experimentos em diálogo dramático. A fim de justificá-los, eu tenho de ter enredo e situações; mas fundamentalmente eu não ligo para nenhum deles”. Ele escrevia romances policiais pensando em como expandir as limitações do gênero. Procurava imprimir uma riqueza diferente de textura nas cenas, encantado com a nova possibilidade de fazê-lo em linguagem coloquial – mas nem por isso menos poética –, com ritmo e fluidez: “Tudo o que eu queria, quando comecei, era brincar com uma linguagem nova e fascinante, tentando – sem que ninguém percebesse – ver o que ela conseguiria fazer como meio de expressão não-intelectual e que, ainda assim, alcançasse o poder de dizer coisas que normalmente são ditas apenas com ar literário”.

E o fato é que essa brincadeira despreocupada acabou fazendo dele um dos maiores autores do século XX, em qualquer língua ou gênero, escrevendo com desassombro e melhor que os outros. O que, convenhamos, não é pouca coisa. E nem opinião isolada. Chandler exagerava um pouco na vaidade das suas reclamações: no final dos anos quarenta, Evelyn Waugh o considerava o maior escritor americano vivo. Era elogiado pelo sisudo Edmund Wilson e também por Ian Fleming – sim, o criador de James Bond. E W.H. Auden, um dos maiores poetas do século, afirmava com todas as letras que os seus livros poderosos deveriam ser lidos e julgados não como literatura escapista, mas como obras de arte.

Estavam todos cobertos de razão.

* * *

Embora exista uma discussão ferrenha sobre o assunto, para mim não há dúvidas de que a obra de qualquer autor pode e deve ser explorada para além de suas intenções explícitas [2]. Raymond Chandler não gostava muito de que o interpretassem e a seus livros em excesso. Ao ser elogiado por Auden, por exemplo, diria a um amigo: “Auden me deixou perdido. O seu ensaio sobre romances policiais é brilhante, mas por que me arrastar para dentro? Estou aqui me divertindo, escrevendo outra história de Marlowe, e esse cara me diz que eu escrevo ‘estudos sérios de um milieu criminoso’?”

Mas, se de um lado é possível – e até desejável – ultrapassar as intenções declaradas por um autor sobre a sua obra, talvez essa não seja a maneira mais honesta de ao menos começar. Raymond Chandler era apaixonado pela linguagem, como um poeta. E, ao contrário do que pensava de si mesmo – ao menos em público, noblesse oblige –, era um grande estilista. E, justamente por isso, é questão de justiça e boa-vontade examinar seus livros pelo resultado desse apuro estético que consumiu noites a fio em inversões de frases, vírgulas cortadas e um cesto de lixo cheio de papéis amassados.

O interesse quase que exclusivo de Raymond Chandler pela linguagem revela a enorme influência da poesia em sua maneira de escrever. É interessante notar que ele mesmo identifica a importância do verso – traçando uma linhagem que parte de Walt Whitman –
no ritmo fluido da forma inaugurada com o hard-boiled de Dashiell Hammett. E, em sua “Defesa das histórias de detetive”, Chesterton já havia também afirmado essa qualidade poética do gênero, dizendo que o “valor essencial do romance policial se encontra no fato de que foi a primeira e a única forma de literatura popular em que se traduz algum senso da poesia que existe na vida moderna”. Em Chandler, a influência da poesia está justa e igualmente nesses dois aspectos: tanto no apuro da linguagem em si, quanto naquele insondável “senso poético” identificado por Chesterton, presente em praticamente todas as suas cenas, diálogos e paisagens.

E, entre os poetas, é impossível não pensar em T.S. Eliot, especialmente aquele de The Love Song of J. Alfred Prufrock, The Waste Land e de The Hollow Men. Eliot talvez tenha sido o poeta moderno a melhor condensar toda a imensa tradição anterior e impulsioná-la à frente, em um sopro de linguagem renovado, aliando sua monstruosa erudição aos detalhes aparentemente insignificantes e coloquiais do dia-a-dia. Nós lemos Chandler descrever ruas devastadas, homens cinzas – “Ele era um homem cinza, todo cinza” [3] –, e a associação com a terra dos “homens ocos” de Eliot é inevitável: “Esta é a terra morta / Esta é a terra do cacto” (trad. Ivan Junqueira). E também com The Love Song of J. Alfred Prufrock e as suas ruas quase ermas – “que se alongam como um tedioso argumento” – e as noites mal-dormidas em hotéis baratos, ao lado de botequins.

E há muitas outras menções diretas e indiretas da obra de Eliot nos livros de Chandler. Na mais famosa delas – em O longo adeus –, o motorista de uma mulher rica surpreende Marlowe com citações dos versos de The Love Song of J. Alfred Prufrock, e o detetive responde com ironia, dizendo apenas que aquilo não fazia muito sentido e que Eliot provavelmente não entendia muito de mulheres. Mas os mesmos versos (“In the room the women come and go / Talking of Michelangelo”) podem bem ter espelhado a frivolidade de uma cena descrita em Adeus, minha adorada: “Era o tipo de lugar em que as pessoas sentam com os pés no colo e bebem absinto através de torrões de açúcar, e falam com vozes agudas e afetadas, e às vezes apenas guincham” [4].

O paralelo com Eliot vem realmente da semelhança de uma linguagem que alia toda a tradição literária dos clássicos ao coloquialismo e a fluidez moderna, além das ambientações urbanas levemente melancólicas de um mundo em profunda decadência espiritual. E esse desmoronamento era identificado por Chandler nas coisas mais comuns: “Quando uma civilização está em processo de decomposição, você sempre achará os símbolos dessa decadência nos subúrbios, nas vidas e casas das pessoas supostamente ordinárias e decentes”, escreveria em uma carta de 1948.

Esse amor de Chandler pela linguagem –
e mais uma influência da poesia – era notável também no cuidado com que escolhia suas metáforas. Em Adeus, minha adorada, descreveria o estado de espírito de um personagem: “debonair como um conde francês numa peça de escola” [5]. Falava de garagens “que faziam um barulho como jaulas de leão na hora da alimentação” [6]; e também comparava vozes frias a sopas de pensão [7]. E escrevia, ao retratar uma menina doce e tímida: “E ninguém jamais se pareceu menos com Lady Macbeth” [8]. E ainda certo “silêncio pesado, como um bolo caído” [9]. São imagens poderosas, exatas, perfeitas. E muitas vezes com grande senso de humor, como na descrição de uma garota lá não muito bonita: “A dez metros de distância, ela parecia ter bastante classe. A três metros, ela parecia como algo feito para se ver a dez metros de distância” [10].

* * *

Mas se há realmente uma diálogo nítido entre Chandler e os poetas, é possível também identificar que as suas descrições têm algo também da essência plástica das artes visuais. As ligações entre pintura e literatura – especialmente a poesia – já foram bastante exploradas, e o grande poeta Wallace Stevens tem um ensaio bem interessante em que compara a prosa de Proust aos quadros de Villon, relacionando a premissa das duas artes no denominador comum de que ambas seriam fontes de resgate da realidade como uma ficção aceitável.

Naturalmente, essa questão filosófica demandaria um ensaio inteirinho só para ela, mas a verdade é que a habilidade estilística de Chandler faz com que seja possível imaginar imediatamente e quase tocar muitas de suas cenas e paisagens, como se estivéssemos mesmo diante de um quadro. E naquelas ruas tristes e seus bares solitários com neons piscando na vitrine, nos subúrbios bucólicos pouco povoados e suas casas isoladas em cânions debruçados sobre o vazio do Oceano Pacífico, o paradoxo mais direto é Edward Hopper, pintor americano contemporâneo de Chandler que representava faróis como auto-retratos. Hopper pintava paisagens tristes, trilhos de trem solitários, pessoas com o olhar fixado no nada, interiores de cafeterias a altas horas da noite, postos de gasolina e lobbies de hotéis quase vazios.

Chandler escreve, em O sono eterno: “Nós passamos por debaixo das antigas luzes em arco e depois de um tempo havia uma cidade, prédios, lojas vazias, um posto de gasolina com a sua luzinha sobre uma campainha noturna, e ao menos uma cafeteria que ainda estava aberta” [11] e é impossível não pensar nos quadros de Hopper: Drugstore (1927), ou talvez Nighthawks (1942). E o mesmo tom pode ser percebido no vazio estático da paisagem que contrasta com o carro passando por ela: “Nós dirigimos de Las Olindas através de uma série de cidadezinhas de praia úmidas com casas como cabanas construídas na areia, perto do rumor das ondas, e casas maiores construídas mais para trás nos morros. Uma janela amarela iluminava-se aqui e ali, mas a maioria das casas estava escura. Um cheiro de alga vinha da água e pairava na neblina. Os pneus cantavam no concreto molhado do boulevard. O mundo era um vazio molhado” [12].

São descrições melancólicas e muito bonitas, que revelam toda a habilidade estética de Chandler, que efetivamente conseguia pintar seus ambientes com economia de palavras e uma qualidade fluida, seca e incomodamente triste, à maneira de Hopper: “Eu desci até Montemar Vista enquanto as luzes começavam a diminuir, mas havia ainda um brilho bonito na água e as ondas estavam quebrando longe, em curvas longas e suaves. Um grupo de pelicanos voava em formação-bombardeio logo abaixo da crista cremosa das ondas. Um barco solitário chegava para fundear na marina de Bay City. Para além dele, o vazio enorme do Pacífico estava púrpuro-acinzentado”[13]. A qualidade plástica suave e desassombrada salta aos olhos, plácida mesmo como um quadro.

* * *

Raymond Chandler era um mestre com as palavras, mas apenas isso não seria suficiente para torná-lo o grande escritor que efetivamente foi. Embora não desse muita importância à trama, os seus enredos eram muito bem-construídos, com suspense, ação e boas reviravoltas. E era preciso na construção de personagens decadentemente reais e em toda a complexidade moral das situações corrompidas que via no mundo.

Mas, entre escroques, chantagistas, pornógrafos, assassinos, médiuns charlatões, ninfomaníacas, políticos vis e velhos “de faces como batalhas perdidas” [14], teria de haver alguém que não se dobrasse a toda aquela corrupção. E por isso, Chandler imortalizou a figura de Philip Marlowe, um cavaleiro andante moderno tentando se manter honesto em meio à decadência de vielas obscuras. Como disse Ruy Castro, em seu incomparável Saudades do século 20, Marlowe era “um santo armado com um 38”.

Philip Marlowe é mesmo um personagem imortal, daqueles que daríamos tudo para conhecer na vida real. Com eternamente trinta e oito anos, Marlowe é moreno, suficientemente forte, veste-se bem, fuma desbragadamente e bebe qualquer coisa que não seja doce (segundo Chandler, ele encararia a oferta de crème de menthe como um insulto). Toma muito café – “amargo como o pecado” [15], e é dolorosamente íntegro, como define em O sono eterno, cobrando 25 dólares ao dia, mais despesas, sem aceitar casos de divórcio. Para Chandler, um sinal de sua convicção na indissolubilidade do casamento. Há em Marlowe o realismo da dificuldade inevitável – mas possível – de se viver uma vida virtuosa. E é também dolorosamente casto: em O sono eterno, recusa duas mulheres deslumbrantes que estão literalmente se oferecendo – uma delas já nua na cama –
mas depois rasga os lençóis, extravasando o custo hormonal da coisa toda.

Philip Marlowe não é um intelectual, mas tem a cultura suficiente de uma boa formação universitária. E são deliciosas as passagens e diálogos em que cita Samuel Pepys, Proust, Shakespeare, Dante, Kafka, Scott Fitzgerald, Coleridge, Flaubert, Keats e Browning. Fala de Jung, Freud e faz pouco da psicanálise. E trata de música, de Chopin a Bach, discorrendo sobre a performance de Schnapel e Rubinstein em obras de Mozart. Em O longo adeus, resume com wit a sua opinião da arte moderna: “Às três da manhã eu andava de um lado para o outro ouvindo Khachaturyan trabalhar em uma fábrica de tratores. Ele chamava aquilo de um concerto para violino. Eu chamava de uma correia solta e para o inferno com ela” [16].

E tratava os clientes ricos a tapas e pontapés, o que levou boa parte da crítica marxista a lhe atribuir uma certa consciência social proletária. Chandler ria da idéia e diria: “Agora existem pessoas me dizendo que eu tenho uma consciência social. P. Marlowe tem tanta consciência social quanto um cavalo. Ele tem consciência pessoal, o que é completamente diferente. Teve até um sujeito que me informou de que eu poderia escrever um bom romance proletário; no meu mundo limitado não existe esse animal, e se houvesse, eu seria a última pessoa no mundo a gostar dele, sendo por tradição e muito estudo um completo esnobe”.

* * *

Raymond Chandler escrevia como poucos e – conforme se vê da construção de Marlowe – tinha um senso moral apurado, o que fazia toda a diferença. Auden já dizia, com razão, que a punição do culpado e a absolvição dos inocentes trazem, nas histórias de detetive, a possibilidade de restauração do estado de graça perturbado com o crime cometido. Otto Maria Carpeaux também enxergava no romance policial esse restabelecimento do equilíbrio moral perdido, como em uma cena de três andares do teatro medieval: o detetive no Céu, o criminoso no Inferno, os suspeitos no Purgatório.

E Chandler – com todas as suas idiossincrasias –, não negava essa função de resgate. Muito ao contrário, dizia que “em tudo o que pode ser chamado de arte, há uma qualidade de redenção. Por entre as ruas suspeitas, é preciso haver um homem que não tenha medo. O detetive é esse homem. Ele é o herói, ele é tudo. A história é sua aventura em busca de uma verdade escondida”.

É preciso que haja redenção e Raymond Chandler sabia disso, assim como a grande parte dos autores policiais. Mas Chandler revolucionou as histórias de detetive justamente ao perceber que a existência do Mal não poderia ser resolvida com fórmulas quadradas e polarizadas, artificiais. Ele nunca ignorou que as leis, a polícia e até o seu detetive são apenas mecanismos imperfeitos – mas os únicos de que dispomos – para buscar a verdade e a justiça neste mundo.

Chandler deu o passo além, fazendo obras de arte que retrataram a única redenção possível aqui e agora para a existência do Mal: aquela feita e alcançada no equilíbrio das tensões, de maneira incompleta e entre homens igualmente falhos. Mesmo os santos e heróis, na sua tentativa diária e dolorosa de permanecerem íntegros neste campo armado, feito não apenas de curvas sinuosas, mas – como dizia Chesterton – de coisas tão certas e retas como uma espada.

Rodrigo Duarte Garcia é articulista da Dicta&Contradicta e trabalha como advogado em São Paulo.


[1] No livro de Agatha Christie, Hercule Poirot investiga o caso de um passageiro assassinado com doze facadas, na luxuosa linha de trem. No final, descobre que todos os doze suspeitos são igualmente culpados pelo crime: cada um deles teria esfaqueado a vítima por uma vez.

[2] Penso, como exemplo, no ensaio de Eric Voegelin sobre A volta do parafuso, de Henry James. O texto causou grandes debates, especialmente porque James havia deixado um bom material escrito sobre o significado do seu livro, que nada tinha com a interpretação do filósofo. Voegelin justificou-se diante da autonomia da obra de arte e da possibilidade de transcendência de seus símbolos universais, mesmo em confronto com os objetivos intencionais declarados pelo autor. E, a bem da verdade, o argumento parece ser mesmo irrespondível.

[3] Manterei as citações também no original em inglês, para que as minhas traduções livres não impeçam a possibilidade de apreciação da verdadeira linguagem de Chandler: “He was a gray man, all gray” (O sono eterno).

[4] “It was the kind of room where people sit with their feet in their laps and sip absinthe through lumps of sugar and talk with high affected voices and sometimes just squeak”.

[5] “Debonair as a French count in a college play”.

[6] “A basement garage that made a noise like lion cages at feeding time” (Janela para a morte).

[7] “Her voice was as cool as boarding-house soup” (A irmãzinha).

[8] “And nobody ever looked less like Lady Macbeth” (Janela para a morte).

[9] “Heavy silence, like a fallen cake” (A irmãzinha).

[10] “From thirty feet away she looked like a lot of class. From ten feet away she looked like something made up to be seen from thirty feet away” (Janela para a morte).

[11] “We passed under the ancient sputtering arc lights and after a while there was a town, buildings, dead-looking stores, a service station with a light over a night bell, and at last a drugstore that was still open”.

[12] “We drove away from Las Olindas through a series of little dank beach towns with shack-like houses built down on the sand close to the rumble of the surf and larger houses built back on the slopes behind. A yellow window shone here and there, but most of the houses were dark. A smell of kelp came in off the water an lay on the fog. The tires sang on the moist concrete of the boulevard. The world was a wet emptiness” (O sono eterno).

[13] “I got down to Montemar Vista as the light began to fade, but there was still a fine sparkle on the water and the surf was breaking far out in long smooth curves. A group of pelicans was flying bomber formation just under the creaming lip of the waves. A lonely yacht was taking in towards the yacht harbor at Bay City. Beyond it the huge emptiness of the Pacific was purple-gray” (Adeus, minha adorada).

[14] “Old men with faces like lost battles” (Janela para a morte).

[15] A irmãzinha.

[16] “At three A.M. I was walking the floor and listening to Khachaturyan’ working in a tractor factory. He called it a violin concerto. I called it a loose fan belt and the hell with it”.

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