Uma ciência na corda bamba

por Guilherme Malzoni Rabello

Quase todos os dias somos bombardeados por alguma grande descoberta da neurociência. Finalmente – pelo menos assim parece – encontramos uma ciência que resolverá todos os nossos problemas. Seu filho foi mal na escola? Sua cunhada está deprimida? O vizinho é esquizofrênico? E aquele estuprador que apareceu no jornal?… É tudo uma questão de tempo – de pouco tempo! – até que todos esses defeitos sejam corrigidos. Enquanto isso, enfim, nos contentamos com algumas imagens coloridas do cérebro estampadas no jornal e seguimos com a nossa vida, porque afinal ainda não há outro jeito.

Para muitas pessoas essa parece ser a imagem da neurociência, algo muito revolucionário e importante que está mudando a nossa maneira de enxergar o mundo. O cérebro humano é certamente qualquer coisa de fascinante, a “última fronteira da biologia”, como dizem por aí. Mas será que há de fato um motivo para tudo isso ou seria simplesmente mais um caso de muito barulho por nada? Quase tudo que é divulgado – e alardeado até – sobre as novas descobertas da neurociência é realmente uma novidade importante. Por outro lado, precisamos tomar cuidado para não confundir as coisas.

E aí voltamos à porta da caverna junto com nossos ancestrais e nos damos conta de que está em jogo aqui provavelmente a mesma pergunta que eles se faziam entre uma caçada e um desenho na parede: afinal, quem somos? Todo o fuzuê em torno da neurociência provavelmente deve muito ao desejo de finalmente encontrar essa resposta. E, mais do que isso, de ter uma ciência como garantia.

Cada coisa em seu lugar

Embora a palavra “ciência” pareça significar “aquilo que não gera dúvidas”, a realidade não é bem essa. Assim como todas as conquistas humanas, a ciência também possui uma história, também depende de um desenvolvimento e, acima de tudo, não está isenta de erros e percalços. (Chega a ser engraçado ter de dizer tudo isso, que é apenas o óbvio). E se realmente queremos saber o que está em jogo nessa história, é bom ter calma e começar pelo começo.

Como ponto de partida, vamos dizer que a neurociência estuda o funcionamento e a organização do sistema nervoso buscando compreender as bases biológicas do comportamento humano. A chave está em unir comportamentos humanos (perceber, agir, sentir etc.) com processos neurológicos, o que necessariamente exigirá a confluência de várias especialidades.

Desde Hipócrates, no século V a.C., já sabíamos que era apenas do cérebro que vinham as alegrias, tristezas, aflições e todos nossos sentimentos e sensações. Mas a história começa a ganhar os contornos que conhecemos apenas com o alemão Franz Joseph Gall (1758-1828). Ao enunciar os princípios do que chamou de frenologia, Gall propôs uma série de idéias que, se não fazem dele o pai da neurociência, certamente lhe garantem o título de seu avô. Mais do que afirmar que todo comportamento emanava do cérebro, Gall propôs a idéia de que regiões particulares do córtex eram responsáveis por controlar funções específicas – como se cada uma delas funcionasse como um órgão independente. Inicialmente o córtex foi dividido em 35 áreas, que seriam responsáveis por diversos fenômenos, desde a nossa percepção do tempo e das cores até os mais abstratos comportamentos humanos, como religiosidade, generosidade e amor materno.

Se Gall tivesse parado por aí, já teria garantido sua importância na história da ciência. Mas ele foi além e, junto com Johann Spurzheim, levou sua teoria a um patamar que lhes trouxe fama no mundo de então – embora para nós chegue a ser difícil acreditar que um cientista pudesse propor tamanho disparate. O passo seguinte na proposição da frenologia consistia em assumir que cada uma dessas regiões do córtex crescia com o uso – assim como um músculo cresce ao ser exercitado, cada região específica do córtex cresceria se fosse bastante estimulada. Ora, se a região cresce, ela cria uma pressão no crânio e, também, uma protuberância na cabeça do indivíduo. Com isso, a frenologia vai tentar estabelecer uma base anatômica para descrever o comportamento de cada um com base no formato do crânio. “Sua testa é muito grande? Um ótimo indicador de que você possui boa compreensão de tempo e espaço. Por outro lado, jamais case com uma pessoa com a nuca achatada: um claríssimo sinal de que ela não terá amor pelos filhos!”.

Mas é bom ter cuidado e conter a risada: rir de Franz Joseph Gall em muitos sentidos é chorar de nós mesmos… e já chegaremos lá. O importante aqui é a tentativa de localizar certos comportamentos em pontos específicos do cérebro.

Tudo ia muito bem para os frenologistas, Gall tinha ótima reputação em Paris –
cidade em que havia se estabelecido a partir de 1807 – atendendo pacientes nobres e burgueses na França de Napoleão Bonaparte, entre os quais ninguém menos que o escritor Stendhal. Até que, na década de 1820, Pierre Flourens resolveu testar a teoria de Gall. Seu trabalho consistia em sistematicamente remover os “órgãos cerebrais” (os pontos específicos do córtex) de animais e assim tentar verificar a mudança esperada no comportamento. Os experimentos tiveram o resultado oposto ao esperado e acabaram por transformar-se numa poderosa refutação da frenologia. Flourens concluiu que “todas as percepções, todas as volições ocupam o mesmo lugar nestes órgãos [cerebrais]; as faculdades de perceber, de conceber, de desejar meramente constituem, portanto, uma faculdade que é essencialmente única”. A idéia de que as funções cerebrais são o resultado de um processo que se dá no cérebro como um todo e que, portanto, não faz sentido querer dividi-lo em áreas especializadas ganhou rápida aceitação, sendo depois chamada de teoria do campo agregado.

Mas não demorou muito para que seus defensores também sofressem um grande abalo nas mãos de dois cientistas: Paul Broca e Carl Wernicke. Em 1861, Broca descreveu um paciente que compreendia perfeitamente a linguagem, não tinha nenhum defeito motor e, no entanto, não conseguia falar gramaticalmente, articular sentenças completas e nem mesmo expressar idéias através da escrita. Após sua morte, Broca fez a autópsia e encontrou uma lesão na região posterior do lobo frontal [1]. Mais oito pacientes que apresentavam sintomas semelhantes foram analisados e todos eles tinham uma lesão no mesmo local (não por acaso agora chamado de área de Broca). Isso o levou a declarar em 1864 que “nous parlons avec l’hémisphere gauche”, “nós falamos com o hemisfério esquerdo”.

Além da descoberta em si, o que talvez tenha sido a maior contribuição de Broca foi elevar a concepção frenológica a outro patamar: continua valendo que o comportamento é localizado, mas não podemos compreendê-lo pelo formato da cabeça e sim pelo estudo do cérebro.

Nessa mesma linha, em 1876, Carl Wernicke descreveu outro paciente com um distúrbio relacionado à linguagem, mas oposto ao de Broca. Este conseguia se expressar sem nenhum problema, mas simplesmente havia perdido a capacidade de compreender a linguagem. E, mais surpreendente, ao fazer a autópsia Wernicke constatou uma lesão na região posterior do lobo temporal – diferente da de Broca e também não por acaso conhecida hoje como área de Wernicke.

Com base nessas descobertas, Wernicke foi além e propôs uma teoria da linguagem na qual tentava unir o principio de localização da frenologia com o princípio do campo agregado, segundo o qual as funções cerebrais estavam homogeneamente distribuídas no córtex. Wernicke propôs a idéia de que funções básicas do cérebro de fato estavam localizadas, mas funções mais complexas seriam resultado de interconexões entre várias áreas específicas. E assim tornou-se o primeiro a idealizar o funcionamento do cérebro como um processo distribuído, concepção esta que continua a ser central atualmente.

A partir daí não era mais possível prosseguir sem olhar com mais calma o próprio cérebro. Afinal, o que seria essa massa meio gosmenta que se parece com uma marmelada? Como funcionaria? Quais as suas “unidades básicas”?

É claro que não foi apenas depois de Wernicke que o homem passou a se interessar pelo que tinha dentro da cabeça. Essa história poderia voltar à Roma com Galeno, ao Renascimento com Leonardo da Vinci ou à “eletricidade animal” de Luigi Galvani e suas rãs. O fundamental é que por todo esse período simplesmente não havia como conhecer mais detalhes do sistema nervoso. Apenas o microscópio, que já havia sido inventado no século XVII, não era suficiente.

Mas enquanto Wernicke atendia seus pacientes com afasia na Alemanha, um italiano chamado Camillo Golgi trabalhava numa pequena cozinha de hospital que ele havia transformado em laboratório. Foi provavelmente ali que Golgi descobriu uma solução de sais de prata que possibilitava identificar ao microscópio as estruturas do tecido nervoso. À primeira vista, pode parecer um avanço menos importante, mas não o foi: sem a solução de Golgi era simplesmente impossível determinar se afinal o cérebro era composto por células discretas ou se era constituído por algo como um emaranhado de fibras interligadas. Golgi defendia a segunda opção, mas dezesseis anos depois, em 1889, Santiago Ramón y Cajal demonstrou, utilizando a técnica desenvolvida pelo colega italiano, que o tecido nervoso era na verdade composto por células discretas – os neurônios, que foram assim batizados por Wilhelm von Waldeyer logo em seguida. Golgi e Ramón y Cajal, que não eram lá muito amigos, dividiram o prêmio Nobel em 1906 por suas descobertas.

Entramos assim no século XX com todos os elementos necessários para o grande boom que viria nas décadas seguintes. O caminho da neurociência estava traçado: por um lado, era necessário descobrir quais partes do cérebro eram responsáveis por quais funções; por outro, precisávamos conhecer o funcionamento das células nervosas. Tudo isso para chegar ao que realmente importava e continua importando: a integração do conhecimento nesses dois níveis.

Uma janela para alma?

Com o passar do tempo a ciência evoluiu e os problemas começaram a ser resolvidos. No entanto, uma barreira permanecia intransponível: não havia como estudar um cérebro saudável em funcionamento. Já era possível medir as ondas elétricas geradas no cérebro através de um eletrencefalograma (EEG). Essa técnica é muito útil em alguns casos, como, por exemplo, na identificação de alterações do ritmo elétrico cerebral em alguns casos de epilepsia, mas nos diz pouco quando não há nenhuma anomalia. A outra opção é estimular o cérebro de pacientes vivos que se submetem a cirurgias; mas se não fosse por outra dificuldade, estes também não seriam cérebros em condições normais.

Ora, se o objetivo da neurociência é relacionar os processos neurofisiológicos com os comportamentos humanos, de alguma maneira precisávamos ter acesso ao cérebro saudável em atividade.

Ao longo da história contada até aqui, um ponto fundamental para o desenvolvimento da ciência eram os pacientes incomuns. Paradoxalmente, só conhecíamos o cérebro quando ele parava de funcionar. E por isso, também paradoxalmente, as doenças e os acidentes eram fundamentais para a ciência. Alguém que tivesse tido um pequeno derrame e, por exemplo, perdesse a capacidade de diferenciar cores, ajudava muito a mostrar que existe uma parte do cérebro especificamente responsável por essa percepção. Ou o famoso caso de Phineas Gage, que num acidente teve a cabeça trespassada por uma barra de ferro de seis quilos e um metro de comprimento, e mesmo assim chegou ao hospital caminhando. Só o fato de ter sobrevivido parecia um milagre, mas, além disso, aparentemente, o único dano havia sido a perda da visão de um olho. Com o tempo, porém, os amigos começaram a notar uma brutal mudança em seu comportamento. Phineas, que era um rapaz trabalhador e equilibrado, havia se transformado num sonhador cheio de caprichos desarrazoados. Ou seja, uma lesão no cérebro pode modificar a personalidade! Então a personalidade está no cérebro?

A possibilidade de conhecimento, no entanto, parava mais ou menos por aí. Como na teologia negativa de Dionísio Areopagita, só podíamos conhecer aquilo que não era, e o cérebro permanecia em um mundo à parte e inacessível. Até que uma descoberta científica – que nessa metáfora de mau gosto seria o equivalente à Encarnação – mudou o quadro e abriu uma janela para nossa alma. Estou falando, é claro, das técnicas de imagem desenvolvidas nas últimas décadas. As mais importantes são a tomografia por emissão de pósitrons (PET, em inglês) e a imagem por ressonância magnética (MRI, em inglês). Nas técnicas de PET é necessário injetar uma substância radioativa na corrente sangüínea – na maioria das vezes, átomos de oxigênio com vida média muito curta. O PET, no entanto, gera imagens com baixas resoluções temporais e espaciais, intrínsecas ao fato de que o corpo precisa assimilar a substância injetada no sangue.

Com a ressonância magnética não há necessidade de assimilação de nenhuma substância especial. Mais do que isso, além de produzir imagens muito precisas e de boa resolução, ela pode ser adaptada para fornecer imagens em tempo real (ou quase) do cérebro em funcionamento. Eis aí la grande dame das técnicas de imagem, a ressonância magnética funcional (fMRI, em inglês). Enfim, são tantas as utilidades e tão importantes que muitas vezes ninguém faz a pergunta óbvia: “Mas o que são essas imagens? É mesmo possível tirar uma foto do meu cérebro em funcionamento?” A resposta requer um pouquinho de física.

Todos os prótons presentes nos núcleos dos átomos formam um campo magnético que, em estado natural, tem orientação aleatória. No entanto, se estes prótons estiverem dentro de um campo magnético muito maior que o deles, haverá uma tendência de alinhamento entre o campo magnético do próton e o campo magnético externo. O primeiro passo da ressonância magnética consiste em criar ao redor da área de interesse um campo magnético muito intenso (pelo menos 15.000 vezes maior que o campo magnético da terra). Com alguns prótons alinhados, o segundo passo consiste em emitir uma onda de rádio que fará com que eles mudem de orientação. Essa mudança produz um sinal detectável que é a base para a imagem.

Para a nossa sorte, os átomos das moléculas do sangue produzem um bom campo paramagnético; mais especificamente, é possível medir o nível de desoxihemoglobina[2] num determinado momento e num determinado local. Ora, para realizar qualquer atividade, o neurônio terá de consumir mais oxigênio; para que haja consumo de oxigênio, é necessário um aumento no fluxo de sangue e, por conseqüência, nos níveis de desoxihemoglobina. Se eu consigo medir esse nível, estou medindo o consumo de oxigênio; ergo, estarei medindo a atividade neuronal… e pronto: “Seus problemas acabaram!” Será mesmo? .

Em primeiro lugar, não custa lembrar que o cérebro todo usa oxigênio constantemente. Portanto, o que podemos medir é a variação do fluxo de sangue em relação a uma média. E aí vem a primeira perguntinha sem resposta: quem determina essa média? Em segundo lugar, a atividade neuronal se dá numa escala de milisegundos, ao passo que a variação do fluxo se dá na melhor das hipóteses numa escala de segundos; portanto, literalmente milhares de coisas podem acontecer sem que seja possível detectar a mudança.

Seria um erro colocar em dúvida os avanços tecnológicos que a ressonância magnética trouxe, sobretudo porque as limitações acima podem e devem ser superadas justamente com mais tecnologia. No entanto, é muito importante ter presente o que essas imagens significam: 1. Não se trata de nada parecido com uma foto, a imagem é apenas uma maneira gráfica de apresentar medidas físicas. 2. As medidas físicas não são feitas diretamente, mas dependem de vários pressupostos básicos e tratamentos estatísticos posteriores (aliás, a quantidade de estatística numa imagem de ressonância magnética deixaria os mais românticos apavorados). 3. Não há nenhuma medição direta da atividade propriamente cerebral, chega-se a ela por analogia.

E o mais importante de tudo: imagem por ressonância magnética funcional é uma técnica e nenhuma técnica pode trazer conhecimento por si mesma. O que temos com ela são dados que em si não significam nada. Por isso é bom ter cuidado com as conclusões apressadas: assim como hoje tendemos a rir de Gall ao determinar o comportamento pelo formato da cabeça, provavelmente daqui a duzentos anos estarão rindo da nossa relação do “pensamento” com o fluxo de sangue.

Mas, afinal, sabemos alguma coisa?

Nada disso, no entanto, diminui as conquistas da neurociência. De fato, nos últimos cem anos houve avanços enormes e o que era mistério, hoje em dia é conhecimento indiscutível. Uma maneira de entender esses avanços é lembrar das origens da neurociência: não por acaso, é possível traçar o desenvolvimento em duas grandes linhas; a primeira, que começa com Gall, Broca, Wernicke e Cia., vai tentar mapear o cérebro para descobrir quais partes são responsáveis pelo o quê; a outra linha, que começa com Golgi, Ramón y Cajal e Cia., vai buscar o conhecimento em nível celular.

Assim, por exemplo, sabemos com bastantes detalhes que o processamento visual se dá primordialmente no lobo occipital, que essa região por sua vez está dividida em áreas específicas para processar as características básicas dos objetos (contorno, por exemplo), outra associada à percepção de movimento, outra para a percepção de cores e que talvez exista até um processamento específico para reconhecer faces. O mesmo vale com mais ou menos detalhes para a audição, o olfato etc. Sabemos de onde saem os estímulos para o controle motor e como as sensações chegam ao cérebro. Sabemos as partes responsáveis pelo controle do sistema autônomo (batimento cardíaco, salivação etc.). As coisas começam a ficar um pouco menos claras em relação às funções mais elaboradas, mas mesmo assim já sabemos várias coisas sobre o processamento emocional, sobre os mecanismos de tomada de decisão, sobre processamento da linguagem etc. Enfim, vários livros poderiam ser escritos (e o foram) só com casos e exemplos interessantes do que já é conhecido.

A mesma coisa pode ser dita a respeito do conhecimento em nível celular. Conhecemos as estruturas básicas dos neurônios e já classificamos centenas de tipos de células nervosas de acordo com suas características e funções. Sabemos que os neurônios são capazes de produzir uma corrente elétrica e sabemos quais estruturas na membrana celular são responsáveis por criar estes potenciais de ação. Sabemos como se dá a transmissão sináptica, o que são e como agem os neurotransmissores.

O leitor atento, no entanto, terá notado que quase sempre há uma palavra para relativizar o que de fato sabemos ( “o processamento visual se dá primordialmente no lobo occipital” – o que significa dizer que certamente uma parte desse processamento está em outro lugar e ainda não sabemos por quê…). Mas, aqui também, é bom ter calma e lembrar que estamos falando de uma ciência novíssima, em pleno desenvolvimento: os primeiros protocolos de fMRI são da década de 1990. Se pensarmos friamente, esta é uma ciência que ainda está tentando firmar as suas bases.

A afirmação merece um comentário mais detalhado. Um grande avanço científico se estabelece não apenas com as novas descobertas. É só lembrar que provavelmente a maior teoria científica da história, as leis de Newton, não dependem da sua complexidade (elas são absolutamente simples) e também não dependem de nenhum fenômeno até então desconhecido. A grande importância de Newton foi justamente mostrar que dois princípios e uma equação eram suficientes para explicar desde a queda de uma maçã até o movimento da terra e o ciclo das marés. Em outras palavras, a ciência precisa sim buscar novos fatos e novos dados, mas o que realmente importa é chegar a uma explicação poderosa o suficiente para unificar um conhecimento que até então era disperso.

Neuro- o quê?

A neurociência está chegando agora no ponto em que será possível fazer alguma síntese. Por enquanto, o que temos são ilhas – maravilhosas, mas… isoladas! O conhecimento ainda precisa ser muito melhor trabalhado, relacionado e unificado. A situação começa a ficar preocupante quando notamos que algumas dessas áreas ainda isoladas começam a querer afirmar-se sem levar em conta as demais. É como se estas ilhas, impressionadas por sua beleza natural, resolvessem declarar independência umas das outras sem notar que no fundo não existem sozinhas – e, mais do que isso: que afinal pouco importa cada uma delas, pois estamos lidando com o ser e com o bicho chamado homem.

A conseqüência, quando não triste, é cômica. O maior exemplo é o prefixo “neuro”, que passou a ser uma espécie de palavra mágica para solucionar todos os nossos problemas. Você quer ficar mais esperto? Dormir melhor? Emagrecer? Ter orgasmos? Ser feliz? Basta tomar a última inovação em bebidas gaseificadas desenvolvida por “uma equipe de cientistas e nutricionistas de ponta”: a NeuroDrink! (Isso é sério!!! Quem duvidar, pode conferir em www.drinkneuro.com).

O exemplo é obviamente o mais esdrúxulo que consegui encontrar. O importante é que as coisas não chegaram nesse ponto sem se apoiarem numa cadeia de acontecimentos que as justificassem. Porque a questão passa a ser muito grave quando vemos iniciativas sérias, chefiadas por pessoas inteligentes e bem intencionadas, caírem num problema parecido.

Da mesma maneira que você pode tomar um neurodrink, você pode ler um livro de neurolingüística, de neuroestética, de neurojurisprudência, de neuroética ou de neurofilosofia. Sem dúvida alguma, estamos lidando com um problema de outra ordem. Tentar entender os mecanismos neuronais envolvidos na estética, no direito ou na filosofia é um desafio que de fato existe e deve ser abordado. O problema está em tratar essas mesmas disciplinas e a própria neurociência sem o devido cuidado.

Quando um cientista descobre quais áreas do cérebro estão ativas quando pensamos numa pessoa amada, não estamos descobrindo absolutamente nada de novo sobre o amor. Estamos apenas conhecendo um pouco mais sobre como o cérebro funciona. E esse conhecimento não nos fará melhores filhos, melhores maridos ou melhores amigos. O problema da profusão de “neuro-disciplinas” é que teremos justamente a conseqüência oposta do que desejávamos: por ser feita de maneira apressada, ficamos com as dúvidas e bagunçamos as certezas.

De certa forma, o que “os outros” dizem da neurociência não é problema dela – e isso vale para a grande maioria de exageros que circulam por aí. Mas, como já disse, se existe um problema, pelo menos uma parte dele chega à própria ciência:

“Você pensa sobre grandes questões, como o sentido da vida ou o significado do significado? Ou você é do tipo que não se preocupa com tais questões? Se você é do segundo tipo, não leia este livro (muito embora seria melhor que você o lesse). Este livro é para aqueles que se preocupam com o que representa a vida, a mente, o sexo, o amor, o pensamento, o sentimento, o movimento, a atenção, o lembrar, o comunicar e o ser. Melhor, este livro trata do estudo científico de tais questões. Então, prepare-se para aprender sobre uma fantástica história que ainda está sendo escrita” [3].

Este é o primeiro parágrafo de um livro técnico de neurociência cognitiva. Os autores são cientistas sérios e, o mais importante, trata-se de um bom livro introdutório. O ponto é que ao longo de todas as suas mais de 750 páginas nenhuma das questões acima será sequer tratada, quanto mais respondida. Felizmente, este é só mais um livro para quem quer estudar neurociência cognitiva e… nada mais. Mas como é possível que ele comece assim?

Uma ciência na corda bamba

A principal conquista da ciência moderna foi estabelecer-se como um ramo autônomo do conhecimento. A possibilidade de explicar os fenômenos naturais sem nunca recorrer a explicações míticas foi um dos grandes avanços da civilização ocidental. Conseguimos isso ao reconhecer que existe uma ordem na natureza que pode ser compreendida pela razão, e a partir daí o problema mudou de nível até transformar-se numa questão de puro método, e tanto melhor se o método for experimental.

Uma conseqüência desse fato foi que a ciência deixou de depender de definições conceituais estritas. Um cientista experimental pode ser até certo ponto eficiente, apesar de usar definições imprecisas ou mesmo falsas. Do mesmo modo, por mais que um experimento seja importante, ele nunca fornecerá as bases conceituais para interpretá-lo. Não é possível formar uma teoria (unificar o conhecimento) sem conceitos adequados. Portanto, toda ciência depende de uma base pré-científica sólida.

Na neurociência esse paradoxo se apresenta com uma importância fundamental. Porque por um lado todo o seu sucesso é fruto justamente desta autonomia das ciências experimentais, mas por outro ela lida com a substância mais rica da natureza – o homem. Se por um lado ela é orgulhosamente científica (e tem de sê-lo), por outro é o mais humano dos conhecimentos. A neurociência lida com o homem, mas cuidado: por ser ciência, desde a sua essência ela não pode sozinha definir tudo aquilo que somos.

Isso faz com que ela sofra as conseqüências de estar no topo do que é um dos maiores desafios que temos pela frente. Os avanços e suas conseqüências são absolutamente indiscutíveis e justamente por isso não têm ainda muito onde se apoiar. É uma ciência que, por tudo o que já fez e ainda pode fazer, está na corda bamba.

O problema aqui não é meramente conceitual, não são definições que estão faltando e poderíamos deixar para mais tarde. Ao conhecer cada vez mais o funcionamento do cérebro, a neurociência passa a se propor questões que envolvem no final das contas um conhecimento do homem muito bem articulado.

Até há não muito tempo, um grande desafio da neurociência era explicar, por exemplo, os mecanismos envolvidos no reflexo patelar. Nesse estágio, lidava-se com uma explicação que não tinha como criar questões que trouxessem à tona o que estamos descrevendo aqui. Não há muitas dúvidas sobre o que seja um tendão, uma patela e um reflexo. Ao conhecer mais, e a lidar com as características eminentemente humanas, o problema ganha outra dimensão. O que são emoções? O que é a razão? O que significa ser consciente? A neurociência pode responder como as emoções agem, quais partes do cérebro estão relacionadas com a razão, o que acontece enquanto estamos conscientes. Mas para isso ela precisa ter partido de um conhecimento prévio do que estas coisas são, independentemente de funcionarem assim ou assado.

As respostas não estarão num Dicionário para neurociência, elas precisam ser construídas a partir de um trabalho que não fuja às questões fundamentais. Porque pouco importa a quantidade de dados que podemos acumular, se não soubermos as perguntas pertinentes a fazer. E fazer perguntas sempre foi o papel fundamental da filosofia.

Talvez por isso ela não seja o mais bem visto dos conhecimentos atuais, mas seu papel sempre foi e continua a ser fundamental: ser capaz de fazer as perguntas certas significa ter uma base para avançar o conhecimento sem ter surpresas desagradáveis. Porque as técnicas podem se desenvolver com perguntas erradas, e técnicas podem alterar o funcionamento daquilo a que se destinam…

Enfim, não podemos desprezar a importância do que a neurociência tem nas mãos. Estamos chegando ao ponto de poder começar a unificar o que sabemos da psicologia, da psiquiatria e da neurologia. As possibilidades que se abrem para a neurociência são enormes, assim como é enorme a responsabilidade das pessoas que estão envolvidas. O que precisamos é ter coragem de enfrentar os desafios na sua totalidade e não virar as costas ao que for mais difícil. Senão, melhor será trancafiar-se na assepsia de um laboratório e agradecer ao fato de que os ratos não fazem perguntas.

Guilherme Malzoni Rabello é doutorando em neurociências pela UNIFESP e presidente do IFE.


[1] O córtex cerebral é normalmente dividido em quatro lobos denominados de acordo com os ossos do crânio sobrepostos à sua localização: frontal, parietal, temporal e occipital. De maneira aproximada, poderíamos dizer que o lobo frontal está na parte da frente da cabeça, o parietal na parte de cima, o temporal na parte lateral e o occipital na parte de trás.

[2] “Desoxihemoglobina” é a hemoglobina que já perdeu o oxigênio que carregava para a respiração celular.

[3] Gazzaniga, Michel S.; Ivry, Richard B.; Mangun, George R. Neurociência Cognitiva. A biologia da mente (Ed. Artmed. 2ª Edição. Pág. 19).

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