Editorial

“Let mind be more precious than soul; it will not
Endure. Soul grasps its price, begs its own peace,
Settles with tears and sweat, is possibly
Indestructible. That I can believe” [1].

(Geoffrey Hill, King Log, “Funeral Music”).

Uma das vantagens de se publicar uma revista como a Dicta é que, quando estivermos velhos, também nós poderemos dizer que participamos de uma guerrilha. Afinal, não existe outra maneira de divulgar essa quintessência da contracultura senão partir para a luta armada, aproveitando todas as oportunidades, como por exemplo deixando-a estrategicamente entre o foie gras e o champanhe em todas as cocktail parties de que participamos. Ou, se não tiver jeito, entre a mortadela e a cerveja.

Em certo almoço, lá estava, pois, a Dicta, como uma espécie de ratoeira perto dos queijos. Até que, de repente, vinda de onde menos esperávamos, deu-se uma atração fatal. Uma grã-fina apanhou-a com os olhos brilhando: “Nossa! Me passa essa revista! Era disso que eu estava precisando!” Ficamos todos em suspense… “Dica de Contrabandista! Que legal! Deixa eu ver se tem aquela bolsa Chanel que eu estava procurando!”

Até certo ponto, é preciso dizer que nos sentimos reconhecidos; afinal, o que praticamos é, pouco mais ou menos, contrabando cultural. Claro que sem o retorno financeiro do ofício original, embora todos estejamos de acordo em que, “se não dá lucro, ao menos diverte”.

* * *

E já que falamos de tráfico, vamos a algumas dicas sobre a muamba mais recente. Entre os artigos principais, trazemos uma entrevista com Ferreira Gullar, reconhecidamente o maior poeta brasileiro vivo, que fala não apenas de literatura, mas de ideais, decepções e até da morte. Ela encontra o seu contraponto no artigo de Martim Vasques sobre Bruno Tolentino, com certeza o maior poeta brasileiro da segunda metade do século XX e amigo pessoal de Gullar: uma análise de As horas de Katharina, obra central de Bruno, em conjunto com a peça inédita A andorinha, ou: A cilada de Deus, que complementa e esclarece as Horas; as duas estão para ser lançadas num volume único pela Editora Record.

Cada qual a seu modo, os dois grandes poetas respondem à pergunta formulada por Pedro Sette Câmara na Anatomia do poema: “Considerando o ambiente discursivo, isto é, a convivência simultânea com o exagero da política, a padronização do jornalismo, a desagregação da fala cotidiana, a vacuidade do academicismo, e o sentimentalismo da publicidade, como produzir um discurso responsável, relevante, capaz de tocar seu destinatário de modo a fazer reviver a linguagem desgastada?” Mas o contraponto entre Ferreira e Bruno diz respeito a muito mais do que a uma questão de estilos poéticos. Representa todo um contraste – e uma conversa – entre visões do mundo quase que diametralmente opostas, e nesse sentido estabelece um diálogo extremamente rico e interessante.

Gullar também nos cedeu diversos poemas para a seção de poesia nacional. São tirados da sua obra inédita, Em alguma parte alguma, que deve ser lançado no semestre que vem pela José Olympio.

O terceiro artigo principal é do Prof. Gustavo Franco. Naturalmente, o autor dispensa apresentações; mas o que talvez nem todos saibam é que, além de economista, é também um estudioso da literatura. Seu ensaio sobre Shakespeare e a política no Brasilvasculha o universo do grande poeta inglês, procurando encontrar paradigmas que ajudem a interpretar o momento histórico pelo qual passamos.

Alexis de Tocqueville não é apenas o autor de filosofia política que todos conhecem, lembra-nos o professor de Harvard Harvey Mansfield; deixou-nos as belas páginas de suas Memórias, escritas em plena Comuna de Paris, em 1848. Ao abrir sua intimidade durante aquele turbilhão de acontecimentos que varreram a capital francesa, Tocqueville mostra-nos como nem mesmo a perplexidade e o desânimo podem apagar a vocação humana de levar a razão para o meio do caos.

As Memórias de Tocqueville, assim a como as “memórias” do massacre de Katyn, exploradas por Darius Tolczyk em seu ensaio investigativo, ou ainda as memórias de Goethe em horas de profundo desalento, são lembranças valiosas, pois, se dão testemunho da irracionalidade e da estupidez humanas, também atestam a força não menos humana de erguer-se e reerguer-se continuamente diante delas. “Os cínicos estão errados, não por dizerem que os heróis podem ser covardes , mas por não aceitarem que os covardes podem ser heróis”, diz Chesterton.

Anthony Daniels, correspondendo ao desejo dos leitores, e gratamente surpreendido ele mesmo com a qualidade da Dicta, arrisca converter-se em autor habitual; neste número, escreve sobre o espinhoso tema do juízo estético. E João Pereira Coutinho analisa o “filósofo de Manhattan” Woody Allen à luz de Tolstoi, Kierkegaard e Richard Taylor.

Também será interessante notar que o artigo Em busca da forma substancial, do Joel Pinheiro, nasceu das discussões do grupo de filosofia que também deu origem ao IFE. Já era hora de mostrarem algum serviço…

E, last but not least, vale a pena mencionar o Perfil, que desta vez é sobre G.K. Chesterton, modelar por diversas razões: pela sua capacidade de discordar a fundo do adversário sem ferir, pela honestidade que o conduziu ao longo de um amadurecimento intelectual e espiritual de muitas etapas, e ainda pela maturidade plena que atingiu nesta nossa era da adolescência permanente. Ao mesmo tempo, sentíamos havia já algum tempo que faltava alguma coisa que ajudasse o leitor a formar uma idéia mais direta do autor apresentado; assim, resolvemos publicar na sessão de conto internacional um conto do mesmo Chesterton inédito em português: “O fim da sabedoria”.

Há outra faceta menos conhecida de Chesterton: a sua qualidade de ilustrador de livros próprios e alheios, infantis e adultos. Por isso, aproveitamos também para publicar diversos dos seus deliciosos desenhos, provavelmente aquilo que há de mais lúdico e desinteressado, de “infantil” no bom sentido. Assim o leitor da Dicta terá uma oportunidade preciosa de entrar no universo dele.

Por fim – agora é mesmo o fim desta parte –, como o conto de Chesterton versa sobre a sua compreensão do amor, pusemos na sátira um dos seus “inimigos mais íntimos”, H.G. Wells, com um texto que trata pouco mais ou menos do mesmo tema. Assim se poderá, também aqui, apreciar o contraponto das visões do mundo.

Aproveitemos aqui, mais esta vez, para agradecer: à CPFL, que se dispôs a investir na Dicta com prontidão, e ao Banco Fator, que continua a nos apoiar com a máxima delicadeza e isenção.

* * *

Algum leitor mais crítico, ao ver que os textos clássicos deste número – Chesterton, Stevenson, Wells – praticamente só trazem vitorianos, poderá comentar que esta Dicta saiu meio “Appointed by her Majesty”. Uma resposta simplista seria: “E agora é culpa nossa se esse pessoal escreve bem?” Mas há razões melhores, e a principal delas é que na Inglaterra se formou historicamente um tipo de intelectual, o man of letters, que prima pela clareza e capacidade comunicativa.

As filosofias do progresso e da ação a todo o custo, tão típicas do século XX – ao menos nas suas conseqüências – ensinaram-nos por contraste uma antiga verdade: a de que, na atividade intelectual, o primeiro lugar deve pertencer à contemplação, ao olhar que estuda amorosamente o real. Esse olhar que, nas palavras de Martim Vasques falando das Horas de Katharina, “retira os véus de temporalidade do objeto e o põe em uma completa nudez e despojamento, apresentando-o em sua inteira beleza ao espírito humano, para que este possa amá-lo de uma maneira que já não esteja marcada pela temporalidade”.

Mas o primado da verdade nada tira da tarefa conseqüente, que é a de transmitir aos outros aquilo que se contemplou. No conto “O fim da sabedoria”, Chesterton afirma que “The end of wisdom is life”, “o fim da sabedoria é a vida”. E, descrevendo uma das personagens, acrescenta: “Tinha uma paixão pelo prático, por traduzir pensamentos em coisas. Para ela, um romance que não se transformasse em uma realidade era tão desinteressante quanto uma receita que não se transformasse em uma bela refeição. Era tão incapaz de viver de sonhos quanto de almoçar livros de culinária”.

A questão é que essa tarefa impõe ao artista, ao escritor, ao filósofo, um peso enorme. Desde Francis Bacon, sabemos que toda a renovação do pensamento e das artes traz consigo uma pars destruens, uma obra de destruição, que precede a pars construens, a obra da construção. O problema é que, ingenuamente, a modernidade aplicou a tarefa de destruição somente “aos outros” e não a si mesma: à tradição como um todo, às formas artísticas anteriores, à crítica social e intelectual.

No entanto, o primeiro objeto de destruição deveria ser a própria pessoa. Trata-se de destruir as lentes que deformam a nossa capacidade de captação da verdade: a dos medos infundados, a da desistência fácil, a da vaidade que implora atenção, a da arrogância presunçosa… Em suma, praticar aquela ascese que Platão já indicava como absolutamente essencial para quem quisesse dedicar-se à filosofia, e que continua sempre válida para quem queira ser um intelectual… de qualidade.

Uma segunda vertente da ascese intelectual e artística, já a meio da pars construens, consiste no “aprendizado do instrumento”, no esforço laborioso e cansativo por fazer as palavras (ou o pincel, ou o cinzel, ou seja lá o que for) dizerem o que queremos que digam. “Se eu fizer um poema que ninguém entende”, diz Ferreira Gullar, “seria incomunicável. Se eu fizer um quadro de que ninguém gosta…” Tem-se às vezes a impressão de que hoje reina uma espécie de filosofia e de estética do desleixo e da improvisação, dos grandes gestos e da inanidade formal, que talvez responda menos às angústias do passado “século do nada” do que… à boa e velha preguiça.

Essa disciplina do ofício é, reconhecidamente, esmagadora: “A arte é longa e a vida é breve”, reconheciam os clássicos. Não responde apenas a uma espécie de perfeccionismo do criador para com a obra que quer nascer, mas representa o mais elementar dos deveres que qualquer artista e pensador tem para com o seu público. Embora correndo o risco de cansar por excesso, pode ser interessante mais este exemplo: Chesterton, que desde a juventude tinha presente que queria escrever e se sentia explodindo de coisas a dizer, escrevia sempre e em todas as circunstâncias, até “no meio da noite, encostado à barraca de um vendedor de cachorro-quente”, para adquirir o domínio do seu talento.

Por outro lado, uma questão elementar de responsabilidade é que o autor não pode simplesmente arrotar o que acha que tem para dizer, desinteressando-se de quem o ouve. O intelectual (de qualidade) desempenha o papel social de um autêntico educador, é sempre mestre de pelo menos uma parte da sociedade. Se se encerra na torre de marfim de algum academicismo, corre um grande risco de esterilizar-se (quando o seu problema não é encontrar um refúgio onde esconder a sua mediocridade); mas pior ainda é quando se dirige ao público geral sem se perguntar que efeito produz sobre os seus ouvintes.

Um Cioran, por exemplo, que pouco mais ou menos prega o suicídio (sem ter ido às últimas conseqüências, diante do que só se pode dizer: “Melhor para ele”), não é um exemplo de honestidade ou um corajoso desafiador das convenções; mal e mal é um pobre irresponsável autocentrado, que não enxerga outro horizonte além de si. E o mesmo se diga de um Sartre que, ao “alinhar os copos e os argumentos” nalgum café de Saint-Germain-des-Prés, com a sua filosofia do desespero levou mais de um estudante a encharcar as roupas de gasolina e a riscar um fósforo, como era moda nos alegres anos sessenta. E também se diga de todo o resto da intelectuália que faz da contemplação do umbigo o parâmetro de toda a verdade.

“De cada um segundo as suas capacidades para cada um segundo as suas necessidades”, dizia o velho adágio socialista, traduzindo algo que pertence ao comum sentir da humanidade e ao mesmo tempo às ânsias íntimas de qualquer criador. O intelectual (de qualidade, sempre) recebeu um privilégio que, em última análise, não lhe pertence. E por isso terá de prestar contas dele. O que, se é um verdadeiro intelectual, lhe trará não só as angústias do parto, mas sobretudo a alegria transbordante no nascimento.


[1] “Deixa que a mente seja mais preciosa que a alma; ela não / Resistirá. A alma sabe o seu preço, pede a própria paz, / Recolhe-se com lágrimas e suor, é possivelmente / Indestrutível. Nisso eu posso acreditar”.

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>