Dois métodos

por Olavo de Carvalho

O que se entende como “rigor”, nos meios intelectuais gerados pela Faculdade de Filosofia da USP, em geral não passa de afetação de frieza superior sob a desculpa de escrúpulos filológicos. Mas às vezes a expressão vem com algum significado. Nesta e melhor das hipóteses, designa a aplicação, com ou sem acréscimos desconstrucionistas e marxistas, do método de análise estrutural de textos criado por Martial Guéroult no seu estudo clássico Descartes selon l’Ordre des Raisons – um livro que aliás admiro tanto quanto os guéroultianos da USP.

O método inspira-se num conselho de Victor Delbos: “Cuidado com aqueles jogos de reflexão que, a pretexto de descobrir a significação profunda de uma filosofia, começam por negligenciar a sua significação exata”. Para honrar essa precaução, Guéroult parte de três pressupostos: (1) a filosofia de um filósofo está nos textos que ele escreveu; (2) nesses textos a forma lógica interna, a ordem da demonstração, o esquema de validação, é tão importante quanto as teses explícitas que o filósofo nos legou; às vezes é até mais; (3) a estrutura lógica da demonstração nem sempre coincide com a ordem linear do texto, mas deve ser recomposta a partir dela.

Os pressupostos 2 e 3 são óbvios e universalmente aplicáveis. O pressuposto número 1 é que é problema. Embora valha, até certo ponto ao menos, para a obra de alguns pensadores, como o próprio Descartes, Kant e Bergson (este último chegou a afirmar que seus escritos traziam a expressão completa da sua doutrina, sem que restasse nada a acrescentar), seria no mínimo temerário aplicá-lo a outros filósofos, cujos escritos, fragmentários ou de ocasião, nem expressam uma doutrina completa nem o fazem necessariamente segundo a melhor “ordem das razões”. O exemplo clássico é Platão, cujo ensinamento principal foi transmitido oralmente a seus discípulos, sem aparecer nos seus escritos senão sob a forma de alusões sibilinas. Que fazer com Aristóteles, cujos escritos são apenas rascunhos de aula, muitas vezes sem ordem identificável, e cuja obra principal, a Metafísica, é uma coletânea de textos independentes, de épocas diversas, montada tempos depois da morte do autor por um estudioso que jamais foi aluno dele nem o conheceu pessoalmente?  O próprio Leibniz, uma das mentes mais organizadas que o mundo já conheceu, não deixou nenhuma exposição sistemática da sua doutrina, que tem de ser recomposta de cartas, rascunhos e escritos de ocasião – donde muitos intérpretes serem levados a enxergar na sua obra antes um “ecletismo” do que uma filosofia organizada. Que pode a análise estrutural de textos fazer, nesses casos, senão nos fornecer, ainda que cada uma bem esclarecida nos seus detalhes internos, as peças isoladas de um quebra-cabeças?

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