Dicta 10 – Editorial

Caros leitores, com muito sangue, suor e lágrimas, atrasos indesculpáveis e corridas desesperadas na redação, finalmente lançamos nosso décimo número. A nova edição chegará às lojas no dia 15 de julho. Até lá, publicamos já o editorial da décima edição.

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EDITORIAL

Même pour le simple envol d’un papillon tout le ciel est nécessaire.[1]

Paul Claudel

 

Chegar ao décimo número não foi fácil! Como, por uma idiossincrasia de nosso sistema numérico, o 10 e seus múltiplos adquirem um significado diferenciado, é uma boa hora de se parar, olhar, avaliar e ajustar a bússola para seguir em frente. Hora de relembrar a nossos leitores – e a nós mesmos – dos objetivos desta revista: ajudar a formar no Brasil, por meio da publicação de ensaios e outras manifestações da palavra escrita, “o hábito de discussão de ideias, algo que se pode fazer com toda nobreza e boa educação” (conforme dito em nosso primeiro editorial, em 2008).

Com doses generosas de erros e acertos, continuamos trilhando o mesmo caminho. Nosso critério de publicação segue sendo duplo: por um lado, textos bem escritos, vindos seja de nomes importantes da cultura nacional ou de desconhecidos talentosos. Por outro, temáticas relevantes; isto é, que não temam mergulhar de cabeça nas questões mais importantes que a condição humana suscita. Não que o efêmero, o fugaz, e mesmo a futilidade não tenham seu lugar; têm e têm que ter. Um mundo em que todo ato fosse uma escolha de vida ou morte, e em que toda conversa ou texto versasse sobre a condição humana ou a natureza do universo, seria, na melhor das hipóteses, entediante; na pior, sufocante. Tendo dito isso, parece-nos que, na cultura brasileira em geral, o efêmero e o fútil têm mais espaço do que merecem, de modo que mesmo o talento é muitas vezes usado para fins que não lhe fazem justiça. Talvez para corrigir esse desequilíbrio percebido, queiramos pecar para o outro lado: aqui, o foco é nas Grandes Questões, assim com maiúscula mesmo.

Não que temas mais leves nos sejam completamente estranhos; mas é um fato que a maior parte de nossas páginas tratam de temas sérios. De preferência, se possível, com um estilo leve, fluido e direto. Acreditamos que suscitar o pensamento e o debate sobre as questões importantes da vida já seja, antes de se advogar qualquer posição específica, algo que faz bem a qualquer um; quase um fim em si (quase porque, no final das contas, o próprio ato de discutir e pensar tem que pressupor que algum tipo de conclusão é possível). E acreditamos que todos são capazes de fazê-lo; nosso objetivo é ajudá-los nesta empreitada que, temos certeza, não deixa de ser extremamente prazerosa.

Este décimo número não poderia fugir à regra. Os três artigos principais, aliás, versam abertamente, sem qualquer vergonha – ou melhor, com soberba – sobre as Grandes Questões.

O primeiro deles, de autoria de Antonio Cicero (que une seu mais conhecido talento de poeta ao alto nível filosófico), discute a distinção entre civilização e barbárie. Bem sabemos que ela não é, e nem pode ser, hoje em dia, tomada como óbvia. A pretensa civilização comportou-se, em diversos momentos da história, exatamente como a barbárie da qual ela supostamente se distinguiria. Cabe falar em distinção? Cicero visa superar essa dificuldade e mostrar que o conceito de civilização é relevante e não se confunde com a exaltação de uma cultura em particular (a cultura ocidental ou europeia) em detrimento das outras.

É outro filósofo de respeito que assina nosso segundo artigo principal. Desidério Murcho interroga-se a respeito do sentido da vida, e mais, se é cabível dizer, que existe algum tipo de sentido satisfatório a ser dado à vida humana. Em diálogo com Thomas Nagel, que colocou em dúvida essa possibilidade, pelo fato de que podemos olhar para nossa própria vida e desejos de uma perspectiva externa e impessoal, e colocando também em dúvida as respostas religiosas que pretendem dar resposta fácil à questão, ele procura o estreito caminho do meio que separa o niilismo da credulidade.

Se os dois primeiros artigos principais constituem uma discussão plenamente secular e racional sobre os problemas levantados, nosso terceiro já apresenta uma discussão teológica; mais especificamente, referente à teologia católica latino-americana. Numa entrevista densa – da qual uma pequena parte apareceu na Folha de S. Paulo em 11 de março – Clodovis Boff, um dos expoentes da Teologia da Libertação no Brasil, dá seu diagnóstico sobre os rumos do movimento, especialmente ao perder o caráter teológico que toda empreitada espiritual deveria ter. A entrevista tem um interesse evidente para leitores católicos. Cremos, contudo, que ela oferece também aos não católicos a oportunidade de enxergar desde dentro os dilemas, dificuldades e preocupações de uma tradição religiosa e teológica, e entender mais sobre o movimento cuja importância na história recente do Brasil é inegável.

A seção Perfil debruça-se, não sobre um teólogo, mas sobre um filósofo que não teme em falar de Deus: Alvin Plantinga. Como disse William Lane Craig em sua visita ao Brasil no início de 2012, a discussão séria acerca da existência de Deus voltou ao mundo acadêmico de língua inglesa por uma porta inusitada: a da filosofia. E dentre os responsáveis por essa abertura certamente encontra-se Alvin Plantinga, cujos argumentos contra o naturalismo filosófico vêm, desde décadas atrás, causando muito barulho e gerando muito debate no meio filosófico profissional. Seu trabalho circula pouco em universidades brasileiras; quem sabe está na hora de descobri-lo.

Um nome que certamente goza de maior sucesso em nosso meio acadêmico é Slavoj Zizek. Talvez por isso mesmo sintamo-nos mais à vontade para criticá-lo. Fernando Luís Schuler, em artigo para a seção de Filosofia, encarrega-se de desmanchar o prestígio que Zizek acumulou em nosso meio intelectual. Por fim, Joel Pinheiro, um de nossos editores, apresenta uma crítica à tese do fisicalismo, segundo a qual não passamos de agregados físicos dos quais os pensamentos e outros eventos mentais são excrescências sem nenhuma relevância causal.

Muitas questões que inquietam o homem desde que… bem, desde que é homem, dão-se  nesse plano filosófico, abstrato, que abarca toda a humanidade e a estrutura do universo. Mas há também grandes questões que contemplam temas um pouco menos abrangentes e nem por isso menos importantes: como o devemos viver, e como organizar a vida em sociedade? Uma posição política e filosófica que vem ganhando destaque crescente na grande mídia brasileira é o assim chamado “conservadorismo”, que tem no americano Russell Kirk (1918-1994) seu mais importante formulador moderno. Publicamos, em nossa seção Genesis, um texto de Kirk, inédito em português, sobre as principais características dessa vertente do pensamento político. Já na seção Sociedade, Carlos Ramalhete, em tom positivo (e não normativo), argumenta que o brasileiro já é, mesmo sem sabê-lo, conservador.  Somos, diz ele, desde há muito tempo, governados por elites modernizantes, mas nossa população continua irredutivelmente conservadora, sempre a subverter os “melhores” esforços dos tecnocratas no poder. Por sua vez, Rodrigo Constantino, economista liberal que vem ganhando notoriedade na imprensa, relata um pouco do que ele aprendeu lendo Kirk e outros autores dessa filosofia de respeito à tradição, que é muitas vezes contraposta à sua defesa radical do livre mercado.

Falando em defesa radical do livre mercado, é com gosto que publicamos aqui, em primeira mão, uma entrevista com Hans-Hermann Hoppe, provavelmente o defensor mais aguerrido do anarcocapitalismo, essa sim uma posição política e filosófica quase desconhecida em nossas terras.  Para ele, a ordem social mais justa e eficiente será aquela em que a propriedade privada seja integralmente respeitada; ou seja, em que mesmo funções consideradas prerrogativas inegociáveis do Estado – como segurança e formulação de leis – sejam ofertadas por empresas em livre concorrência. Como grande parte de sua argumentação depende ou de extensos raciocínios dedutivos já expostos em outras obras ou em argumentação econômica, resolvemos explorar um lado diferente de seu pensamento: a cultura, o papel dos intelectuais, e suas relações com o Estado. O resultado é altamente estimulante; é quase certo que 99% dos que lerem discordarão das posições de Hoppe; o que não faz delas menos inteligentes e ótimas para nos fazer pensar.

Passando da política para a reflexão pessoal, Mario Sabino assina duas peças de um gênero pouco conhecido, a autografia, tendo como tema a solidão e a morte. Misto de memória, impressão e reflexão, é algo que talvez falte aos intelectuais de nosso país, em geral mais afeitos aos polos opostos da impessoalidade acadêmica e da efemeridade da crônica.

Voltando ao passado mais remoto, nossa seção de História conta com um ensaio de Manolo Florentino, um dos maiores historiadores do país quando o assunto é escravidão. Seu ensaio consegue algo raro: capturar a emoção da pesquisa histórica quase como um trabalho de detetive. Quem diria o quanto do Rio de Janeiro do século 19 ele conseguiria reconstruir simplesmente ao procurar saber em detalhes a história de um ex-escravo muito singular. No outro artigo da seção, Francisco Bilac toca num tema espinhoso: a relação entre o filósofo político Carl Schmitt (cuja influência foi e é sentida na América Latina) e o nazismo.

Nas Artes Plásticas, Jonas Lopes oferece-nos uma releitura de Gerhard Richter, reinserindo-o na tradição dos grandes mestres da pintura (seria o pintor pós-moderno descendente artístico de Vermeer?). Em Cinema, nossa parceira online habitual, Ieda Marcondes, analisa a carreira de Cary Grant.

Bom, enough is enough. Tudo isso e muito mais encontram-se nas páginas a seguir. Sem mais delongas, esperamos que os leitores apreciem o tijolaço de reflexões prestes a ser arremessado em suas cabeças, e que fiquem conosco para dez vezes dez mais edições. Assunto não faltará!



[1] “Mesmo para o simples voo de uma borboleta todo o céu é necessário.” Positions et Propositions, tomo II (1934).

7 comentários em “Dicta 10 – Editorial

  1. Pela densidade deste editorial se tem uma idéia do que será este décimo número da revista! E seu conteúdo não poderia ser, no Brasil atual, mais necessário. Meus parabéns antecipados!

  2. Já esperávamos uma guinada ao mainstream filosófico anglo-saxão. O Hermann Hoppe, de fato, não tem nem um centésimo da popularidade do Zizek, nunca apareceu nos nossos jornais (Zizek já deu entrevista até para o Jornal da Globo!), e só circulava na deep web libertarian brazuca, desde os links do falecido O Individuo, em 2.000. Bacana trazer a nauseé do Mario Sabino, esse competente papófilo secular. A grande surpresa mesmo foi o Antonio Cícero. Eu acredito que ele não passaria no crivo de editores tolentínicos, em razão de sua mistura de Heidegger e Claudio Zóli, Derrida e Gabriel Pensador. Já que abriram as portas, podiam convocar numa próxima edição o velho Maciel, beatnick pátrio que uniu Hegel e Jim Morrison (ele tem uma biografia desaparecida do Lizard King). Mas, deixando de brincar com estereótipos e só agora tentando dizer algo que preste, é interessantíssima a edição e valioso o intuito de reunir círculos da cultura no Brasil que não se tocam, parece-me. Eu tinha ignorado os 2 números anteriores, volto neste. Long live!

  3. Longa vida a revista! Principalmente por se saber a dificuldade que é para se editar algo com tamanha qualidade.

    Sucesso

  4. Interessantes foram as palavras do Clodovis Boff em entrevista à revista Cult, que dedicou uma de suas edições ao pensamento de Bento XVI: “Tanto Pio XI quanto João Paulo II fizeram uso de elementos marxistas para análise e crítica da sociedade capitalista, na Quadragesimo Anno e na Laboren exercens”.

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