Eles só usam black-tie

Caros leitores, enquanto zapeava pelos canais televisivos nesse final-de-semana regado de quinta temporada de Lost e de estudos sobre Abraham Lincoln, deparei-me com a inusitada entrevista de Fernando Collor ao jornalista Geneton Moraes Neto, dada para o canal por assinatura Globo News.

Foi uma entrevista que me impressionou por dois motivos. O primeiro foi a postura de Collor que, independente de posar às vezes como um Napoleão (“Eu faço a História, vocês escrevem a História”), mostra uma autocrítica implacável de seu desastroso governo e uma lucidez em relação às circunstâncias de seu impeachment – algo que falta a qualquer cientista político que arrota opinião por aí. O segundo motivo foram os seguintes fatos narrados abaixo, que ele relatou e que formam um painel assustador da política e, sobretudo, da cultura brasileira:

1) Collor confirmou que a idéia do confisco foi concebida em uma conversa regada a uísque, da qual os participantes eram ninguém menos que Mário Henrique Simonsen, André Lara Resende e – “um jovem que acabara de entrar no mercado financeiro”, segundo as palavras do ex-presidente – Daniel Dantas. Todos concordaram que o confisco em si era viável em termos técnicos, mas imprudente no aspecto político. Talvez por arrogância, talvez por ingenuidade, Collor decidiu somente pela decisão técnica – e o resultado todos nós conhecemos.

2) Collor também conta que, no dia seguinte à assinatura da medida do confisco, Aloísio Mercadante encontrou-se com Zélia Cardoso de Mello e afirmou que o plano econômico do presidente recém-empossado – então considerado como a oposição “conservadora” ao PT – era justamente a medida dos sonhos da coterie de Lula; eles só não a divulgaram porque sabiam que o Sapo Barbudo não teria legitimidade política para executá-la.

O que isso tem a ver com a cultura de nosso país?, perguntará o leitor azedo e purista. Ora, é só juntar as duas pontas que a conclusão vem logo a seguir: faz cerca de vinte anos que somos governados pelo mesmo tipo de casta política – a saber: uma manada de jacobinos. Por essa expressão entenda-se que o povo foi induzido a aceitar uma forma de governo que só se preocupou com o que era concebido em gabinetes e nunca com a prudência necessária para a concretização efetiva dos planos. Collor e Lula sempre foram as duas faces da mesma moeda – e isso não é só agora, mas algo que existia desde 1992 e que o discurso cultural ideológico simplesmente acobertou de forma vergonhosa.

Estes mesmos jacobinos continuarão no poder por muito tempo; afinal, é toda uma cosmologia, um temperamento que não se muda da noite para o dia. A prova disso são os dois perfis publicados na edição de Dezembro da revista piauí. Todos sabem que não sou fã dos Moreira Salles, mas tenho de dar a mão à palmatora para o editor-chefe Mario Sergio Conti, que consegue a proeza de uma edição cirúrgica, sem cair na bajulação, muito menos na difamação, apresentando sempre um resultado equilibrado. Neste número, os retratos de Marcio Thomaz Bastos e Luiz Carlos Barreto mostram aquilo que os morros e as favelas adoram declamar: tá tudo dominado.

Thomaz Bastos alega que, daqui a vinte anos, será considerado como o homem que fez “a revolução na Polícia Federal”; e Barretão, que se considera “uma mistura de Jesus Cristo com Al Capone” (palavras que tomou de Roberto Rosselini), acha que menos de 10 milhões de espectadores é “muito pouco” para sua mais recente façanha, Lula – O filho do Brasil (ele quer o dobro disso). Ambos dominam, cada um a seu modo bem peculiar, os dois pilares de sustentação de qualquer sociedade: a justiça e a cultura. Entre uma gravata de preço extravagante e uma garrafa de vinho, entre um afago disfarçado de ameaça e uma ordem de fato, toda uma visão de mundo é imposta ao cidadão sem que ele se dê conta – e, obviamente, sem o conhecimento de saber que paga uma carga tributária altíssima para todo esse (des)serviço.

Enfim, é a instituição da apatia a todo vapor. Nos últimos tempos, ando a conversar com um grande amigo meu, José Nivaldo Cordeiro, que acredita que, dentro em breve, o mundo (e especialmente o Brasil) passará por um batismo de fogo no melhor estilo apocalíptico. Apesar de concordar com quase tudo com o que ele escreve, creio que, neste ponto, meu amigo está errado: não haverá nenhum batismo de fogo por aqui. O que haverá  – ou melhor, já existe – é a morte do espírito através de uma tirania da mediocridade, da apatia e da inércia que, na falta de um termo melhor, só posso chamar de pusilanimidade.

A cultura nacional está podre por dentro, numa entropia que não deixa nada a dever às visões mais pessimistas de um Tocqueville, de um Henry Adams ou de um Thomas Pynchon. Pessoas como Collor, Lula, Thomaz Bastos e Barretão são os homens ocos do poema de Eliot, aqueles que arquitetaram toda uma estrutura para ser destruída não com uma explosão e sim com um suspiro. E o pior que não há resistência alguma: salvo a exceção habitual, de libertários a conservadores, passando por soi disant liberais, a maioria escolheu a estratégia da avestruz, a crença de que podem conseguir tudo através da conciliação quando, na verdade, não há diálogo possível com qualquer um que pense como um jacobino. Acreditam que podem conseguir tudo pelo mesmo caminho da ideologia política – sendo que foi esta justamente a causa da doença da qual somos vítimas sem sabermos a razão e sem sabermos a cura.

Se houver alguma resistência, temos de pensar de uma outra forma, talvez algo que envolva estruturas mais profundas – e mais concretas – do indivíduo. Mas isso se dará quando todos pararem de querer se vestir só de black-tie e de tomarem uísque no meio de decisões que atingem milhões de pessoas. Enquanto isso, ficarei a repetir o bordão de meu amigo Nivaldo: Quem viver, verá.

18 comentários em “Eles só usam black-tie

  1. Perfeito e preciso. Parabéns por colocar as coisas nos seus justos e devidos lugares.

    Esses espíritos de porcos fazem o espírito do tempo no Brasil.

    E nós vamos — pusilânimes – aceitando que nos açoitem suavemente.

  2. “O que haverá – ou melhor, já existe – é a morte do espírito através de uma tirania da mediocridade, da apatia e da inércia que, na falta de um termo melhor, só posso chamar de pusilanimidade.”

    Confesso-me vítima impotente dessa situação. E o sintoma mais visível disso é o asco que sinto ultimamente ao passar os olhos (ler é impossível) nos cadernos de política brasileira dos jornais.

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  4. E aí para mudar o mundo eu escrevo num blog…
    Se te incomoda, tira a bunda do computador pelo menos para mudar algo.

    ***

    Ah, e eu concordo com tudo que você escreveu e achei o texto muito bom.

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  6. “Tira a bunda do computador”

    Rui,

    Nem todos digitam com a bunda. Não pressuponha que o resto do mundo necessariamente faz as coisas como você.

    (Foi inevitável, mas eu imaginei por um instante como é que você lê este blog. Foi o pensamento mais desagradável do dia.)

  7. Concordo e discordo, não necessariamente nessa ordem. =)
    Discordo: O congelamento da poupança, como forma de diminuir a liquidez na economia, não era uma idéia tão absurda como se pensa. Assim como não era o congelamento de preços (que só não deu certo no Plano Cruzado porque houve uma ingerência política do Sarney). Muitos bons economistas simpatizavam com essa idéia. E já estavamos no desespero, com a inflação chegando aos 80% ao mês! Portanto, é natural que o PT (ou o Collor, ou o PMDB, ou qualquer um) procurasse alguma forma de debelar a inflação, com todos os louros políticos que isso traria. É preciso ler um pouco de história econômica do período antes de desqualificar tudo e todos.
    Concordo: vivemos num misto de indignação e letargia. Também não podemos acreditar que é por meio da boa discussão que vamos mudar a política. Isso pressupõe um adversário moralmente homogêneo, o que não é o caso no Brasil. Mas, e então? Só sobra a revolução? Mais uma vez o ciclo caudilhista se apresenta no horizonte?
    ADORARIA uma resposta do que fazer!

  8. Excelente texto. Também tenho asco ao ler os jornais, chega a me dar depressão. E pensar na censura que está chegando aos jornais? Os jacobinos vão, paulatina e profissionalmente (pois, utilizam recursos científicos que os instrumentalizam para chegar onde querem) arrumando a cama para nunca mais sairem de lá (e nós de cá).

  9. A causa da inflação é o aumento da oferta de moeda. Pura e simplesmente isso.

    Se o governo brasileiro realmente quisesse conter a inflação, era só parar as prensas. Inflação inercial? Ok, poderia adotar alguma medida contra ela também, embora seja só uma questão de tempo entre o fim da expansão monetária e o fim da inflação inercial.

  10. Mais uma referência do Martim ao “not with a bang but a whimper”, já um clássico desse site…

    De resto, vamos insistir que o libertarianismo não é uma ideologia – assumindo aqui o sentido aroniano (porque para Marx evidentemente é) do termo, aparentemente aquele adotado por vocês? Acho que o Joel Pinheiro já frequentou suficientes fóruns libertários orkutianos para pelo menos relativizar um tanto essa afirmação…

    Para o debate:

    a) O libertarianismo tem toda uma filosofia da história orientada por um princípio fundamental: uma dicotomia supostamente existente em todas as civilizações humanas entre aqueles que produzem e aqueles que, via Estado, se apropriam da produção alheia e legitimam (de diferentes maneiras) essa apropriação. A história da humanidade é a história da luta de classes – classes que não se definem pela posse ou não dos meios de produção, mas sim pela propriedade (ou acesso, fica melhor talvez) dos meios de coerção (e legitimação da coerção) e pela efetivação dessas “iniciações de agressão” de diferentes maneiras sancionadas por também diversas porções das várias sociedades ao longo da História. Como corolário menor disso, o libertarianismo desenvolve um profundo revisionismo histórico que contesta as verdades hegemônicas no campo (sempre a serviço do Estado, mais ou menos “compradas” a depender da tosquice do libertário em si) – revisionismo que em pelo menos um caso se aproxima enormemente de pensamento que é (presumo) inequivocamente ideológico para todos nós: um Roosevelt que teria propositalmente abandonado frota obsoleta em Pearl Harbor a fim de provocar ataque japonês que justificasse a entrada americana na guerra, concepção alegremente partilhada entre o isolacionismo libertário e o (mais famoso?) revisionismo neonazi.

    b)O libertarianismo, particulamente na sua vertente anarco-capitalista, é discurso bastante milenarista – gnóstico mesmo, quem sabe: até então dividido pela dualidade fundamental que mencionei, o mundo (ou porção do mundo) entraria numa fase inteiramente nova com o desaparecimento do Estado, o Mal com maiúscula. Aqui, a utopia tem gradações de razoabilidade, dependendo do libertário: para uns, a coisa seria idílica mesmo, já que o Estado é o criminoso por excelência das sociedades em que existe; para outros, alguns problemas ao menos se colocariam, merecendo discussão para além do “as agências privadas resolverão isso” – mas mesmo o paraíso leninista teria questões a resolver, certo?

    c) Há hoje algo mais “intelectuais de gabinete” e jacobino que o libertarianismo? Apesar dos revisionismos históricos todos – eles são tentativa de resposta para o problema, na verdade -, os libertários têm enormes dificuldades em encontrar experiências humanas de largo espectro que se coadunem com o ideal da doutrina; a despeito disso, estão em sua maioria – o ceticismo não é o forte do grupo, como o Joel deve ter percebido – certíssimos das verdades absolutas que alcançaram, notadamente aquela (a filosofia política mais simples da história) já exposta acima: Estado é roubo, roubo é crime; logo o Estado é ilegítimo e precisa desaparecer. Um grupo de intelectuais pretender tamanha reengenharia social sobra a realidade (novamente: apesar dos revisionismos todos, que sociedade complexa existiu sem Estado?) não é jacobinismo no último?

    4) Por último, mas não menos importante: as cizânias internas e os anátemas todos que recaem sobre qualquer um que ouse duvidar da fé revelada. Aqui, só um chatíssimo rol de exemplos me permitiria fundamentar a tese – mas novamente, os exemplos pululam em todos os fóruns libertários por aí: quem não é anarco-capitalista é socialista – mesmo o minarquista não passaria de um “criminoso comum”; há algo mais típico da mentalidade ideológica que um “quem não está conosco (os fiéis realmente autênticos), está com eles – e contra nós?”

    Ficam as questões aí – e lembrando que sou por ora Secretário do partido Libertários no RJ, mas me considero apenas liberal e tenho várias reservas a esse libertarianismo salvífico…

    Abraços.

  11. Ótimo texto, Martim!

    Mas por resistência acredito apenas na defendida por MacIntyre (Depois da Virtude. Edusc. Pg. 441):

    “O que importa neste estágio [de corrosão moral] é a construção de formas locais de comunidade, dentro das quais se possa sustentar a civilidade e a vida intelectual e moral durante a nova Idade das Trevas que já estamos vivendo. E se a tradição das virtudes foi capaz de sobreviver aos horrores da Idade das Trevas passada, não estamos totalmente desprovidos de base para ter esperança. Desta vez, porém, os bárbaros não estão esperando além das fronteiras; já estão nos governando há muito tempo. E é a nossa falta de consciência disso que constitui parte de nossos problemas. Estamos esperando, não Godot, mas outro – sem dúvida bem diferente – São Bento.”

    Forte abraço.

  12. Joel, não é possível negar a realidade: “A causa da inflação é o aumento da oferta de moeda. Pura e simplesmente isso.”??
    Então o Plano Real reduziu a inflação drasticamente de um dia para o outro reduzindo a quantidade de moeda de um dia para o outro?! Não!
    Eu sei que foram feitos diversos cortes, diversas emendas constitucionais, fecharam diversas torneiras do gasto público, mas tudo isso não foi feito em julho de 1994. O que se atacou principalmente naquele mês foi a inflação inercial!
    Concordo que a médio prazo, sem as medidas de contenção monetária o Real teria ido para as cucuias. Mas não dá para negar o caráter específico da inflação brasileira nos anos 80-94.
    Olha a ideologia, olha o dogmatismo!

  13. E me diga: por que o gasto público gera aumento dos preços? Se o gasto for 100% financiado por impostos, sem endividamento, então ele não aumenta a demanda agregada, e os preços como um todo não variam. Toda demanda a mais em um setor será demanda a menos em outro.

    Ele só aumenta os preços se gastar do que não tem, isto é, se tirar dinheiro do nada. Isso pode ser feito pelo bom e velho método das prensas, mas também pode ser feito de outras formas, como via criação de crédito.

    Sim, o grande mérito do Plano Real para controlar a inflação não-inercial foi a política monetária conservadora. De fato, ele além disso conteve a inflação inercial, criando uma unidade de valor mantida constante corrigida pelo aumento do índice de preços, e costuma-se citar também o efeito psicológico, a credibilidade da nova moeda, que fez com que os produtores parassem de aumentar o preço. Essas medidas combatem a inflação inercial, que, uma vez contraída a oferta monetária, está fadada a acabar mais cedo ou mais tarde. Pois se a quantidade de moeda é constante (ou cresce a uma taxa mais baixa), então os aumentos de preço acabarão por diminuir drasticamente a quantidade vendida (não há moeda o suficiente para comprar o que é produzido aos preços inflacionados), e os primeiros que baixarem seus preços (ou aumentarem-nos menos que a média) saem ganhando; um comportamento que tenderá a ser copiado.

  14. Felipe, comentário muito no ponto esse seu. Eu, por mim, não tenho dúvida que o libertarianismo, quando se converte em visão de mundo e passa a ditar a priori até mesmo explicações sobre eventos históricos particulares, é uma ideologia no pior sentido (psicológico e intelectual) do termo.

    Contudo, no campo prático, é menos nociva do que outras, pois seus próprios defensores não aceitariam usar da violência e da coerção para impor sua utopia.

    Quer dizer, até o dia em que o raciocínio da legitimidade da auto-defesa leve alguns a justificar o ataque físico a qualquer defensor do Estado como um ato de defesa contra um agressor…
    Contudo, até hoje, nunca vi quem pensasse assim. Mas é uma tensão que deve se colocar na mente de um libertário xiita: é moralmente lícito atacar ou até matar um agente do governo, por exemplo, um cobrador de impostos?

  15. “Mas é uma tensão que deve se colocar na mente de um libertário xiita: é moralmente lícito atacar ou até matar um agente do governo, por exemplo, um cobrador de impostos?”
    Joel, tenho até medo da sua resposta. Mas a faço: para você é lícito ou não?
    Para quem acompanha este blog você sempre pareceu mais libertário do que cristão. Infelizmente!

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