Elogio do insulto

Bem, não tivemos em nossa última edição o elogio do jeitinho? Agora teremos a defesa da polêmica, do humor escrachado, do palavrão desequilibrado, do sarcasmo – enfim, de tudo aquilo que o jornalismo cultural (em especial, o tupiniquim) evita como o diabo que foge da cruz. Lá na terra de Obamis, tivemos o caso de David Denby, que resolveu publicar um pequeno livro contra uma determinada espécie de polemista: o snark. O termo parece ter saído do Finnegans Wake, de James Joyce, e significa mais ou menos o seguinte: para Denby, existe um tipo de polêmica cultural que infecta os meios intelectuais e que é nociva porque incentiva o xingamento pelo xingamento, o sarcasmo pelo sarcasmo – ou seja, a diversão de ofender o seu adversário sem se importar se ele tem alguma dignidade.

Ao que parece, o livro de Denby – crítico de cinema da The New Yorker que não hesitou em fazer as suas polêmicas sobre alguns filmes – foi um fracasso de público e de crítica (é só ler as resenhas dos leitores da Amazon). Não é por acaso: apesar da maioria dos americanos achar que Obamis é o salvador do mundo, alguns ainda acreditam que uma boa polêmica é sempre igual a uma boa porrada. Os EUA sempre foram uma nação dominada pela luta intestina entre suas várias facções políticas, que muitas vezes terminam em tragédias (é só lembrar das lutas raciais e dos atentados contra vários presidentes), outras vezes terminam em reformas fundamentais para a estrutura democrática (é o exemplo do debate em torno da Constituição que aconteceu na década de 1780).

Mas há algo mais para a defesa da polêmica, do sarcasmo e do insulto no ambiente cultural. Sem estas três características, não poderíamos recuperar a nossa própria humanidade. A tese não é minha, mas sim de Nicholas Desai, autor de um excelente ensaio sobre Aleksander Solzhenitsyn, o responsável por esse grande livro de mártires que é Arquipélago Gulag. De acordo com Desai, em resposta ao argumento de Denby, Solzhenitsyn é um excelente exemplo de snark russo, que usou do sarcasmo e até da ofensa (afinal, o russo foi para um gulag justamente porque fez uma piada a respeito de Stálin) para relembrar ao leitor da crueldade que o totalitarismo estava a provocar com a Rússia. Desai exemplifica:

One of the funniest (and snarkiest) passages in the whole book describes how the Tsarist justice system dealt with Lenin before the revolution. After relating, among other things, how under communism entire peasant families were executed for “hoarding” the crops they hoped to subsist on, Solzhenitsyn describes the ordeals of the young Vladimir this way:

…he was merely expelled. Such cruelty! Yes, but he was also banished….To Sakhalin? No, to the family estate of Kokushkino, where he intended to spend the summer anyway. He wanted to work, so they gave him an opportunity….To fell trees in the frozen north? No, to practice law in Samara, where he was simultaneously active in illegal political circles. After this he was allowed to take his examinations at St. Petersburg University as an external student. (With his curriculum vitae? What was the Special section thinking of?)

That dismissive “Such cruelty!” is related to what is one of his strangest rhetorical effects, namely how when describing the remorseless cruelty of the Soviet system, he seems almost, but not quite, to convey admiration for their total lack of scruples. This black humor is just one element of tone that achieves a chord-like complexity, giving the lie to the notion that snark is always simple.

Ou seja: um mundo cultural destituído de polêmica e de insultos é um mundo que começa a perder a sua humanidade. No Brasil, o caso é de uma patologia clássica: todo mundo agrada todo mundo e, quando há sempre um outcast que resolve furar o bloqueio, sacam misteriosamente um abaixo-assinado ou chamam as forças da mídia para a realização de um manifesto ou de uma passeata. Nem sequer é uma espécie de “patrulha ideológica”; é um exemplo cristalino de “egocentrismo cognitivo“, para usar o termo de Richard Landes. O intelectual ou jornalista brasileiro só vê o que quer porque é a única coisa que o seu mundinho fashion permite. Ao contrário dos EUA, o meio cultural brasileiro sempre preferiu a conciliação e, exceto por um ou outro evento, nunca houve um embate intelectual de grande porte por essas plagas.

Aqui, se alguém parte para a verdadeira porrada, logo é tratado como “louco”, “grosso”, “paranóico” – termos vazios de sentido que atingem a pessoa, nunca o que ela está a discutir. Com este tipo de argumentação, a única coisa que resta para os poucos snarks nacionais é mandar seus oponentes para o lugar que merecem. Afinal de contas, a humanidade só recupera o que é seu se levar um bom pontapé na bunda.

E nem preciso dizer que, da minha parte, se alguém me chamar da mesma coisa, quero mais é que tome um piparote na testa.

21 comentários em “Elogio do insulto

  1. Eu seria menos entusiasta da tese. Creio que uma coisa é o “mainstream” versus o “solitário bandoleiro” que, nem sempre, é tão fora do “mainstream” assim.

    Mas vamos lá. Um cara resolve inovar no debate e chega chamando os outros de “imbecis”, “idiotas”, etc. Tem lá seu sabor “Monthy Python”, divertido e tal. Mas também tem um ponto lamentável: incentivar a desqualificação do oponente por si só. Há algo assim lá naquele livrinho do Schopenhauer.

    Melhor dizendo, será que Schopenhauer concordaria com sua tese? Não que ele seja o mais importante, a autoridade no assunto, mas é sempre usado para discussões do tipo.

    Abraços

  2. Há níveis tais de maldade e má intenção que só podem ser respondidos na base do insulto mesmo. Mas considero prudente tentar, antes, uma discussão mais séria e racional para averiguar por si mesmo qual a índole do interlocutor.

    Agora imagine um dissidente soviético que se limitasse a discutir com Stalin apenas na base das “idéias” dele. Seria patético. O insulto tem seu lugar, e foi só recentemente que ele recebeu o anátema do mainstream intelectual.

    Ficaríamos chocados de ler os insultos que saíram das penas dos grandes nomes da literatura e do pensamento na história da nossa civilização.

  3. Alguem tem algum exemplo concreto de uma grande figura do pensamento mundial usando o insulto como “instrumento” de debate?

  4. Caro Wagner:

    Que tal o V.S.Naipaul? Ou o próprio Roger Kimball (que não xinga, mas dá estocadas)? No passado, tivemos Eça de Queiroz, Leonel Franca – e até mesmo Joaquim Nabuco e Ruy Barbosa. Isso se vc não contar os editorais do Joel Silveira e Samuel Wainer – além de Carlos Lacerda. Até mesmo hoje em dia o James Wood fez os seus insultos a David Foster Wallace e John Updike; a infelicidade dele é que ambos morreram logo em seguida, o que dá a entender que o insulto pode ser uma forma de matar a própria pessoa. E continuo: Padre Antonio Vieira, Gregório de Matos, James Joyce, Oscar Wilde e, se for mais longe, Cícero, Catulo, Tácito, Platão, etc, etc. O insulto, o sarcasmo e a ironia são as armas do verdadeiro debate intelectual.

  5. Martim,

    O sarcasmo e a ironia ou mesmo um insulto dirigido genericamente aos que pensam de uma determinada maneira eu conheço exemplos. Mas, num debate “mano-a-mano” ou “one-by-one” não me recordo. Algo como: “você é um idiota ou burro”, etc. É esse tipo de insulto a que você se refere?

  6. Joel,

    uma coisa é discutir com Stálin (acho que nem a chance de isto acontecer existiria), outra é discutir idéias no meio intelectual.

    concordo com a ironia e tal, mas é difícil defender que se comece o debate chamando Sartre de anta, Aron de imbecil, Schopenhauer de filho da.. e assim vai.

    nào se começa a resposta de uma pergunta de uma prova com: “esta pergunta é idiota, não vou respondê-la”. é o mesmo que resolver o problema brasileiro começando com balas nas testas dos comunistas. Resolve (resolve?), mas é assim que achamos melhor resolver?

    a discussão educada e racional – admitindo-se, claro, a ironia – é sempre bem-vinda.

    um abraço

  7. Martinzinho,

    Li esse post e pensei que seria interessante fazer uma lista dos maiores snarks do Brasil. Os vivos e os mortos. Olavo de Carvalho? Paulo Francis?

    Você que é um sujeito muito mais sabido e lido do que eu, sairia com uma boa lista.

  8. Para Claudio e Wagner,

    Trecho do artigo “A nova era das ditaduras” de Olavo de Carvalho:

    “O primeiro é o manifesto pró-Sader, que, segundo ele, a mídia omitiu por completo. Como eu mesmo vi esse manifesto transcrito com espalhafato em alguns dos maiores jornais do país, não creio estar errado em concluir que ou o sr. Dallari é um irresponsável que ataca sem nem mesmo buscar provas, ou é um mentiroso contumaz que, com as provas na mão, afirma o contrário do que elas atestam. Nos dois casos a única resposta que ele merece é algum palavrão bem cabeludo, que não registro aqui mas que lhe direi na cara se tiver o desgosto de encontrá-lo um dia.”

    Em: http://www.olavodecarvalho.org/semana/061218dc.html

    O Olavo já explicou quando e porque usa a blasfêmia diversas vezes, muitas delas no próprio programa True Outspeak (http://www.olavodecarvalho.org/true_outspeak.html), onde ele se sente mais à vontade para blasfemar, quando os temas assim exigem.

    No momento, não me recordo de nenhum artigo em que ele fale sobre isso, a não ser uma carta comentada: http://www.olavodecarvalho.org/textos/cego.htm

    Leiam a primeira parte, que não fala sobre o insulto propriamente, mas sobre a falsa impressão de “ódio enrustido” que um blasfemador pode causar a terceiros.

  9. Que bem traz o insulto além da catarsis do autor e do leitor (que concorda com o autor)?

    A meu ver, apenas aprofunda trincheiras.

    **

    http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/helioschwartsman/ult510u341458.shtml

    “Se há algo que vem faltando ao debate público brasileiro é o princípio da caridade. Não, nada a ver com distribuir esmolas ou bolsas-família por aí. O princípio da caridade, descrito pelo grande filósofo analítico norte-americano Willard van Orman Quine, é a regrinha heurística segundo a qual, no curso de uma disputa intelectual, devemos conceder às declarações analisadas, principalmente às que vêm de nossos oponentes, a mais generosa interpretação possível. Isso significa que devemos tratá-las em princípio como racionais e bem-intencionadas. Só poderemos considerá-las falaciosas quando não houver outra leitura possível. Mais do que isso, se o raciocínio apresenta uma ou outra impropriedade lingüística ou relativa a fatos de apoio, devemos reconstruir o argumento do adversário tornando-o mais claro e livrando-o de erros laterais.”

    […]

    “Admito que o princípio da caridade, ao afastar os famosos argumentos “ad hominem”, pode revelar-se frustrante se nossa meta é alimentar polêmicas. Pior ainda, sua aplicação tende a tornar as páginas dos jornais muito menos divertidas. Mas precisamos considerar seriamente adotá-lo se nosso objetivo é produzir um debate esclarecedor.”

  10. Interessante a ideia de se fazer um elogio do insulto. Combina com o lado iconoclastico da revista.
    Pois eu gostaria de colaborar com um elogio da exploracao (sim, a famosa exploracao do homem pelo homem, de malfadada fama marxista), que já tenho largamente preparado, e depois fazer um elogio da especulação (sim, a vil e materialista especulação capitalista, ou financeira), e quem sabe até um elogio ao ceticismo intelectual.

  11. Lúcio: num mundo ideal, de homens perfeitos e bons, todas as discussões seriam pautadas pelo princípio da caridade. Mas no nosso mundo, esse princípio deve ser usado com prudência. É ótimo que filósofos baseiem-se nele em uma discussão profunda sobre um tema, por exemplo, em que ambos saibam que, apesar das discordâncias, ambos são honestos.

    Mas muitas vezes uma das partes não é honesta, e se utiliza perfidamente da retórica para enganar seus ouvintes. É bom que se faça-a cair no ridículo e ser desmoralizada pelas próprias armas que ela escolheu usar.

    Num mundo perfeito, não haveria armas, e é um fato que devemos ser pacíficos o tanto quanto possível. Mas, às vezes, é preciso sim usar da violência.

    Paulo: espero feliz esses dois “elogios”.

  12. Agora sim:

    “No Brasil de hoje é assim: qualquer acusação cretina jogada ao ar sem o menor respaldo se arroga a dignidade intelectual de um “argumento” e exige resposta cortês daqueles cujos sentimentos acaba de ferir da maneira mais impiedosa e crua. Incitando a repulsa e ao mesmo tempo sufocando sua expressão, esse ardil prende o interlocutor numa camisa-de-força verbal, usando maliciosamente as regras mesmas do debate educado como peças de uma armadilha psicológica maliciosa e sádica. É um truque inventado pela propaganda nazista e comunista, mas, “nêfte paíf”, tornou-se procedimento usual nas discussões públicas hoje em dia.”

    Olavo de Carvalho, “Barbárie mental” (Jornal do Brasil, 15 de fevereiro de 2007)

    http://www.olavodecarvalho.org/semana/070215jb.html

  13. Na minha opinião, o insulto só consegue o objetivo se houver caridade do insultado, que o absorve com um mea culpa ou algo que o valha. Caso contrário, e são a maiorias dos casos, acredito que ele apenas cutuca pra que o interlocutor suba um degrau no tom e assim sucessivamente, até que um despenca ou desiste.
    Do insulto não resulta nada digno. A ele segue-se o silêncio do ridicularizado ou arroubo de ira do acuado.
    Ao autor resta o quê? O temor reverencial dado aos conquistadores impiedosos, o ódio dissimulado dos submetidos?
    Mesmo lapidado pelo intelecto, o insullto é escavado às profundezas mais sórdidas da alma. Ele não quer um bom resultado, uma conclusão proveitosa. Quer a satisfação de desejos primários.
    Um insulto não convida a concordarem com ele, mas a identificar-se com o ímpeto que o gerou. É contagioso e facilmente torna doentio o assunto que toca.
    Não consigo me recoradar de qualquer debate insultuoso que tenha resultado em algo útil.

    E os próprios textos aí citados, grandes merdas!
    Pra mim são lixo!
    Justificativa da espuma na boca dos cães!
    Síndrome de tourette, só que erudita!
    http://4.bp.blogspot.com/_q2GEVl5ce7k/SjQFJSi08SI/AAAAAAAAAIM/AIvttsxM5ss/s1600-h/Droling+Beasts+-+04.09.2008.gif

    Não. Eu não acho isso realmente. Mas me empenhei um pouco em tentar revirar as entranhas.
    Se não consegui indignar, garanto que não angariei simpatia.

    Se a audiência cai na armadilha retórica do charlatão, não é alguém falando palavrões na multidão que vai dispersar os crentes. Pode até desencorajar um e outro, mas mais fácil é ser taxado de louco. Que é exatamente o contrário dos fatos.

    A mim me parece mais simpática a astúcia, tampouco imagino Sócrates xingando por aí. Será que li pouco?

  14. Bem, vamos pôr os argumentos do (ótimo!) artigo em prática.
    Lúcio: você é ridiculamente “bom moço”. Não passa de um tonto, um otário, um “poliana”. Tente debater com esses mequetrefes de esquerda que abarrotam o “mainstream” cultural brasileiro, e garanto que em 2 minutos você vai ter vontade de mandar o sujeito à m*rda.
    Seja homem, ô bundão!

  15. Ah, sim, e utilizar o ultra-esquerdista Laerte com exemplo é, definitivamente, passar recibo de idiota. O pessoal ao menos citou o Olavão. E você contra-ataca com uma tirinha de jornal? Vá tomar no seu cu! Qual é a próxima? “Peanuts”? “Os Sobrinhos do Capitão”?
    Meu Deus, que sujeito imbecil.

  16. Pingback: Quando se deve consultar um especialista (em “L”etras) « Quotaction

  17. M. Lobato,

    Sobre citações (quanto mais melhor?), acredito ter uma bastante ilustrativa do meu ponto e para o seu caso.

    Platão, Aristóteles, Aristóteles, Heráclito, Leibniz, Kant, Hegel e companhia numa citada só:

    http://www.youtube.com/watch?v=moWZm66J_yM

    De quebra, ainda você pode xingar o quanto quiser. Direita, esquerda, a mãe…

    Resumindo, há esse problema de adequação: o autor acredita estar sendo incisivo, mordaz e inteligente, mas o resultado é simplesmente rude, grosseiro, tolo… Enfim, muita internet e pouca pragmática.

    (Mais ou menos como Madd – o senhor que representa o partido conservador, no final do vídeo:

    http://www.youtube.com/watch?v=XL0ixxNeR9Q)

    Aliás, foi por isso que demorei a responder, seu comentário é uma exata prova de que eu tenho alguma razão.

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