Em busca de Molière

Comparar Lang Lang com André Rieu pareceu exagerado até para quem não gosta da música do pianista. Meu quase xará Leonardo T. Oliveira foi o primeiro a ocupar o espaço de comentários abaixo do post, desdobrando-o em duas pertinentes observações que foram, posteriormente, retrabalhadas em um longuíssimo ensaio no seu excelente blog, Euterpe. É sempre motivo de alegria ver um texto – mais precisamente meu apelo à tradição da performance – se tornar ponto de partida para um algo da complexidade proposta pelo Leonardo. Mas em todos seus argumentos segue algo que pode ser resumido com “o Lang Lang é no máximo um músico sensacionalista (…)Rieu é uma verdadeira prostituta musical.” A inadequação de Lang seria menor que de Rieu – pois o primeiro, embora se valha do texto para aparecer, preserva seu conteúdo; o segundo, simplifica-o a não mais poder para alcançar mais gente. Do primeiro, o dinheiro é efeito colateral, do segundo é o objeto, a música é o meio.

Mas crítica musical trata de recepção, não intencionalidades, que é matéria para psicanalistas e confessores. O artista, como o ser humano, pode ser cheio de boas intenções e mesmo assim fazer coisas abjetas. E vice-versa. Não à toa foi nestes termos que terminei o artigo, dizendo do esforço empreendedor de Rieu, e jogando no salseiro Lang, que sequer era objeto do artigo do outro Leonardo, o Martinelli, involuntariamente responsável por toda esta deliciosa discussão; pleiteei o empenho de ambos, exatamente por não saber se Rieu e Lang são ou não, no íntimo de suas consciências, “do mal”. “O diabo, na rua, no meio do redemunho”…

(Após a versão de Rieu de “ai se eu te pego”, que escandalizou alguns, sugiro a visita ao Lang na Sonata ao Luar aqui)

O que sim estava no argumento de Martinelli – e é reiterado de alguma forma por T. Oliveira – é o desdobramento desta primeira posição: pois agindo como age, Rieu deseducaria o público. Sua maldade não está, portanto, naquilo que faz com Mozart, mas naquilo que o público passa a entender por Mozart depois de ouvir Rieu. Embora sofisticado, não me convence. Joel Pinheiro – antes de um post próprio sobre o fenômeno das tosses entre movimentos, excitado pelo blog de Álvaro Siviero do Estadão – já havia resumido bem o outro lado da questão: este argumento tem como premissa que “se André Rieu não existisse, as multidões que vão a seus shows estariam ávidas pela orquestra sinfônica de Berlim” Sabemos que não – aliás, era mais barato ouvir a Sinfônica de Berlim no Teatro Municipal há duas semanas atrás que André Rieu no Ginásio do Ibirapuera. No íntimo da argumentação está a mais perversa das colocações, ao assumir que as platéias de Rieu não sabem fazer suas escolhas, e que o crítico é sim uma figura mais evoluída que aquela gentalha a pagar R$600,00, todos revisitação de Monsieur Jourdain a espera do tutor ou doutor adequado. Mas, lamento informar, quem vai no Ginásio vai se divertir, não se educar. Aliás, e isso é bom, eles não acham que música clássica é matéria de educação. E neste sentido o público – o grosso do público – não difere muito daquele de Lang Lang, também ali para ver e ouvir um fenômeno que eles não entendem direito mas que todo mundo diz que é bom…

Rieu e Lang são os únicos músicos clássicos que conheço que poderiam parafrasear Miles Davis e dizer “if I don’t like what they write, I get into my Ferrari and drive away”. Eles definitivamente não precisam de nós. E não precisam de nós os que pagam por seus ingressos. Fiz a comparação não para defender um e atacar o outro, mas para demonstrar que nada do que eles fazem é moralmente acusável – e pleitear tais instâncias é no mínimo uma forma de entendermos algumas das ideologias com a qual ouvimos música clássica.

Certa feita ouvi um rabino defender, frente a um ateísta, a virgindade de Maria. Bem humorado, terminou dizendo que aquela não era melhor maneira de passar a noite mas, por tratar do que para ele era uma ilustração fundamental da fé, não se absteria de discutir o assunto. Eu não queria estar aqui a falar de Rieu e Lang, mas as questões que suscitam são das melhores.

Uma última nota: é fazendo o que faz que Rieu invoca esta ótima discussão a ganhar espaços nas páginas do Estadão; acaba o gajo a fazer sim um belo serviço à música clássica. Como bem disse o Joel “a existência do pior, do inferior, danifica em algo, ou tira o interesse que existiria pelo, superior?” Saímos todos melhores com o caso.

8 comentários em “Em busca de Molière

  1. Leandro,

    Muito empolgante ver a discussão tomando forma nesses textos e suscitando novas ideias. A síntese das nossas opiniões me parece mais clara agora, e mais concordante também!, mas não se preocupe que desta vez acho que consigo resumir tudo em um comentário mesmo. :)

    Bom, primeiro, sobre levar em conta a intenção dos artistas e não mais simplesmente a recepção do seu público, na verdade me surpreende que justamente o contrário tenha sido feito: acho que a intencionalidade dos dois artistas se torna secundária na avaliação do Martinelli e na minha visão do que eles representam. O Martinelli critica (ou seja, oferece critérios de valor que auxiliam a discriminação de sentido artístico) os clichês, vulgaridades e falsificações do Rieu e as julga um vilipêndio à grande arte – nisso me parece que ele fala, sim, do que Rieu faz com a música em si. E eu digo que a crítica tem motivo pra fazer esse julgamento, dado pela própria incongruência (que eu chamo de desonestidade) da proposta e da realização musical do Rieu – ou seja, é algo que surge a partir do que ele faz com a música e de como a anuncia, tudo bem independente da intenção de fazê-lo apenas pra ganhar dinheiro ou apenas como fruto de uma leviandade.

    Essa distinção entre intencionalidade e recepção é importante nesse diálogo de Leandro e Leonardos, porque acho que torna um ponto central mais claro e o traz possivelmente a um consenso: o marketing do André Rieu e os apelos da promoção que anunciam Lang Lang como um Michael Jackson da música clássica são bastante comparáveis de fato! Mas me parece que não é esse o ponto do julgamento do Martinelli sobre o André Rieu ser uma “aviltação” à grande arte.

    Assim como um toque de celular 16-bits da variação “boogie-woogie” do segundo movimento da Sonata para Piano No. 32 de Beethoven em ritmo de mambo cubano, Rieu seria de fato inócuo o bastante pra ninguém precisar ser contra a sua existência (pois uma sacralização da música clássica nos impediria até de cantarolar “La Donna è Mobile” no chuveiro). Um vilipêndio à grande arte ou, no mínimo, à partitura, isso ele (como o toque de celular) continuaria sendo no formato que assume, mas é aí que surge a inadequação mais criticável: o fato de uma falsificação ser anunciada como “Beethoven”, como “música clássica”, ocupar as estantes de música clássica das estantes de lojas de discos, e o próprio Rieu explorar essa ambiguidade na maneira de anunciar a sua proposta musical. Note que a realização musical de um artista sempre é feita sobre uma proposta musical de alguma forma oferecida – seja simplesmente chegando diante do público e tocando a música diretamente, com as expectativas que isso desperta, seja anunciando essa proposta de alguma forma. Isso quer dizer que a proposta já integra as suas escolhas musicais, senão teríamos que ignorar todos os contextos ao ouvir uma música (o que o formalismo russo tentou fazer com a literatura).

    E aí pode parecer improvável, mas o fenômeno Rieu está aí pra quem quiser ver: as pessoas tanto pensam estar ouvindo “Beethoven” e “música clássica” com André Rieu que acusam os seus críticos de uma visão ultrapassada de “música clássica”, presenteiam seus genros que gostam do gênero com seus CDs, e mesmo os que não se interessam por ele o tomam como amostragem da breguice asséptica do gênero, o que incomodaria qualquer apreciador de um estilo musical igualmente difamado com essa referência espúria. Emprestando uma imagem dada pelo Adriano Brandão em outro assunto, oferece-se um tigre de 300 kg prometendo o trabalho de tê-lo domesticado pra toda a família, mas entrega-se um poodle tosado de laços cor-de-rosa.

    E o que fazer? Cobrar indenização por danos morais na tentativa de controlar quem vende música clássica de verdade? Não: ou nos resignamos ou deixamos que uma crítica chame essa falsificação e essa desonestidade do que ela é de fato, um vilipêndio à música clássica, seja pelo que faz com a música em si, seja pela desonestidade da sua proposta e realização musical. Fossem ajustadas essa proposta e essa realização musical do Rieu, e a crítica do Martinelli até poderia ser justa, mas seria um pouco desnecessária mesmo, por criticar algo por não ser o que não se propõe a ser.

    Já o Lang Lang fez mesmo coisas parecidas ao compartilhar o palco com músicos como Andrea Boccelli, mas nesses casos fica claro o encontro de um pianista clássico com um músico pop em um encontro “ecumênico” que não se anuncia de outra forma (note que por motivo semelhante Charlotte Church, Rinaldo & Liriel, etc. não precisam receber o mesmo tipo de crítica). O importante é que Lang Lang é um concertista e, à parte do marketing tolo que muitas vezes o promove, ele se expõe nos concertos a tudo o que é preciso pra que crítica e ouvinte o recebam por aquilo que ele é. Se concordarmos que ele é um pianista pouco sofisticado, a crítica lida com críticas à qualidade dos músicos o tempo todo, essa dinâmica não ameaça a relação de ninguém com a grande arte. Me parece que aqui sim a intencionalidade estaria sendo trocada pela recepção musical: só se pode dizer que com a divisão de grande arte e cultura de massa Lang Lang seria um vilipêndio à grande arte tanto quanto Rieu caso levemos o seu marketing a sério e comparemos esses dois artistas pelo puro marketing.

    Por fim, quanto ao prejuízo prático do Rieu entre os enganados, não é que ele impeça as pessoas de irem ouvir a Sinfônica de Berlim. Digamos que ele de fato não tenha qualquer efeito difusor sobre a noção das pessoas do que seja música clássica, as quais pouco estejam interessadas mesmo no assunto: mesmo assim, o seu trabalho em si continuaria passível à crítica sobre o seu desajuste de proposta e realização e sobre suas falsificações a quem quisesse explorar o assunto. Mas não, acho que esse problema de propaganda enganosa ocupa SIM o papel de uma difusão incômoda da música clássica entre seus ouvintes e não ouvintes, como comprovam as já mencionadas estantes de CDs, presentes de sogras e reações às críticas que ele recebe, e era mais esta a dimensão do ponto criticável da sua desonestidade, e não necessariamente a responsabilidade por um proselitismo.

    Nesse quadro, a crítica não se arroga converter (ou ofender) os incautos. Como eu mencionei no blog, há uma distância saudável entre o plano dos critérios e valores e o plano pessoal de você ouvir o que quiser. A crítica apenas aplica os critérios que demonstram valores de grande arte à parte de suas falsificações a quem se interessar.

    Abraços e desculpe o tamanho do comentário!

  2. Boa Leonardo – muito pano pra manga aí! A princípio fico aqui a pensar: mas o texto de Beethoven não é apenas o mapa para a música de Beethoven? e sendo assim, a interpretação do texto não é um elemento intrínseco à performance? O que você está me falando é de um limite para esta interpretação. Mas temo que, pelo seu argumento, quando Mozart refaz os oratórios de Haendel, quando Liszt e Mahler reinventam as sinfonias de Beethoven, quando este último pede para ser corrigido pelos seus alunos postumamente, ou quando EL&Palmer releem – e atualizam – Mussorgski, estão todos eles vilipendiando obras de arte… Então me pergunto: qual critério nos permitiria dizer que a leitura que Glenn Gould faz de Bach não é um vilipêndio à luz de, que sei eu, Wanda Landowska? Não tornam eles, à sua maneira, o texto vivo – e fazendo isso, não cumprem exatamente o objetivo de uma performance?

  3. Leandro, sim, mas um mapa também tem limites e a fascinante margem de uma partitura ser recriada não parece nos lançar a um simples relativismo, ao menos se quisermos julgar valores coerentes de uma interpretação (filmar o filho de 2 anos batendo no piano e publicar no YouTube como “Estudos Transcendentais de Liszt” é outra coisa).

    Note que isso que foi chamado de “vilipêndio à grande arte” foi, primeiro, o recorte de um trecho, o rearranjo pra um ritmo julgado conveniente e a reorquestração de obras clássicas, e, depois, a responsabilidade do próprio Rieu em fazer isso passar por música clássica modernizada (que é a expressão que ele explora e na qual é enquadrado), quando está mais pra hit pop brega-chique. O resultado da aplicação de uma crítica é quase silogístico: vilipêndio desonesto. O “vilipêndio” da partitura em favor do entretenimento não é exatamente um sacrilégio, se é essa mesma a intenção – quem nunca tirou sarro de uma peça que estivesse estudando? E se houvesse um ajuste mais honesto do que se propõe musicalmente, tudo bem, seria só o vilipêndio básico mas de fato despretensioso da música. Pena que esse ajuste não é feito e isso parece trazer consequências. Nas palavras do João Luiz Sampaio:

    “(…) agrada porque assume a suposta e preconceituosa aura de sofisticação acoplada ao universo clássico e, ao mesmo tempo, capitaliza a ‘vanguarda’ de apresentá-lo em uma roupagem ‘espontânea, menos engessada’, fazendo jus à criação dos grandes compositores”.

    No saldo total, de qualquer forma, nada disso pretende influenciar a conduta pessoal do ouvinte, que pode ouvir o que quiser, claro.

    Agora, dos exemplos que você deu, por que não se tratam igualmente de “vilipêndios à partitura”? Eu acredito que a comparação entre o arranjo do Messias de Händel pelo Mozart e o arranjo da Ode à Alegria pelo André Rieu possibilita uma aplicação de critérios de valor capaz de reconhecer valor artístico no primeiro, em oposição ao valor artístico nulo e de puro entretenimento no segundo. Mas olhando de longe mesmo: o arranjo de Mozart se anuncia como tal, até porque representou uma ocasião especial, em que se propôs a execução do oratório por UMA GALERA. As transcrições das sinfonias de Beethoven para piano por Liszt também se anunciam como tal: são traduções de obras orquestrais para o piano. As reorquestrações de Mahler se anunciam como uma atualização às condições dos instrumentos disponíveis no tempo de Beethoven, edições críticas de partituras são um trabalho simplesmente necessário pra QUALQUER obra manuscrita, etc. Ou seja, são trabalhos que se colocam à parte da partitura original e propõem uma transposição com algum critério que temos plenas condições de julgar como justificado (ou não). É diferente de anunciar Beethoven ao público e tocar um monte de remendos com ritmo de bateria e uma orquestração galante. O que isso tem de radical e de sacrificante não resiste à análise de um critério coerente, isso fica muito claro e, se alguém se der ao trabalho de criticar, vai poder demonstrar.

    Agora, sobre as execuções dos intérpretes, eu não vejo como eles podem mudar tanto assim a partitura, até mesmo no caso do Gould. Vejo que todos eles se acomodam naquela grande margem inefável entre as linhas da obra do compositor, o que pode ser criticado, mas que também está dentro do jogo.

  4. Grande Leo, gostei. Acho que ao fim e ao cabo tudo está aí – digo, o que para mim são os preconceitos embutidos em toda esta discussão. Pois eu fico com a tua expressão “grande margem inefável…” pois falamos exatamente disso. Afinal ela, a margem, está a mercê do quê? Como você sabe muito bem, o texto é mais interpretável do que gostaríamos… Temo dizer, há um certo fundamentalismo textual na tua abordagem. Mas nada que não se possa viver com 😉 Abracabraços!

  5. heheh. Sim, acho que os dados são esses e resta procurarmos o melhor dos mundos pra não sermos nem fundamentalistas (arrogando definir uma linha de corte muito rasa a partir de onde certas abordagens musicais já sejam “vilipêndio”) nem relativistas (descrendo em que possa haver fundamento pra se discriminar interpretações, arranjos, transcrições e suas qualidades ou sacrifícios da partitura). Mas reforço uma coisa sobre a crítica: na arte, aplicar critérios de valor e julgar algo negativamente não significa ser doutrinariamente contra a existência desse algo, ou o crítico acabaria sofrendo uma patrulha politicamente correta que trocaria as prioridades da sua tarefa. Fazendo essa separação – talvez mesmo escolhendo outra palavra, que não “vilipêndio”, pra deixar as cosias mais claras, hehehe – dá pra conversar sempre tranquilamente.

    Obrigado pela paciência! Abraços! :)

  6. É engraçado como perante uma mentira, alguns poucos tentam melhorar o mundo e denunciá-la e muitos como o Senhor Leandro Vieira não só não tenta ajudar como ainda querem que a alienação e a ignorância prevaleçam… Essa perspectiva de que “se faz sucesso é bom” e de que “o povo sabe das coisas” é simplória, na verdade o povo é vítima e fica tolhido de ter acesso ao que é bom, pois só lhe é imposto o ruim. Leandro, ser relativista é fácil, rigor de pensamento é que é complicado.

  7. Quer dizer que André Rieu é imposto ‘ao povo’? Me interessaria saber por quem… Devem estar todos lá, coitados, tristes por terem sido obrigados a gastar seus R$600,00 para ver o violinista fazer suas travessuras. Deixa de patrulha rapaz!

  8. Bem, as pessoas não usam a lógica e não têm o costume de analisar as coisas metafisicamente e veem as coisas somente sob a perspectiva da tola realidade social, mas tentarei me fazer entender: quando digo “imposto” (e aqui fica uma dica, Leandro, as palavras não têm somente um sentido) quero dizer que se a TV só passa música pop, a rádio só passa isso e na revista só se lê sobre isso, a população se torna escrava dessa realidade. É como os festivais de jazz que tem de tudo menos jazz, o que deseduca as pessoas e as torna alienadas do que é realmente bom. Agora, que triste você defender uma coisa tão ridícula, uma falsificação tola de algo que é o cume da civilização humana, que é a música erudita. Livre-se desse relativismo bobo…

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