Em Portugal, 20 anos atrás…

Somente há pouco tempo conheci a extinta Revista K, editada em Portugal entre 1990 e 1993, com ensaios e artigos de Miguel Esteves Cardoso, Vasco Pulido Valente, Augustina Bessa-Luís, Carlos Quevedo e Francisco José Viegas, entre outros grandes.

Aqui você encontra muitos dos textos originais – alguns engraçadíssimos e politicamente-incorretos ao extremo -, outros comoventes, como este – do MEC – sobre a ingrata profissão dos agentes funerários:

“Percebe-se assim que, para ele, como para os agentes funerários dignos desse nome, a morte é um instante, por onde espreita a verdade que pode haver numa vida. O que comove não é a morte nem a ausência de quem morre – é a incapacidade de aceitá-la (ou acreditar nela) de quem fica. […]

Mas não se pode fazer sem sofrimento, sem respeito, sem revolta, sem solidão. É por estas razões que os enterros mais bonitos e comoventes são, para os agentes funerários, os das freiras e das crianças. É porque neles a morte é mais evidente. Mais evidente para os homens. E mais evidente para Deus. É quase como uma prova de vida”.

Ou esta entrevista demolidora com Pedro Santana Lopes, Secretário de Estado da Cultura à época, em que o homem é praticamente acusado de analfabeto por não ter lido Proust e Joyce.

Por fim, deixo-lhes o editorial da edição nº 01, publicada há quase vinte anos, que dá bem a ver o espírito da coisa toda:

“Desinformação

Vivemos na idade da informação. Nunca foi tão fácil a tantas pessoas estarem tão bem informadas acerca de tantos assuntos. Óptimo. O pior é aceitarmos acriticamente que a informação é sempre boa, útil e formativa. A verdade é que nunca houve tantas bestas bem informadas. É muito mais fácil uma pessoa informar-se sobre um assunto do que pensar acerca dele. A partir de certa altura, um excesso de informação pode prejudicar a compreensão de dado acontecimento. Hoje, muitas pessoas informam-se em vez de tentar compreender. É a mulher que sabe tudo acerca dos filmes em cartaz, mas não viu nenhum. É o homem que segue cada passo dos acontecimentos na Roménia sem parar para tentar compreender o que se passa. É o jurista que conhece toda a legislação mas é incapaz de ter uma discussão sobre conceitos de justiça.

A informação pode ser brutal ao ponto de prejudicar a comunicação. As notícias, em vez de serem pontos de partida, tornam-se em fins. As pessoas, em vez de discutirem eventos e significados, partilham conhecimentos. Em vez de produzirem argumentos, reproduzem factos. Através da mera partilha de informação cria-se assim uma comunidade artificial.

Não há expressão mais mentirosa do que ‘comunicação social’. Que comunicação existe? Apenas se comunica a – não se comunica com. Isto é, não se comunica. Informa-se. O mal está no facto de não haver reciprocidade.

Claro que os chamados meios de comunicação social não ouvem o público a que se dirigem. O velho lugar-comum do ‘diálogo com o leitor’ é uma treta em que ninguém acredita. O mal é que a indiferença com que se distingue quantidade e qualidade de informação torna cada vez mais difícil ao cidadão médio ter opiniões pessoais acerca do que o rodeia.

Há qualquer coisa de arrogante e insuportável no acto de ‘informar’, tal qual ele se concebe modernamente, cheio de gráficos, sondagens, esquemas e painéis equilibrados. Há uma pretensão de definição e cobertura que, além de ridícula, parece violenta, por não admitir discussão. A discussão já surge ‘feita’. O leitor limita-se a escolher uma das posições.

Esta revista vai ser mais comunicativa do que informativa. O nosso objectivo não é sermos respeitados, compreendidos, seguidos, ou representados ou definitivos – é sermos lidos” (in K, nº 01, outubro de 1990).

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