Entre Rieu e Lang…

E se fez com que São Paulo recebesse neste mês de maio André Rieu. O compositor e amigo Leonardo Martinelli acaba de fazer uma crítica implacável ao multimilionário maestro, crítica esta que recebeu loas por todos nossos adicionados em comum no Facebook. Afinal, nas palavras de Leo, sua música é como “um rolo compressor que esmaga aquilo que diferentes linguagens e estilos têm de melhor. Tudo isso é amalgamado pela própria figura… que arranca suspiros de sua audiência… Pensado como um grande negócio, seus espetáculos não apenas usurpam o patrimônio musical da humanidade. Pior, eles são artisticamente violentados com o propósito de ser mais palatáveis”, mas que ao fim, comenta o autor, difundem uma idéia falsificada da música de concerto.

Estes termos, é curioso notar, poderiam ser usados para falarmos do outro astro-pop que acaba de aportar em nossas praias, o pianista chinês Lang Lang. Em algum momento de sua história recente, Lang ganhou o apelido nada lisonjeiro de Bang Bang – nada lisonjeiro, pois o nome não foi fruto de seus dedos rápidos (os mais rápidos do oeste?), mas por cultivar a musicalidade afetada e o pianismo pouco sofisticado que tão bem conhecemos. Entrementes, Lang participou de aulas públicas com Daniel Barenboim, recebeu o título de Honoris Causa da Royal College of Music (depois de Lula, tudo é possível, aqui) e, assim, credenciou-se para ser um artista respeitável, aquele a quem podemos ouvir sem culpa de ser chamados de ignorantes.

Lang Lang pensando... Se deixarmos de lado as chancelas públicas de Lang e apenas ouvirmos a música do rapaz, podemos voltar ao texto de Martinelli — e ali, onde lemos Rieu, colocarmos sem qualquer dúvida o ideograma do pianista. Concordo: os dedos do chinês são infinitamente mais destros, e ele, de fato, toca todas as notas e indicações escritas pelo compositor. Mas, todos sabemos, não é isso que faz a boa ou a má música. Podemos ainda, sem risco de forçar a barra, assumir os mesmíssimos desdobramentos ad hominem comuns à crítica de Rieu e discorrer sobre a riqueza despropositada e a força midiática desconcertante de Lang (assinou um contrato de três milhões de dólares com a japonesa Sony e é astro de uma campanha da Nike). J’accuse: popularização ou vulgarização da música clássica? O leitor faça seu veredito.

Mas seremos justos? Apostas sugerirão sobre se Lang e Rieu seriam, afinal, duas manifestações do mesmo fenômeno bizarro que seria a cultura de massa ou a indústria cultural e, por isso, figuras de um mundo decadente que vilipendia a grande arte e, usando os termos de Martinelli, o grande patrimônio da humanidade que é a música de Bach e Chopin. Será? Pois sim, podemos desdenhar dos vinte shows lotados no Ginásio do Ibirapuera (iria fazer só três, mas foram vendendo todos os ingressos a cada nova data anunciada…) de Rieu mas, não, não podemos desdenhar do fato de que seja o convidado de honra dos 100 anos da Sociedade Cultura Artística de São Paulo. Triste dizer, mas não deixam de ser aleatórios os critérios que julgam André Rieu uma aberração e colocam Lang Lang como embaixador da Mont Blanc. O que faz com que a performance do primeiro seja amada em todo o mundo, e o segundo colocado em pedestais aqui ou em Viena nada tem a ver com a cultura de massa e sim com os mecanismos da própria cultura da performance. E ela valida seus agentes ou os joga fora não apenas pela tradição mas pela capacidade destes agentes se valerem da tradição para dizer aquilo que eles sentem e – ahimé! – o que o público quer ouvir.

E o público quer ouvir Lang e Rieu. Nem a um crítico da Revista Bravo escapa: Lang é antes um histriônico que usa a música para sua própria autopromoção do que alguém a serviço dela. Tanto é assim que o objeto de um espetáculo de Lang não é Bach ou Chopin, Mozart ou Beethoven, mas ele mesmo (e, com ele, a pujança do mercado consumidor chinês; mas isso, deixemos pra lá).

Mas, no mundo da performance, não é sempre assim?

Apenas uma cultura imensamente idealista coloca a obra de arte neste papel de algo intocável, e é o positivismo levado ao mundo da interpretação musical que faz do intérprete o “mal necessário” a macular o texto de um deus-compositor. Entendendo estas ideologias é que o pobre amante de André Rieu, ao ler a crítica de Martinelli, pode se dar conta de que não é um bárbaro, pecador ou mau-caráter. Mas vou em sua ajuda e digo: por estes critérios, intimamente, acho que a música de Lang Lang faz mais mal para um ouvinte clássico desavisado que aquela do maestro holandês! Faz mal por quê? Porque Lang conseguiu a credibilidade que Rieu sequer pretendeu – e onde este último é mero entretenimento, o outro é vendido como um artista sério ou, mais do que isso, a salvação de toda a tradição clássica, o young, a ponte que conectará a velha linguagem a toda uma nova geração de artistas e ouvintes, etc etc etc…

Mas é exatamente isso que não quero dizer, pois não comungo das premissas desta utopia. Solidarizo com os fãs de Rieu não por gostar dele e sua música mas por percebê-lo como um empreendedor que quer divertir e se divertir com o que faz — e não há mal algum nisso, se o que faz é música! Eu não vejo qualquer problema com isso. E solidarizo com os fãs de Lang pois me divirto com suas macaquices, e tudo bem se aqui e acolá me vierem dizer que a música que faz é transcendental. Não é. Mas sei que, no fundo, o nariz em pé da crítica frente às performances inócuas de Rieu ou os concertos midiáticos de Bang é apenas um desdobramento do academicismo e cerebralismo com que artistas e intelectuais lidam com a alta cultura e a arte. Eles se recusam a aceitar que, para a maior parte das pessoas, elas seguirão sendo, por muito tempo, puro entretenimento. Apenas para poucos elas são patrimônio da humanidade. Em algum momento, entre os amigos de Haydn, Mozart, ou os membros da família Strauss, música não era nada disso – arrisco dizer que os compositores não carregariam tamanha responsabilidade nas costas.

De fato, se pensamos em André Rieu como educador ou figura messiânica de uma linguagem em extinção, estamos mal; mas estaríamos não muito melhor se a tocha fosse para Lang Lang. Devemos entender de uma vez por todas que, do ponto de vista do grande público, são entertainers – não quaisquer, mas os mais bem sucedidos deste mercado selvagem que é o nicho da música clássica. Cada um à sua maneira atinge um público enorme; ambos ganham seu pão com empenho e dedicação.

Não são do meu gosto, azar o meu. Por sorte, ninguém ainda me obrigou a ir a seus concertos.

10 comentários em “Entre Rieu e Lang…

  1. Puxa, Leandro, me deixe dizer que acho um exagero IMENSO comparar o Rieu ao Lang, mesmo com devidas proporções ou graus. O Lang Lang musicalmente é no máximo um músico sensacionalista, e isso de evento pra evento – em concertos a céu aberto ele faz estrepolia, toca sujo e com barulho, etc., em concertos mais tradicionais ele no mínimo sabe ser honesto -, enquanto o Rieu é uma verdadeira prostituta musical. Claro que o ponto do relativismo do consumo de entretenimento como um primeiro reflexo desinteressado em fazer distinções artísticas tem sua ilustração no seu texto, mas não é preciso pensar em cerebrismo, beletrismo, academicismo pra se pensar simplesmente em *música*. E em música eu não considero o Lang Lang uma influência maligna sobre o ouvinte (a dinâmica de se expor a interpretações inferiores a outras ainda desconhecidas ser considerada um fatalismo é que parece um exagero), enquanto o Rieu o é, simples assim.

  2. Ótimo texto, Leandro. Dei sorte, consegui fugir do Lang Lang ao tirar férias bem nesse mês. Verei aqui em Viena esta semana, entre outras coisas, o Radu Lupu, bem mais ao meu gosto que o LL. Do Rieu, então, melhor nem falar…

  3. Cara, concordo com absolutamente tudo que você escreveu. Especialmente isto: “Eles se recusam a aceitar que, para a maior parte das pessoas, elas seguirão sendo, por muito tempo, puro entretenimento.”. Você disse o que sempre digo, dúvido que Mozart, Haydn, ou outros levassem tanta responsabilidade…

  4. Ao ler a crítica do Martinelli ao Rieu, me pergunto se tudo o que ele descreve como os vícios de Rieu não seriam igualmente aplicáveis a QUALQUER músico do rock. Eles não visam criar um espetáculo, não são o centro de seus próprios shows, não produzem música palatável às massas? Vide o mega-show de Roger Waters há pouco em São Paulo. E duvido que The Wall sirva como porta de entrada para Haydn.

    “Ah, mas Roger Waters é música popular. André Rieu é música erudita!” É?

    No fim, resta-me uma grande pergunta: se André Rieu não existisse, as multidões que vão a seus shows estariam ávidos pela orquestra sinfônica de Berlin? A existência do pior, do inferior, danifica em algo, ou tira o interesse que existiria pelo, superior?

  5. Em síntese: Lang é o Chico; Rieu é o Jô. O Paulo Coelho mandou uma mensagem dizendo que está um pouco atrasado, mas já vai chegar…

  6. Eu ainda acho que comparar o Rieu a qualquer músico que não seja espúrio dentro da sua própria proposta como ele é um exagero… Seria preciso dizer que todo artista não faz nada além ou aquém daquilo que promete, e por isso tudo é justificável nesse meio e consome quem quer. Mas não acho que haja essa congruência entre proposta e realização no caso do Rieu, e NEM MESMO acho que a sua própria proposta seja isenta de malícia.

    Vejam: é possível usar figurino e coreografia na música clássica: Yo-Yo Ma tem todo um projeto realizado de executar as suítes pra cello solo de Bach acompanhado em cada uma delas por danças, ambientações diferentes (inclusive acústicas diferentes), etc. Também é possível trabalhar claramente com uma proposta de popularização da música clássica: os Punch Brothers emprestam repertório erudito em seus shows de ocasião e instrumentos populares. Mas o Rieu não: sob a declaração de popularizar a música clássica ele oferece uma adaptação muito mais radical, com cortes, excertos, arranjos e uma descontextualização cujo deslocamento não tem apenas o efeito duvidoso da malícia comercial, mas um reflexo musical mesmo, que é o que se deve ter em mente. Em função de legitimar uma abordagem chique-despojada, o que ele oferece musicalmente se propagandeia, por um lado, como uma modernização do que a música clássica teria originalmente de mais austera, e, por outro, como uma reabilitação do que a música clássica teria de mais “gala”, quando tanto esse suposto sacrifício da austeridade quanto esse suposto aproveitamento da galeza são falsificações ilusórias, e o problema é que elas se expressam como escolhas musicais mesmo, interpretações afetadas, seleções descontextualizadas, intervenções que se mostram vulgares pra deslumbrar o público com um efeito musicalmente injustificável e vazio. O espetáculo visual todo que acompanha isso é só outro dado da falsificação musical. Acho portanto que o Rieu tem algo de condenável não por ser entretenimento rasteiro simplesmente, nem por refletir a presença incontrolável da música clássica em diferentes esferas culturais, mas por ser propaganda enganosa mesmo, por prometer vender uma leitura acessível sem deixar de ser essencial e legítima de uma música mas acabar representando uma falsificação dessa música em todos os sentidos.

    Se pensarmos, de novo, na proposta maliciosa e na realização vulgar dessa mesma proposta, Lang Lang ou outros músicos do showbiz podem ser muito mais honestos.

  7. Caros,

    Bom artigo. Concordo com o autor ao apontar Lang-Lang como sendo pior que o André Rieu para a música clássica.
    Afinal, o Lang-Lang tem até disco/filme na Deustche Gramophon!
    Duvido muito que na china/japão eles escutem lang-lang, creio que nem mesmo yuja wang; eles devem ficar pirateando cds/vídeos da martha argerich (já sonhei um dia que a Dicta teria uma entrevista com ela…) e outros músicos de verdade.
    Vá em restaurante japonês/chinês e veja quantos chineses/japoneses comem aquela comida… O Ocidente precisar maneirar com essa orientofilia…

    Aposto que daqui a uns 20 anos ninguem se lembrará de lang-lang/yuja wang, enquanto continuarão a comprar (sim comprar!) o cd da philips da martha argerich (1o. concerto piano tchaikovsky; 3o. concerto piano rachmaninoff).

    É isto,

    abraços,

    Henrique Santos

  8. Pingback: Ainda sobre Lang Lang | Dicta & Contradicta

  9. André Rieu é um lixo absoluto. Lang Lang pode ter seus defeitos, mas é um completo despropósito comparar os dois.

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